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4 DEFINIÇÃO E COMPREENSÃO DA HISTÓRIA EM NGOENHA E KIZERBO

4.5 O PRINCÍPIO DE RESPONSABILIDADE

Depois dos esforços pioneiros duma primeira tentativa de geração de políticos para fazer nascer as independências, as liberdades e o desenvolvimento econômico e social, ela resultou em fracasso. Em ruptura com a primeira geração dos libertadores da pátria em África, Ngoenha é mais explicitamente utópico, voltado aos problemas específicos ligados à história de Moçambique associada à jovem democracia: “À nossa geração incumbe a árdua tarefa de participar na elaboração do futuro diferente do presente, que nos é dado viver e observar”300. Pode-se dizer que há uma aposta política na base de seu pensamento. É claro que sua utopia em relação ao Moçambique independente merece ser lembrada, mas também a capacidade que tem de provocar uma radical influencia no modo de pensar do continente negro a partir do que diz.

Nós somos parcialmente responsáveis em relação ao passado, que, entretanto, só agora começamos a compreender nos seus significados complexos. De facto, o futuro dos outros é já

297COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do Desespero e da Beatitude. Tradução Eduardo Brandão. Revisão técnica Luís Filipe Pondé. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 16. A esperança, virtude teologal. Mas se não há Deus ... O desespero é a minha virtude teologal pessoal, e minha saúde. A esperança é que é uma doença, uma droga. O futuro não mede nada mais que minha fraqueza presente. Quanto maior for a minha potência, menos necessito esperar. Desespero: força da alma.

298COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do Desespero e da Beatitude. Tradução Eduardo Brandão. Revisão técnica Luís Filipe Pondé. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 19. “Lucrécio, Spinoza, Marx, Freud ... A linha de Demócrito. ‘As esperanças dos tolos são desprovidas de razão”; e o sábio não necessita mais esperar: basta-lhe o presente. Materialismo: descer até o ponto mais baixo, depois voltar a subir - se pudermos. Mas é preciso descer. Porque, diz Demócrito, “a verdade está no fundo do abismo”.

299 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 13.

300 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 5.

em parte nosso, e encontrar uma ruptura nos três momentos é provavelmente impossível, seria errado. Aliás, no futuro existe também uma parte que é nossa, porquanto viveremos ainda301

Gostaria de levantar aqui a hipótese seguinte: a pesar de suas radicais diferenças ao ponto do pensamento ngoenhiano ser considerado, sem razão, filosofia do futuro melhor – Bloch e Ngoenha teriam o mesmo poder discursivo. Será que uma tal hipótese tem cabimento? Precisa-se explicitar uma tal hipótese.

Pensa-se que nesse texto reside o pensamento messiânicos de Ngoenha e tal como em Bloch. Trata-se do pensamento que diz respeito à ontologia do “ainda-não-ser”. Com relação ao pensamento messiânico também podemos fazer uma outra aproximação entre os dois pensadores em questão. Não é incomum em Bloch encontrar estudo das relações construtivas desse pensamento messiânico, algo que, ainda raro em Ngoenha, está absolutamente explícito na Filosofia Africana – das independências às liberdades quando ele fala das relações construtivas do pensamento messiânico, de entre elas da esperança utópica com a utopia concreta, com o ‘consciência antecipante’ e práxis verdadeiramente humana guiada pelas ‘imagens do desejo’ da consciência antecipante: “De fato não nos seria possível viver sem uma imagem do futuro, sem aquela fantasia política que permite inventar o amanhã e viver o hoje”302

Ngoenha deixa também bem claro seu objetivo principal é contribuir para um amanhã menos desumano, através da formação do homem do seu tempo, responsabilizando a cada homem não individualmente (eu sou), mas coletivamente (nós somos responsáveis) do nosso passado, presente e do amanhã. Quando Comte-Sponville faz seu comentário positivo em relação à educação do povo francês de seu tempo pela filosofia ele está justamente considerando em sua argumentação características da relação entre o presente e o futuro, própria do tempo: “Cada qual empurra a infância para a frente.

