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Com o forte desenvolvimento da indústria cinematográfica no início do século 20, os princípios de ilusão proporcionados pela estereoscopia foram traduzidos para utilização nos filmes. Zone (2007, p. 89) descreve esse período composto por uma série de inventores patenteando equipamentos com tecnologias semelhantes. Essa simbiose entre as capacidades ótica e de ilusão proporcionadas pelo cinema começou a tomar espaço na literatura de ficção na primeira metade do século 20. Como já observado, o surgimento das novas linguagens discursivas foi acompanhado por momentos de crítica social, que por vezes envolviam especulações sobre o resultado da adoção e de devoção a essas tecnologias. Entre as obras que abordaram o uso do cinema como elemento não apenas ilusório, mas alienante, está a célebre Admirável

Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley. Na obra, Huxley descreve o cinema ou filme sensível como um conjunto de equipamentos instalados nas poltronas que permitiriam ao espectador sentir os efeitos da obra audiovisual:

- Coloque suas mãos nesses botões metálicos que estão nos braços de sua poltrona. [...] Sem isso você não terá nenhum dos efeitos do Sensível. [...] muito mais reais do que a própria realidade, surgiram as imagens estereoscópicas de um negro gigantesco estreitamente abraçado a uma jovem [...] O Selvagem sobressaltou-se. Aquela sensação nos seus lábios! Ergueu a mão para levá-la à boca; o leve roçar dos lábios cessou; deixou recair a mão no botão metálico; a sensação recomeçou (HUXLEY, 2003, p. 204).

Em 1936, obras audiovisuais como Audioscopiks, de Jacob Leventhal, já impressionavam o público a partir de imagens que “saltavam da tela” a partir do uso de óculos 3D (ZONE, 2007, p. 143). O auge desse cinema chega com a obra Bwana Devil, filme americano de 1952. Foi durante a estreia dessa obra que a cena mítica de uma plateia de cinema usando óculos para projeções em 3D foi retratada.

Figura 8 – Original J.R. Eyerman na Revista Life e em A sociedade do espetáculo

Fonte: Aphelis.com (2010).31

A figura 8 é um registro icônico do fotógrafo J. R. Eyerman para a revista Life e que posteriormente será publicada na capa do livro de Guy Debord, A sociedade do espetáculo, publicado em 1967. Mas diferentemente do imaginário de alienação que essa imagem ainda hoje carrega, o relato sobre as reações da audiência da época 31 Disponível em: https://aphelis.net/cover-debord-society-spectacle/. Acesso em: 23 nov. 2019.

parece identificar que tais truques de imagem não conquistaram por completo a plateia.

Estas criaturas megalópicas são a primeira audiência pagante para a mais recente novidade cinematográfica, a Visão Natural. Esse processo consegue um efeito tridimensional usando dois projetores com filtros Polaroid e dando aos espectadores óculos Polaroid para usar. O filme [...] fez atingir algumas sequências marcantes tridimensionais. Mas a plateia relatou que os óculos eram incômodos, e o filme [...] tedioso, acabou como acordo geral que o público em si parecia mais surpreendente do que qualquer coisa na tela32 (LIFE, 1952, p. 146, tradução nossa).

É possível observar nesse relato que, já na década de 1950, o simples recurso de colocar um dispositivo de ampliação das qualidades da imagem não garantia o engajamento da audiência e demonstrava que novas tecnologias não superavam a importância da narrativa bem desenvolvida. A partir de 1954, o Cinemascope começa a dominar o cinema, e afasta o uso de óculos de tridimensionalidade para dar lugar a telas maiores e mais envolventes. Essa fase também é marcada pela chegada da televisão aos lares americanos e início dos primeiros sinais de redução de audiência nas salas de projeção. Tecnologias já desenvolvidas e de conhecimento pelos produtores de cinema foram resgatadas no sentido de tentar conter o êxodo das salas.

[...] inovações técnicas que vinham sendo resistidas durante anos, tornaram-se atraentes para aqueles que controlavam os negócios para pesquisa e desenvolvimento (P e D). A distribuição, e não a P e D, impulsionavam Hollywood, mas o próprio meio filme era uma inovação tecnológica, e a indústria cinematográfica havia sido salva uma vez antes, durante uma queda desastrosa com o advento de uma nova tecnologia cinematográfica, as ‘falas’33 (RHEINGOLD, 1992, p. 54, tradução nossa).

