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Ao final do século 18, o avanço de técnicas de representação imagética, voltadas à precisão das paisagens, atingiu um novo patamar de atratividade com sua

junção em uma tela circular. Pelas mãos de Robert Barker, irlandês baseado em um quartel general das tropas britânicas na Escócia e responsável pelo ensino da técnica da perspectiva ao exército, surgiu, em 1787, o processo que viria a ser nomeado nos anos seguintes como o de Panorama. Originada a partir da combinação das raízes gregas pan (tudo) e horama (visão), a palavra

[...] é usada para se referir a quase tudo, hotéis, atrações turísticas, agências de viagens, programas de televisão, software de computador, empresas de web design e inúmeras "visões gerais". Ela foi adotada por vários idiomas, como inglês, polonês, francês, alemão, italiano, espanhol, português, russo, checo e indonésio [...]26 (HUHTAMO, 2013, p. 1, tradução nossa).

A primeira grande tela de Barker foi encomendada por um influente major- general e estrategista do exército à época. No entanto, como aponta Grau (2007, p. 86) “[...] o panorama como instrumento móvel de planejamento militar foi um fracasso desde o início. Ao chegar a Londres, logo atraiu a atenção de grande parte da sociedade civil ávida por sensações, tornando-se um agente de gosto popular naquela sociedade do espetáculo”. Em 1793, Londres foi a cidade a ter rotundas, prédios em que eram colocadas as pinturas circulares e grandes plataformas circulares. A rotunda de Leicester Square (Figura 3) tinha dois andares e a pintura principal media 930 metros quadrados (GRAU, 2007, p. 88).

Figura 3 – Rotunda de Leicester Square, Londres

Fonte: Tate.org.uk27 (2018).

26 No original: The word is used to refer to almost anything—hotels, restaurants, tourist attractions, travel agencies, television programs, computer software, web design companies, and countless “overviews.” It has been adopted by numerous languages, such as English, Polish, French, German, Italian, Spanish, Portuguese, Russian, Czech, and Indonesian […].

27 Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-23-autumn-2011/kings-vast. Acesso em: 1 dez. 2019.

Mesmo que os temas dessas instalações buscassem transportar seus frequentadores para temáticas relacionadas à natureza, o panorama carregou, desde sua origem, questões de discórdia para a sociedade da época. Assim como observado na eliminação das bordas nas paredes, identificamos outra característica dos meios de expressão na fase posterior ao seu surgimento, que são as críticas sociais feitas pelas sociedades da época a respeito dos conteúdos. No caso do Panorama, a principal delas estava relacionada às propriedades de ilusão que as instalações concentravam. Assim como as fronteiras atuais da representação que as tecnologias emergentes da RV permitem ultrapassar, as opiniões entre os críticos da época eram também polarizadas “entre aqueles que veem o novo meio como um perigo para a percepção e a consciência e aqueles que o acolhem como um espaço para a projeção de suas fantasias e visões de fusão com mundos de imagens abrangentes” (GRAU, 2007, p. 96). Na etapa quatro do trabalho demonstraremos como a chegada da computação gráfica também foi compreendida como uma ameaça ao jornalismo.

O tema principal das pinturas em panoramas eram as cenas de batalhas. Além da relação entre essas instalações e os interesses militares, o assunto agradava e atraía o público de maior poder aquisitivo, e que tinha condições de pagar a entrada nos panoramas, demasiadamente cara para a época. Mas isso não significa que partes mais pobres da população não tivessem interesse e não participassem da audiência, já que “até mesmo os mais humildes agricultores não se importavam de viajar vários dias apenas para ver o local e o batalhão onde seus filhos haviam lutado” (PECHT, citado por GRAU, 2007, p. 126). A Batalha de Sedan28 foi um entre os mais importantes panoramas já pintados e participou dentro de um modelo ideológico à sociedade da época e que, segundo a análise de Grau (2007, p. 118), “absorvia a ideologia, a submissão e a obediência que levou à Primeira Guerra Mundial”. Por outro lado, também há de se compreender que os temas para serem reproduzidos dependiam das capacidades e limitações do meio. O próprio Grau (2007, p. 139) destaca que:

O panorama é claramente adequado à retratação de paisagens resplandecentes. Espaços confinados e escuros, muitas vezes encontrados no diorama, não seriam convincentes como ilusão se representados na tela convexa do panorama, com sua luz incidindo de cima. Pode-se concluir que a gama de temas é invocada pelo meio.