Dizia Alain, e é esse o nosso futuro real. O futuro estaria pós atrás de nós? Não. Mas ele chega. E é o que chamamos de presente”303. Acaso não estaríamos aqui agora tocando também

301 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 148. Para nós, aqui esclarece-se explicitamente a referência a esperança e ainda-não de Bloch, o que está implícito nesta obra. Demo especial, vale apena salientar que não ruptura dos três momentos do tempo, apresenta-se O ser-tempo de Comte-Sponville.

302 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 10.

303 COMTE-SPONVILLE, André. A vida humana. Desenhos SylvieThybert. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martinho Fontes, 2007, p. 32. “Lamento, saúde, rancor ou alívio. O alívio, em mim, prevalece faz tempo. Aos vinte anos, tinha a sensação de que o pior já tinha passado. Estava enganado. Nem por isso deixo de empurrar a minha infância para a frente, como todo o mundo. O alívio pesa mais do que imaginamos”.

na perspectiva ngoenhiana de priorizar o futuro, porém o “futuro é hoje”304, porque o futuro se apoia no presente. Com efeito, também em relação ao prospectar o futuro pode-se encontrar aproximações entre Bloch e Ngoenha. O futuro dos países africanos independentes, ele faz o filósofo afirma a categoria da possibilidade. Trata-se de invocar tantos futuros possíveis. Além disso, indica-se objetivos para que cada um sinta responsabilidade na sua parte e procure ajudar a prolongar a reflexão.

Comte-Sponville mesmo é exemplo de um filósofo marcado pela vida e responsabilidade: “É isso que nos deve tornar exigentes. Esta vida tão improvável que nos é dada, cabe a nós não desperdiçar. A vida não é um destino, é uma aventura. Cada qual é inocente de si, mas responsável por seus atos. É responsável, portanto, ao menos em parte, por aquilo que se tornou”

Nessa exposição considera-se que a vida por ser improvável não pode ser desperdiçada. Sobre este ponto acrescenta-se a ideia exposta pelo filósofo Ngoenha quando trata do projeto do futuro quando defende que “Nenhuma geração, instituição, cultura o governo sabe, de modo privilegiado e certo, o que será exatamente o futuro”305. Comte-Sponville serve-se de uma breve imagem da vida que antecipadamente considera improvável. Passando para Ngoenha vê-se também uma imagem do futuro semelhante à da vida em Comte-Sponville no que tange a característica da categoria da possibilidade como tendo um caráter improvável.

A geração atual dos utopistas africanos é muito largamente constituída por filósofos e historiadores. Sucintamente, podemos dizer que a utopia africana é uma utopia concreta, (o que não significa dizer que ela seja empírica); que trata dos problemas de África servindo-se da consciência utópica de Bloch.

Através desta recontextualização do utópico, podemos compreender a definição progressiva da missão da nova geração de africanos, primeiro, por Ngoenha (Por uma dimensão da consciência histórica moçambicana, publicada em 1992, e Filosofia Africana - das Independências às liberdades, escrita 1993, e Ki-Zerbo (Para quando África? Entrevista de René Holenstein, realizada em 2006) como ideólogo político africano. Essa abordagem sobre o papel do homem africano hoje foi tema da filosofia e da história: iniciada por Ngoenha e

304 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 80.

305 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 78.

retomada por Ki-Zerbo, ela designa, na abordagem utópica, uma ‘missão-futuro’306. Em Ki- Zerbo, há uma missão semelhante e onde é necessário reconhecer que a fantasia política aparece como uma maneira para inventar o futuro melhor.307

Nessa ordem de ideias, podemos sublinhar que a tarefa é fator de futurologia. Evidentemente, uma das grandes descobertas de Bloch é que a sua filosofia faz parte integrante da imagem do futuro.

O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis308. Assim, do ponto de vista filosófico, deve ter uma inclinação a uma esperança de avançar em direção à liberdade, quer dizer sujeitos livres, capazes de assumir a responsabilidade do seu destino e do seu futuro.