Entre as tecnologias surgidas nessa fase de reação ao avanço da televisão, estava o Cinerama, tecnologia precursora do que hoje conhecemos como o cinema

32 No original: These megalopic creatures are the first paying audience for the latest cinematic novelty, Natural Vision. This process gets a three-dimensional effect by using two projectors with Polaroid filters and giving the spectators Polaroid spectacles to wear. The movie at the premiere, called Bwana Devil, did achieve some striking three-dimensional sequences. But members of the audience reported that the glasses were uncomfortable, the film itself — dealing with two scholarly looking lions who ate up quantities of humans in Africa — was dull, and it was generally agreed that the audience itself looked more startling than anything on the screen.

33 No original: […] another technical innovation that had been resisted for years became attractive to those who controlled the purse strings for research and development (R&D). Distribution, not R&D had driven Hollywood, but the film medium itself was a technological innovation, and the film industry had been saved once before during a disastrous slump by the advent a new cinema technology, “talkies”.

IMAX e influenciadora para as primeiras experiências de RV na área do entretenimento. O Cinerama foi inventado por Fred Waller e tinha por objetivo oferecer um campo visual superior ao cinema comum, fazendo com que as imagens completassem toda a visão periférica da plateia na sala de cinema. Os primeiros experimentos ocorreram na década de 1930 e foram financiadas pela Força Aérea dos Estados Unidos.

A partir de câmeras e projetores sincronizados, dois em cima e três embaixo, Waller desenvolveu o que pode ser considerado como os primeiros simuladores de voo utilizando imagens. Já na versão apresentada à Hollywood, a captação de imagens ocorria a partir de três câmeras sincronizadas e que depois eram transmitidas em três projetores em salas de cinema construídas especialmente para essa tecnologia (RHEINGOLD, 1992, p. 54). Como já mencionado, enquanto o som representou uma transformação para a sétima arte, o surgimento do cinerama foi destacado pela imprensa especializada da época como uma nova fase do cinema.

Cinerama não é um sistema de filme estéreo, nem seu inventor o chama de sistema tridimensional. É, em vez disso, um meio de trazer vastidão para a tela sem distorção ou perda de definição e para criar uma sensação de espaço através de um novo tipo de tela maior, que preenche o arco de proscênio do teatro. [...] Uma das invenções mais importantes da história dos filmes. Dá a completa ilusão de efeitos de três dimensões em cor e som sem o uso de óculos34 (WIDE SCREEN MUSEUM, 2000, tradução nossa).

O primeiro filme produzido para a nova tecnologia foi exibido no dia 30 de setembro de 1952, no Broadway Theatre em Nova Iorque, com o sugestivo nome This is Cinerama. Nessa primeira obra, foram apresentadas uma sequência de pequenos filmes produzidos para a nova tecnologia. O filme começava com uma tomada de uma montanha russa com a câmera posicionada em primeira pessoa, recurso ainda hoje muito mal utilizado para apresentar a tecnologia da RV.

As sensações proporcionadas pelo Cinerama foram motivo de estudo e desenvolvimento de novos equipamentos que simulassem o sentido de imersão. Morton Heilig, americano nascido em 1926, foi chamado para servir ao exército dos Estados Unidos à véspera do ataque à cidade japonesa de Hiroshima, em 1945. Após

34 No original: Cinerama is not a stereo film system, nor does its inventor call it a three-dimension system. It is, instead, a means of bringing vastness to the screen without distortion or loss of definition and to create a sense of space through a larger, new type of screen, which fills the proscenium arch of the theatre. […] One of the most important inventions in the history of films. It gives the complete illusion of three dimension effects in color and sound without the use of glasses.

dois anos de serviços prestados como operador de cinema e fotógrafo, reuniu suas economias e, juntamente com recursos de uma bolsa da Fundação Fullbright e seus estudos em cinema realizados em Roma, resolveu investir na produção de filmes documentais por conta própria. De acordo com Rheingold (1992, p. 51), Heilig era “um ‘entusiasta’, [...] mais um visionário de Holywood do que um informático de Cambridge, Massachussets, ou um artista-tecnológico saído da universidade”. Heilig ficou fascinado com as possibilidades que o novo cinema imersivo aspirava e trabalhou no protótipo de equipamentos como o Sensorama e a máscara telesférica (Figuras 9 e 10). Esses equipamentos tinham por objetivo promover uma convergência de sentidos a partir de ambientes controlados e virtuais, e que Heilig nomeava como “teatro de experiência” (DELANEY, 2014, p. 117).

