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5 UBUNTU: “QUEM SOMOS”?

5.3 O SENTIDO DO FIM DA HISTÓRIA

Ngoenha tentou tornar inteligível a história vivida pela sua época, que se caracteriza por exigências e preocupações na história de Moçambique independente e África atual. Trata-se de mudanças da democracia popular para a democracia multipartidária que permitem inventar e viver a dimensão específica de moçambicanos e africanos. A mudança é necessária para a realização de um mundo melhor e do desenvolvimento da democracia (particularmente de dois fenômenos que o marcaram profundamente.

Primeiro, o fim da História, que não foi positivo para os moçambicanos, porque é incompatível com a democracia da qual a liberdade econômica é fonte dessas desigualdades sociais; segundo, os 50 anos das independências africanas que passaram tempo de

oportunidades perdidas sem um projeto do futuro, da guerra civil dos 16 anos e do Estado dela resultante, a Restauração.

Esse panorama histórico tão modificável e imprevisível (a partir dos eventos políticos em 2013, antes das eleições presidenciais de 2014, Moçambique caiu numa nova guerra civil que dura até o ano em curso,2016), constitui um campo em plena efervescência, oferecendo-se à pesquisa da filosofia africana. Em outras palavras, Ngoenha valoriza o homem concebido como sujeito ativo no seio da comunidade, produzido pelos ventos da mudança.

O desafio de sua época consiste em avaliar a luta pela independência de Moçambique e pensar a criação de estruturas políticas e administrativas, através de um processo de diferenciação que opõe por exclusão e, às vezes, militarmente, o povo ao Estado402(durante o processo das eleições presidenciais e legislativas) pelos processos democráticos, caindo no atomismo próprio das teorias do contrato social: “na origem da conveniência social reside, como pacto de união, o contrato social. Sempre que a fratura e os conflitos se evidenciam, é de fato, o contrato social que se rompe”403.

O ponto essencial que opõe Ngoenha e Hegel é o emprego que este último faz das teorias do contrato social. A sua abordagem sobre o problema do Estado: questão da cidadania valoriza o indivíduo no seio da sociedade. Ele recusa fazer enraizamento da cidadania nas teorias do contrato social, por entender que essas teorias são parcialmente responsáveis pelos acontecimentos do ‘terror’404 jacobino.

O ponto importante, aqui, a anotar é que, no contexto da Filosofia Africana – das independências às liberdades, o problema da corrente hermenêutica é elucidado de modo análogo ao do Princípio Esperança, que é aludido por Bloch a uma tarefa específica da filosofia: “Anseio, expectativa e esperança necessitam, portanto, de sua hermenêutica, a aurora do que está diante de nós exige seu conceito específico, o novum requer o seu conteúdo

402NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 158. No fundo, o maior perigo da nossa democracia está na brecha entre o povo e o Estado, o povo e as elites, o povo e os aparatos (econômico, político-militar).

403NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 158.

NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 164. Trata-se de tirar o Estado da sua auto-referencialidade e submetê-lo, concretamente, ao controle dos cidadãos através do qual os direitos e os deveres do cidadão encontram um terreno de realização efetiva. Isto implica ultrapassar a democracia como simples participação do povo (cidadão) nas eleições. Significa que todos os sistemas (político-administrativo, econômico e cultural) devem submeter-se a um controle democrático.

avançado”405. O pensamento de Ngoenha evolui e o lugar privilegiado de sua evolução encontra-se precisamente na Hermenêutica. Nessa perspectiva, entende-se que Ngoenha possa dizer que, para a corrente hermenêutica da África atual, “a sabedoria africana deve construir a pedra angular [da filosofia] e o lugar do filósofo deve ser interpretar a tradição à luz do presente”406.

De Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica à Filosofia Africana - das independências às liberdades, há, pois, uma evolução considerável no pensamento de Ngoenha, mas também há uma profunda unidade nessa evolução. Trata-se sempre do pensamento de Ngoenha e de um pensamento que pensa o necessário. O fio condutor que permite entender a transformação concentra-se no problema da História. Fixemo-nos em alguns dados que elucidam a evolução das ideias do autor.

Por uma dimensão da consciência histórica moçambicana apareceu em 1992, durante o fim da guerra civil dos 16 anos. Depois, veio a paz, a democracia e todo o engajamento político de Ngoenha de que se sabe. Mais tarde, em 1994, aconteceram as famosas primeiras eleições multipartidárias (presidências e legislativas), o momento da mudança e o autor escreve a Filosofia Africana - das independências às liberdades em 1993, um ano antes das eleições. Neste livro, a abordagem Foucaultiana permite uma identificação da tarefa do cidadão. Cabe aos cidadãos pensar o que é necessário para contar a história de Moçambique a fim de identificar novas possibilidades de fazer emergir a questão do sentido do momento histórico em que vivem: “única coisa que pode dar sentido e valor à história é o interesse pelo conjunto, pela marcha da humanidade em direção ao mundo melhor407.

Ngoenha chama atenção sobre a extrema precaução necessária para a luta da unidade moçambicana para a realização da democracia, da paz e do desenvolvimento que não pode ser concretizada apenas com uma possibilidade de racionalidade, mas também da fantasia, da utopia como métodos inovadores e inventivos: “Se a unidade moçambicana existe, só pode ser fundada sobre uma comunidade de comunidades”. Na verdade, não se pode utilizar a categoria da utopia sem postular um tipo de desenvolvimento comum a toda variedade de homens.

405BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, v.1, p. 17.

406NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 113.

407 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, P. 10. Continua em NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 5. “À nossa geração incube a árdua tarefa de participar na elaboração de um futuro diferente do presente, que nos é dado viver e observar”.

A luta pela unidade moçambicana deve ser feita pelos povos de pequenas comunidades, pois só eles podem concretizar, na unidade moçambicana, a necessidade de apropriar-se do seu destino. Hoje, a melhor maneira de pensar o futuro tende a dar autonomia ao povo das pequenas comunidades, a possibilidade de assumir e guiar a sua própria história local. Ngoenha convida o povo moçambicano a pensar a tarefa do Estado moçambicano na concretização desse processo efetivo para evitar um futuro desastroso. A discussão sobre a tarefa ngoenhiana do Estado deve necessariamente partir dessa consideração do Estado como concretização histórica do papel que o povo pode ocupar realmente na vida política das pequenas comunidades.

O povo das pequenas comunidades pensa a liberdade por intermédio das instituições locais que expressam a sua realização. Neste contexto, Ngoenha exige compreender a afirmação segundo a qual o problema do futuro é complexo, pois o futuro não se resume a projetos de construção civil de escolas, hospitais ou estradas e pontes, mas ele é um pensamento utópico da cidadania concretizado nas instituições político e administrativas que asseguram o desdobramento efetivo dessa capacidade de sonhar e fantasiar um mundo novo.

O mais alto dever do povo moçambicano é ser aluno de uma instituição de educação, o que significa que ele participa de um processo onde se aprende a ser um homem livre, democrata, pacífico, justo na sociedade. É na “escola onde se aprende a decidir e a escolher o destino dos indivíduos e de todo um povo” 408. Trata-se de aprender a intervir conscientemente em cada um dos assuntos que dizem respeito à vida do homem e do povo moçambicano.

As mutações da época não somente ofereciam um valor principal para o homem em pleno Moçambique independente, como também davam a qualquer homem oprimido o caráter provisório de doce sabor da liberdade das instituições desse Estado novo. Para esse tipo de ser homem da realidade cultural de seu tempo ou, ao menos, para o que ele pensava ser o reino da independência de Moçambique – sobre o qual o homem observa que se tratava do mais sonhável e esperado direito de “ser senhor do seu próprio destino e da sua própria história”409.

Eis que, de repente, o homem expôs-se ao problema mais importante de Moçambique, que a história do país encarregou-se de ampliar. Entretanto, uma leitura atenta ao livro Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica evidencia depressa – Ngoenha o diz claramente – que não se trata da escolha de um modelo político, jurídico ou constitucional, mas

408NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 7. Cfr. P. 21 (falta-nos valores)

409NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 14. Para mais informações cfr. P. 21. (Em relação ao futuro).

o de “saber que lugar queremos exercer na história de amanhã”410. O caráter “divino” do povo moçambicano não é o de reconhecer-se sujeito ativo, mas de instrumento materializador de projetos alheios inventados por outros.

Pode-se relacionar essa afirmação com a célebre ideia do capítulo I: A história vista da periferia do mundo – A) História e Identidade da obra Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica, onde Ngoenha apresenta a obra como centrada no futuro: “O nosso centro de interesse é o futuro”411. Para dizê-lo de uma maneira um pouco clara: “Não é o passado que conta, mas o futuro”.

Rigorosamente, não se pode descartar o passado na possibilidade de o homem participar na construção do mundo novo, pois ajuda o homem a não “continuar a suportar um peso sem conhecer a razão”412. Assim, o passado não se opõe ao futuro como se fossem dois momentos de tempo incompatíveis. Ngoenha visa a apreender a importância da relação entre o passado e o futuro, tentando elucidar, na verdade, que se trata de três momentos de um mesmo tempo. Ou seja, toda prioridade na vida do homem deve ir para o futuro; sendo que não existe nenhum futuro que não se apoie no passado e no presente.

“O futuro é hoje”413. Este é um dos pontos mais sensíveis da futurologia de Ngoenha. Só há uma contradição aparente entre a nossa “missão-futuro” e o futuro é hoje; quer dizer, o lugar do homem na problemática da construção do futuro (o tipo de futuro, amanhã) e o tipo de sociedade ou de homem queríamos ter hoje (aqui e agora).

A consciência de cada um dos moçambicanos veio a ser uma condição capital do futuro melhor: “O nosso devir dependerá da tomada de consciência e da maturação política e cultural desta consciência rural”414. Pode também acontecer que o povo moçambicano afaste-se do seu

410NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 22. A ideia continua em NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 7. “O problema de democracia não é redutível a uma simples questão de eleições de partidos ou de presidentes, mas implica antes de mais, e sobretudo, o lugar ocupado pelo povo nas decisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito, e nos mecanismos jurídicos, para que tenha um controle real sobre a realidade política, económica, social e educativa”.

411 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 25.

412NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 72.

413NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 80.

414 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 80.

lugar e papel na medida em que se afirma a participação passiva dos cidadãos na afirmação e no progresso da sociedade ou uma realização do futuro que tem condicionamentos ideológicos.