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Na obra, Biocca e Levy começam essa relação projetando como a RV, no futuro, afetaria a prática do jornalismo. Nas palavras dos autores: “50 anos no futuro, quando a comunicação na era da realidade virtual estará em plena operação” (BIOCCA; LEVY, 1995, p. 137, tradução nossa). É importante já observar essa projeção dos autores em relação ao tempo necessário para a consolidação da RV. Tomando a data da publicação da obra, os autores previam a plena operação da tecnologia para meados do ano 2045. Ou seja, atualmente, mesmo com todo o desenvolvimento, estaríamos ainda na metade do caminho para atendimento pleno da tecnologia. Essa previsão dos autores é bem menos otimista em comparação ao discurso de agentes promotores da tecnologia da época. Nós veremos esse tema da construção do imaginário da RV e o resultado de sua problemática atual quando chegarmos na quarta etapa do trabalho.

Retomando o trabalho de Biocca e Levy (1995), entre os elementos que levaram a esse questionamento sobre a mudança do exercício jornalístico, está a relação entre as dúvidas que pairavam na década de 1990 sobre a entrega de notícias a partir da televisão interativa64. No entanto, Biocca (1995) aponta que, para a RV ter o impacto mencionado, é necessário que ela saia dos laboratórios e se aproprie das características de um meio de comunicação de massas e que algumas dessas características podem ser emprestadas das práticas comunicativas existentes. Como um meio de massas, “a RV pode preencher o mais antigo sonho dos jornalistas, em conquistar o tempo e o espaço” (BIOCCA; LEVY, 1995, p. 137, tradução nossa)65. Veremos um aprofundamento a respeito da espacialidade na narrativa ao final dessa etapa do trabalho, quando aportaremos reflexões de autores contemporâneos, entre eles Lev Manovich. Na opinião de Biocca (1995), a conquista do tempo e do espaço sempre foram intenções do jornalismo. As tentativas para produção desse tipo de experiência tiveram início, por exemplo, por influentes jornalistas americanos, como Edward Murrow e Walter Cronkite em programas surgidos primeiramente no rádio e que depois foram transportados para a TV, como Hear it now, See it Now, e You are

64 Para informações sobre esse tema, Tuomi (2016) estrutura um histórico sobre a televisão interativa na contemporaneidade.

65 No original: As a mass medium, virtual reality could fulfill the oldest dream of the journalist, to conquer time and space.

there, em que era proposta a capacidade de reconstituição dos acontecimentos de modo imersivo

Como ressaltado por Biocca e Levy (1995), na época desses estudos, os dispositivos de RV estavam localizados exclusivamente dentro de laboratórios, operando a partir de dispositivos únicos, com no máximo uma cópia para permitir as experiências de telepresença, determinados basicamente por um sistema composto por um visor que controlava remotamente os movimentos de uma câmera. Essa câmera poderia ficar distante do usuário e permitia a ele observar um local determinado e imóvel em 360º a partir da rotação desse dispositivo. Trabalhos como o de Hirose, Yokoyama e Sato (1993) propõem um modelo que, ao invés de uma câmera de vídeo orientada pela direção do olhar, o usuário observa uma costura de imagens fotográficas, e que, posteriormente, transforma-se em um domo virtual, permitindo assim que mais de um usuário pudesse ver a imagem ao mesmo tempo.

No entanto, os Biocca e Levy (1995) já identificavam, mesmo em um sistema que compreendia possibilidades tridimensionais, e de uso por massas, uma repetição da passividade desses equipamentos, sugerindo um modelo de produto de RV que permitisse interatividade do usuário diretamente com o jornalista presente no lugar dos fatos: “Em vez de receber passivamente imagens e sons tridimensionais ou interagir com simulações, que tal se as audiências pudessem interagir com as pessoas nas notícias, com os jornalistas que relatavam as notícias e os atores sociais cobertos66?” (BIOCCA, LEVY 1995, p. 141, tradução nossa). Essas projeções da tecnologia são, até o momento, impraticáveis, mas cabe destacar a compreensão do autor a respeito das mudanças a qual a RV traz ao jornalismo.