Figuras 9 e 10 – À esquerda, o Sensorama. Na direita, a máquina telesférica.

Fonte: Mortonheilig.com (2004).35

Heilig redigiu um manifesto, convidando os estúdios de Holywood e o governo a empreender um projeto de pesquisa e desenvolvimento relacionado ao som, à visão periférica, à vibração e elementos do vento nesses teatros de experiências. Não obteve retorno, e com 26 anos de idade foi para o México para produzir documentários. Aproximou-se de um grupo de intelectuais, engenheiros, pintores e arquitetos e em 1955 publicou o primeiro artigo sobre o tema na revista Espacios,

destacando a sua visão para o “cinema do futuro”. Nesse texto, aponta para os avanços que ocorreriam no cinema, desde a forma de captação de som e imagem, como na amplitude dos filmes durante a exibição e projetou um novo tipo de experiência, e que atualmente é proporcionada exclusivamente pelas tecnologias da RV: “A tela não chegará a somente 5% do campo visual, como a tela do cinema local, ou os 7,5% do Cinemascope, ou os 25% do Cinerama, mas sim 100%. A tela se curvará passando por trás das orelhas do espectador, e além de sua esfera de visão, para cima e para baixo36” (HEILIG, 1992, p. 283, tradução nossa).

Os apontamentos de Heilig tiveram grande repercussão no México, levando o ministério da educação do país a investir nos estudos do equipamento que Heilig visionara. Porém, de acordo com a história narrada por Rheingold (1992, p. 57), três possíveis investidores morreram em acidentes de avião em tragédias separadas. Sem financiamento para a construção de um equipamento piloto para o seu projeto, o pesquisador retornou para os Estados Unidos para tentar dar novo rumo ao que viria a ser o primeiro, e um dos únicos, protótipos do Sensorama.

Ele foi projetado para exibir tipos variados de atrações: um passeio de carro pela praia; um passeio de moto por ruas do bairro do Brooklin, na Nova Iorque dos anos 1930; um voo de helicóptero sobre a Califórnia, nos Estados Unidos, e uma simulação que envolvia a companhia de uma mulher durante um passeio de bicicleta seguido por um jogo na praia e, por fim, uma dança do ventre da modelo.

Parecia como se eu estivesse sentado no assento da frente segurando o volante, mas não havia modo de guiar nenhum dos veículos em que eu viajava; eu era restritamente um passageiro. [...] O efeito estereoscópio não era como os displays multimilionários que eu havia visto em exibição da Lucasfilm na Disneylândia, [...] mas havia um sentido perceptível de profundidade, o buggy balançava, o guidão da motocicleta vibrava, e a brisa soprava contra as minhas têmporas. O condutor da motocicleta era imprudente, o que me fez sentir levemente desconfortável, e foi a minha grande satisfação37 (RHEINGOLD, 1992, p. 52, tradução nossa).

36 No original: The screen will not fill only 5% of your visual field as the local movie screen does, or the mere 7.5% of Wide Screen, or 18% of the "miracle mirror" screen of Cinemascope, or the 25% of Cinerama—but 100%. The screen will curve past the spectator's ears on both sides and beyond his sphere of vision above and below.

37 No original: It looked as if I were sitting in the front seat and holding on to the handlebars, but I had no way of steering any of the vehicles I found myself riding; I was strictly a passenger. […] The stereoscopic effect was nothing like the kind of multimillion-dollar displays I had seen at Lucasfilm’s Disneyland, […] but there was a perceptible sense of depth, the dune buggy did lurch, the

motorcycle handlebars did vibrate, and breezes did blow against my temples. The motorcycle driver was reckless, which made me very uncomfortable, much to my delight.