28 Episódio da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e que, em um dia de combate entre franceses e alemães, deixou um saldo de aproximadamente 26 mil soldados mortos.

Um exemplo que ilustra a posição de Grau sobre as exigências da imagem a serem utilizadas por panoramas, está o panorama Mesdag, na Holanda que propõe uma perspectiva completa de uma praia (Figura 4). Pintado pelo artista holandês Hendrik Willem Mesdag, em 1881, é um dos poucos panoramas produzidos no século 19 ainda disponíveis para visitação.

Figura 4 – Panorama Mesdag, na Holanda

Fonte: Fotografia de autoria de André F. Pase, cedida ao autor (2018).

Sobre a veracidade da representação da cena contida na obra de Sedan, Grau aponta que não havia questionamentos que discutissem a ausência de uma única testemunha da batalha no desenvolvimento da pintura. Para o autor (2007, p. 140) “O aspecto ‘analítico’ dessa pintura ‘verdadeira’ extraído dos relatórios do Estado-Maior, [...] foi sancionado e estabelecido pela força autoritária das palavras do imperador”. O que o autor destaca eram “clamores por um retrato mais realista da guerra, isto é, por mais sangue”. Grau argumenta que a ausência da verdadeira matança na batalha ocorreu porque a “pintura foi projetada para despertar, ou até mesmo criar, sentimentos nacionalistas e patrióticos na audiência. [...] O retrato da violência é confinado a limites estreitos, os quais – como o panorama inteiro – foram calculados para produzir um efeito não muito repulsivo”.

No início do século 20, o panorama não conseguia mais atrair o mesmo público que décadas antes lotavam suas enormes instalações. As rotundas acabaram tornando-se um problema para os investidores, já que tanto a produção de novas imagens, a substituição e o transporte não eram processos fáceis. O tamanho dos panoramas, que no princípio foi um dos aspectos diferenciais foi também um dos elementos responsáveis pela extinção de rotundas em 1928 e durante a Segunda Guerra Mundial todos os rolos com as pinturas foram perdidos (GRAU, 2007, p. 162).

Nesse primeiro intervalo, percebemos a transição entre as características das imagens imersivas, passando dos temas de adoração das cavernas e paredes para

tentativas de representação da realidade, seja por meio da recriação de cenários da natureza ou idealização de acontecimentos históricos. É destaque desse período a produção de imagens em escalas fora da tradicionalidade do quadro, passando a cercar fisicamente e por completo o seu público e sugerir a ilusão de presença nos lugares retratados. Apesar de analógico, esse é o princípio norteador de muitas ilusões digitais, resultado de quando trocamos os limites das diferentes telas por imagens esféricas em alta definição.

Mas para além de outras questões da fidelidade ou idealização dos temas abordados, há um ponto fundamental que precisa ser registrado. A constituição dos temas, seja das paredes aos panoramas, delegados às limitações desse meio já antecipam um traço observado no início da RV atual, que é o desenvolvimento de conteúdos que atendam às capacidades dos dispositivos. Ou seja, um panorama não foi feito para reproduzir a perspectiva vertical necessária para observar o interior de um castelo, por exemplo. Ele foi feito para as horizontalidades de uma praia ou de um grande campo de batalhas.

É importante começar a considerar esse aspecto porque em breve nós chegaremos a uma fase do trabalho em que serão demonstrados os problemas que envolvem discursos que tentam proceder uma substituição da realidade pela tecnologia da RV. Essa tecnologia ainda é determinada por novos fatores limitantes, equilíbrio entre as capacidades energéticas e aquecimento por exemplo. Desse modo, a RV enfrenta limites representativos como aos seus meios antecessores e, desse modo, precisamos começar a constituir uma capacidade crítica quanto ao próprio termo realidade virtual. Algo que será abordado com profundidade na etapa quatro do trabalho.