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3.3 ORIGEM DO CONCEITO DE JORNALISMO IMERSIVO

3.3.2 Indução de sofrimento psicossomático na RV: a primeira experiência

Após desenvolver as bases conceituais, De la Peña (2010) apresenta a aplicação dos fundamentos imersivos a partir de uma experiência empírica que teve por objetivo avaliar a percepção de usuários submetidos a sessões de testes em RV. Na experiência, chamada Indução de sofrimento psicossomático na RV89, os usuários colocavam na cabeça um HMD, ainda bastante primitivo comparado com os dispositivos atuais, sentavam-se em uma cadeira e seguravam as mãos atrás das costas. Junto ao corpo do usuário, era montado um sistema para aferição dos sinais, como a pressão arterial e a respiração. No caso da respiração, o sistema enviava a leitura dos sinais do usuário para o programa que controlava o avatar, de modo que a

88 No original: With appropriate multisensory correlations it is possible to give people the illusion that alien objects (such as a rubber hand) are part of their body […] or given people a sense of ownership over a virtual body, as if the virtual body had become their own.

respiração do avatar correspondesse à pessoa que via a experiência. Feitos os ajustes, as luzes eram apagadas e o programa começava a operar.

A experiência começava com uma visão em terceira pessoa de um personagem usando roupas utilizadas por detentos prisionais e aos poucos ela mudava para uma perspectiva em primeira pessoa. Isso permitia ao usuário observar que ele estava sendo forçado a ficar em uma posição quase agachada em cima de uma caixa. Na visão em primeira pessoa, quando o usuário olhava ao redor, um espelho virtual o mostrava na posição de agachamento. O avatar e o cenário da experiência foram desenvolvidos a partir de softwares de modelagem em computação gráfica, como Character Studio e Studio 3d Max e Google Sketchup (Figura 15).

Figura 15 – Mosaico de imagens de experiência pioneira em jornalismo imersivo90

Fonte: Montagem do autor a partir de vídeo disponível no YouTube (2018).

Durante a experiência, um áudio abafado produzido a partir de encenação de atores, simulava uma conversa seguida de gritos e súplicas em um lugar 90 No quadro 1, protótipo de HMD; no quadro 2, visão em terceira pessoa e no quadro 3, visão em

espacialmente próximo ao local em que estava a experiência virtual. Segundo De la Peña (2010), a partir de documentos oficiais que continham dados a respeito de interrogatórios, o texto foi passado para a voz ativa e posteriormente encenado por atores. Esse áudio contou ainda com mixagens com o objetivo de simular sua espacialização em uma sala fechada e o interrogatório exigia, de forma enérgica, respostas dos detentos. Ou seja, o usuário que participa da experiência não passa por uma simulação de inquérito. A experiência é simular a presença em uma cela vizinha a um ambiente onde outro detento é interrogado. Tanto a construção das imagens em computação gráfica como a produção dos arquivos gravados em áudio tiveram como fonte fotos, relatórios e documentos oficiais obtidos pela equipe de produção de De la Peña e foram baseadas nas situações de torturas aos quais os detentos da prisão de Guantánamo passavam a partir da ocupação liderada pelos Estados Unidos na chamada Segunda Guerra do Golfo91, em 2003.

Os primeiros resultados dessas experiências identificaram que os usuários, apesar de sentados e relaxados em uma cadeira confortável, sentiram tensão em uma posição dolorosa de agachamento como os avatares que eles observavam. Os participantes também foram entrevistados e, em três dessas entrevistas, houve a gravação de seus depoimentos. A partir desses depoimentos, a equipe de De la Peña separou trechos das falas e os tentou articular com as características fundamentais descritas anteriormente, ilusão de lugar, plausibilidade e posse de corpo virtual, para aferir a relação entre teoria e resultados empíricos.

Um dos principais destaques do trabalho acabou por relacionar com as questões éticas e de credibilidade jornalística para a produção desse tipo de conteúdo. Sobre essas questões, De la Peña (2010) destaca que as mídias tradicionais, como a fotografia e o cinema, representam os mesmos riscos de manipulação, e, nas palavras da pesquisadora, enganam ao tentar representar a totalidade sobre o sofrimento humano.

Afirmamos que essa amostragem e apresentação para o público de material audiovisual, normalmente em telas bidimensionais com baixo campo de visão, é, por si só, enganosa: ao observar um desastre

91 No artigo, De la Peña ressalta que o convite para a participação da experiência foi feito boca a boca, de forma informal e convidando pessoas próximas para a possibilidade de participar dessa experiência. Todas as pessoas interessadas foram avisadas de que o material poderia conter cenas e situações desagradáveis e que todos deveriam pedir para parar sempre que sentissem

necessidade. No entanto, os participantes não foram informados de que a experiência tinha qualquer relação com as notícias da prisão de Guantánamo.

humano em outra parte do mundo pela TV, os espectadores podem ser enganados para inferir que eles entendem o sofrimento humano envolvido. No entanto, o fato é que eles estão apenas vendo e ouvindo uma amostra com baixa resolução da realidade e que não atende a todos os sentidos. Dessa forma, a mídia tradicional pode ser reivindicada para depreciar contínua e sistematicamente a realidade92 (DE LA PEÑA, 2010, p. 21, tradução nossa).

A autora adverte também que o jornalismo imersivo não visa apresentar os fatos, mas algum aspecto da experiência que coexiste com os fatos e que, gerado a partir das boas práticas éticas, constitui uma duplicação muito mais fiel de eventos reais e sugere que o RAIR seja considerado como parte dos critérios para o jornalismo bem elaborado. Por fim, a autora parte dos trabalhos de propostos por Kinnick, Krugman, Cameron (1996) e O'Neil e Nicholson-Cole (2009) para o que viria a ser um dos principais argumentos para a produção do jornalismo imersivo: a indiferença da audiência para problemas atuais em razão da saturação de informação promovida pela imprensa.

As questões da empatia supostamente ampliada pelas tecnologias da RV, segundo a hipótese de De la Peña, não estão dentro dos objetivos desse trabalho. Compreendemos como sintético e objetivo a observação de Novak e Madara (2016, citado por Uricchio et al., 2016b, p. 17, tradução nossa) de que “a empatia tem tantas definições diferentes que as discussões atuais sobre empatia e RV são redutivas”93. Para os interessados, o tema é tratado por autores como Murray (2016), Sánchez Laws (2017) e Shin e Biocca (2018). Como apresentaremos na etapa cinco, em que construiremos uma série de critérios a serem identificados, acreditamos que a empatia se inscreve como um modo de compreensão dos fatos, e é, na nossa avaliação, uma das possibilidades de recompensa que o cruzamento entre RV e jornalismo podem entregar aos que realizam experiências desse meio. A empatia é um dos resultados possíveis, mas dependente de uma série de recursos para ser atendida. Nosso trabalho demonstrará os elementos fundamentais para o atendimento desses resultados.

92 No original: Finally, we claim that this sampling and presentation to the audience of audiovisual material, typically on two-dimensional screens with low field of view, is by itself misleading: while observing a human disaster in another part of the world by TV, the viewers may be misled to infer that they understand the human suffering involved. However, the fact is that they are only viewing and hearing a low resoluti on, sampled, duplicate of reality, that does not cater to all senses. In this sense, traditional media can be claimed to continuously and systematically depreciate reality. 93 No original: […] both pointed out that empathy has so many different definitions that current