A operação do aparelho era semelhante ao uso dos chamados Arcades, equipamentos comuns entre os anos 1960 e 1990, que continham jogos digitais e a operação ocorreria a partir do uso de moedas. Esse projeto chegou a ser patenteado no início dos anos 1960, mas expirou nos anos 1970 (RHEINGOLD, 1992, p. 50). Um segundo equipamento, que teria por objetivo ser o simulador portátil do Sensorama, Heilig chamou de a máscara telesférica.

Não havia um projetor de televisão estereoscópico que animava a máscara com imagens, mas era definitivamente um display de cabeça, construído e patenteado cinco anos antes de que Ivan Sutherland desenvolvera no MIT, o display gráfico computadorizado na cabeça, mais conhecido como predecessor histórico dos capacetes de realidade virtual de hoje em dia38 (RHEINGOLD, 1992, p. 58, tradução nossa).

De acordo com Rheingold (1992, p. 52), Hollywood poderia ter sido a força motriz original que respaldara o desenvolvimento da RV, em lugar do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e da NASA, como veremos na sequência do trabalho. Porém, na própria visão do autor, Hollywood não tinha capacidade e interesse em gerar pesquisas que desenvolvessem as forças motrizes que nortearam não só a RV, mas diversas outras formas de tecnologias.

Rheingold divide essas duas forças motrizes em: 1) tecnologia habilitante e 2) a convergência científica-tecnológica. Para Rheingold, (1992, p. 61), uma tecnologia habilitante é aquela que faz uma outra tecnologia ser possível. No caso das capacidades da RV, seja de ilusão, imersão ou interatividade, ela dependia de um sistema, baseado em computadores e telas, fixado na cabeça e que precisou esperar que as tecnologias habilitantes da miniaturização da eletrônica e da simulação a partir da computação gráfica começassem a ganhar desenvolvimento a partir no final dos anos 1980. Já a convergência científica-tecnológica requer a intersecção de ideias profundamente similares, assim como um elemento de maturação ou evolução da potência ou preço das tecnologias componentes conexas.

É possível observar na tentativa de Morton Heilig a mesma repetição em criar camadas de espacialidade em um meio determinado pela temporalidade exigida na montagem cinematográfica. De certo modo, essas camadas continuavam tentando 38 No original: There was no stereographic television projector to animate the mask with imagery, but it

was definitely a head-mounted display, built and patented more than five years before Ivan Sutherland assembled the head-mounted computer graphics display at MIT – the one that is most widely known as the historical predecessor to today’s VR helmets.

aproximar público e obra do mesmo modo que as paredes e os panoramas procuravam desenvolver e o estereoscópio sugeriu resolver com a sua compactabilidade. Quando essas iniciativas não conseguiram um retorno satisfatório para os agentes financiadores, foram dadas por encerradas, derrotadas ou reprovadas. É comum localizar em referências que tratam dessas tecnologias relações que acabam por envolver o interesse da audiência e o seu fracasso como um problema do meio. Analisadas à luz do objetivo comercial de qualquer produto, essas críticas não estão erradas. No entanto, o que poucos conseguiram identificar é que talvez o problema não estivesse na iniciativa da criação das camadas de espacialidade, mas sim na necessidade de adaptar o meio às necessidades da mensagem ou do conteúdo. Rheingold já nos alertava nos anos 1990 sobre o caminho necessário em alinhar as necessidades dos meios imersivos às capacidades dos computadores.

A visão de Heilig de um meio para transmitir experiências artificiais multissensoriais está prestes a se tornar realidade nos anos 90, mas o caminho que leva às tecnologias da RV de hoje não vem do cinema. Em vez disso, foi o desenvolvimento das máquinas pensantes, junto à extensão das ferramentas baseadas no computador para amplificação da percepção e cognição humanas que levou ao surgimento de uma forma de teatro de experiência a partir do campo não mais cinemático - a ciência da computação39 (RHEINGOLD, 1992, p. 60, tradução nossa).

Além das mudanças que o cinema enfrentava em razão da chegada da TV aos lares americanos, outro assunto começou a fazer-se presente nos Estados Unidos dos anos 1950, com o início do desenvolvimento de interfaces gráficas entre computadores e os usuários.