Por essa razão, o historiador africano Ki-Zerbo defende que nós, africanos, “tínhamos de partir de nós próprios para chegar a nós mesmos”309. Ki-Zerbo provou que “onde quer que haja humanos, há história, com ou sem escrita”310. Ele faz um enorme esforço de reconstruir a História africana sobre a tradição oral como fonte essencialmente africana. Ngoenha coloca novas questões, nomeadamente, “Somos nós a fazer a história ou somos feitos pela História dos outros?”311. O filósofo moçambicano provou a trágica situação de vida dos povos africanos no período das independências africanas, que não deixava a possibilidade de decidir livremente pelas suas vidas e pelo seu próprio futuro, pois o povo africano era materializador de vontades alheias.

Do ponto de vista de Ngoenha, a ‘missão-futuro’, por visar a construção de um futuro comum e a implantação de políticas pontuais concertantes, seria capaz de promover e fazer

306NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 6 “De qualquer maneira, a nossa missão é o futuro”.

307BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 99. Para Freud, a realidade parece inalterável e mecânica, em consonância com a visão do mundo do século XIX. “Contra tudo isso, Vaduz e Orplid, o que se sente em mente com esses radicalismos (realismo socialista), não procurou nenhum outro lugar para sua realização a não ser o futuro”.

308BLOCH Ernst, L'athéisme dans le christianisme. La religion de l'Exode et du Royaume. Trad, de l'allemand par Eliane Kaufholz et Gérard Raulet. Notes de Gérard Raulet (Bibliothèque de philosophie). Un vol. Paris: Gallimard, 1978, p. 277.

309 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? Entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 15.

310 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? Entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 15.

311NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 7.

viver as exigências do imaginário social. É isso que Ngoenha espera de uma utopia positiva, ela deve evitar um futuro desastroso. Na imaginação do próprio Ngoenha, “os jovens não devem hesitar em bater-se para que amanhã (hoje) a vida fosse melhor”312.

Ngoenha, em duas obras seguidas, discute os 50 anos de insucesso das independências africanas como um mundo de possibilidades. Por exemplo, Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1992) e, a seguir, Filosofia Africana – das independências às liberdades (1993), já na sua segunda edição (2014), configuram-se como possibilidades e métodos utópicos da melhor maneira de pensar o futuro e de decidir livremente pelas vidas dos moçambicanos e pelo futuro dos africanos em geral.

O interesse para Ki-Zerbo, na história-invenção, é o futuro. Do ponto de vista histórico, Ki-Zerbo afirma: “na medida em que a História tem este pé da liberdade, que antecipa o ‘sentido’ do processo, continua a existir uma grande porta aberta para o futuro”313. Isso significa ampliar profundamente mundo que permanece, na sua totalidade, como um fabril “laboratorium possibilissalutis”, como dizia Bloch.

Um dos efeitos mais surpreendente dessa problemática foi a constatação feita por Bloch, analisada no Prefácio do Princípio Esperança vol. 1 (2005). Essa descoberta serve como leitura forte e crítica da situação presente, isto é, o acento da pesquisa é posto sobre a liberdade não só de abertura para o futuro, mas na “filosofia do agora”, como atestam as palavras de Bloch: “não se descobriu que em todo o presente, mesmo no que é lembrado, há um impulso e uma interrupção, uma incubação e uma antecipação do que ainda não veio a ser”314.

A partir daqui, Ngoenha montará, no primeiro momento, a tarefa dos filósofos africanos, dizendo que, apesar dos nossos resultados de insucesso de um devir melhor, “a nossa missão é o futuro”. Em outras palavras, a tarefa atual da civilização e da geração africanas visa participar na elaboração e realização dum futuro melhor, assente na “meritocracia”315 e tomada da consciência histórica em direção ao domínio da realidade cultural africana.

312NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 120.

313 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 17.

314BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p.22.

315 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto velho: Paulinas Editora, 2014, p. 6. “A realização desta missão-futuro” depende da maneira como cada um de nós souber ocupar o próprio lugar. Cada um deve dar o melhor de si no lugar onde se encontra”.