Assim como os ambientes de notícias virtuais afetarão o público, eles também terão, acreditamos, impacto substancial no trabalho dos jornalistas. Como, por exemplo, as normas profissionais de objetividade serão afetadas? […] As questões de objetividade e modos de abordagem nos levam à principal problemática da simulação e sua relação com a realidade que as notícias procuram representar67 (BIOCCA; LEVY, 1995, p. 142, tradução nossa).

66 No original: Instead of passively receiving 3-D images and sound or interacting with simulations, what if audiences could interact with the people in the news, the journalists reporting the news and the social actors being covered?”

67 No original: Just as virtual news environments will affect audiences, they will, we believe, also have substantial impact on the work of journalists. How, for example, will professional norms of objectivity be affected? […] The questions of objectivity and bias bring us to the more troubling issue of simulation and its relation to the reality news seeks to represent.”

As preocupações de Biocca e Levy (1995) fazem relação com uma suposta compreensão geral, tanto do público como dos jornalistas, para uma desqualificação da simulação pretendida pela RV para a apresentação de notícias. Articulando apontamentos de Jean Baudrillard (1983), os autores defendem:

Um jornalista de jornal recria um evento usando uma linguagem empolgante. Uma equipe de reportagem de TV edita a exibição de uma demonstração. […] No noticiário da televisão, a versão moderna da simulação pura vive na tendência atual de reconstituição de novos eventos. Às vezes, as reencenações tentam aprofundar a ambiguidade da simulação usando as pessoas reais como atores. Mas essa forma de simulação viola as normas jornalísticas aceitas para uma comunidade de profissionais de mídia desconfortável com qualquer prática que fragilize sua reivindicação de representações reais68 (BIOCCA; LEVY, 1995, p. 143, tradução nossa).

Sobre o uso, por vezes desapercebido, da simulação no jornalismo, os autores apontam:

Considere a guerra EUA - Iraque. As maiores redes de notícias usaram modelos gráficos para representar o movimento dos tanques sobre o terreno. O modelo representa o movimento real no campo de batalha. Notícias não carregam apenas informação, elas carregam modelos de eventos sociais e processos. A simulação computacional está ampliando caminhos válidos para apresentar notícias69 (BIOCCA; LEVY, 1995, p. 143, tradução nossa).

Retomando Jean Baudrillard, Biocca e Levy (1995, p. 144) destacam que é mais racional assumir que uma reportagem não é necessariamente irreal, mas uma simulação do real com todas as insuficiências que isso sugere. A RV, prosseguem os autores, “poderá estender o poder dos nossos sistemas semióticos para filtrar e construir visões do mundo ao nosso redor, ao mesmo tempo em que poderá permitir um resgate da objetividade”70, a partir do uso de vários pontos de vista e diferentes cenários permitidos a partir da simulação. Eles destacam ainda que todas essas

68 No original: A newspaper journalist recreates an event using vivid language. A TV news crew edits a view of a demonstration. […] In television news, the modern version of pure simulation lives on in the current trend toward reenactment of new events. Sometimes, the reenactments attempt to deepen the ambiguity of the simulation by using the real people as actors. But this form of simulation violates accepted journalistic norms to a community of media workers uncomfortable with any practice that will loosen its claim to real representations.

69 No original: Consider the UN-Iraq war. All major news networks used graphic models that

represented the movement of tank forces over a terrain. The model represented the real movement on the battlefield. News does not just carry information, it carries models of social events and processes. Computer simulation is increasingly a valid way to present news.

70 No original: Virtual reality further extends the power of our semiotic systems to filter and construct our views of the world around us.

recriações podem incluir diferentes perspectivas divergentes sobre um mesmo tema. Na sequência do trabalho nós nos debruçaremos sobre a obra de De la Peña (2010) que utiliza pela primeira vez a expressão jornalismo imersivo e incentivou uma série de estudos sobre o cruzamento da RV e o jornalismo. No entanto, é fundamental conservar essas propostas teóricas de Biocca e Levy (1995) envolvendo a espacialidade e a participação. Veremos que elas estão ausentes na proposta de Nonny de la Peña (2010) para o jornalismo imersivo e, talvez, um dos motivos dessa restrição ocorra pela insuficiência de recursos localizados nos primeiros dispositivos de RV, como o Google Cardboard.