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Cláusula de inexigibilidade e o seu significado

No documento Os Estados Passionais nos Homicídios (páginas 161-165)

Parte II: Abordagem jurídica

2. As emoções e as situações de exclusão da culpa ou de desculpa

2.3. Estado de necessidade desculpante

2.3.3. Cláusula de inexigibilidade e o seu significado

I. O art. 35º n.º 1 supõe a inexigibilidade de conduta diversa do agente “quando não for razoável exigir- lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”. Tal significa, que esta exigência de comportamento diferente constitui um critério pessoal onde se torna sempre indispensável convencer o juiz da causa de que não era razoável exigir ao agente, segundo as circunstâncias do caso, um comportamento diferente. Contudo, este critério não é meramente individual, uma vez que ainda é necessário uma analise objectivo-pessoal da conduta que se traduz num certo dever de suportar perigos (não apenas gerais mas ta mbém concretos) que é inafastável. Ou seja, é sempre exigido ao agente um mínimo de força de resistência, normativamente determinado, sob pena de o facto aparecer fundamentado por qualidades pessoais e atitudes juridicamente censuráveis371.

370 Cf. FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I (2004), p. 565. 371 Op. Cit. p. 566.

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Diferente do ordenamento jurídico nacional, no direito alemão a exclusão da culpa decorre, como um corolário, dos requisitos objectivos relacionados com o perigo e o bem jurídico ameaçado372.

II. Por conseguinte, a desculpa deve ser negada sempre que a lei exija do agente que suporte o perigo, principalmente se este advir do exercício de determinadas profissões ou da ocupação pelo agente de certas posições sociais à qual se liga o dever de suportar perigos acrescidos ou perigos especiais. Assim, é exigível que o agente suporte o perigo quando sobre ele impedem especiais deveres de suportá-lo e o perigo seja um desses que o agente tem de enfrentar por força da sua condição profissional (por exemplo, soldados, bombeiro, polícias)373, pelo que dificilmente se poderá aceitar a intervenção da cláusula de inexigibilidade se a ameaça se mantém dentro da área típica de perigos que o agente tem o dever de correr ou de suportar, ou mesmo que o agente venha a beneficiar de uma atenuação da pena em função da diminuição da culpa. Todavia, tudo depende, em última análise, da espécie de qualidades pessoais manifestadas no facto e da sua maior ou menor censurabilidade.

III. Também é exigível ao agente suporte o perigo quando este tenha sido criado por si voluntariamente, sendo aplicável, no â mbito do direito de necessidade desculpante, o princípio expresso no art. 34º /a) para o direito de necessidade justificante. Assim, se o perigo é intencionalmente provocado pelo agente, nomeadamente no intuito de poder mais tarde reivindicar-se de uma desculpa por estado de necessidade, esta deve ser em definitivo negada. Nas restantes hipóteses não existem à partida motivos suficientes para negar, a priori, a possibilidade de exclusão da culpa: tudo dependerá do resultado a que conduza a apreciação em concreto da questão da inexigibilidade374.

IV. Para alguns autores, nomeadamente STRATENWERTH, a exclusão da culpa deveria ser negada em hipóteses onde os factos ocorrem no seio de uma comunidade de perigo voluntariamente criada, ou quando sobre o agente reca i, relativamente à vítima potencial, um especial dever de protecção ou de cuidado.

372

Cf. STRATENWERTH, “Strafrecht. Allgemeiner Teil I. Die Straftat” (2000), § 10, n.º 110.

373 Cf. PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Código Penal” (2010), p. 188. 374 Cf. FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I (2004), p. 567.

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São os chamados casos de ilicitude da acção de salvamento que podem ser de dois tipos: numas situações, é o agente mais forte que se apropria do direito de sacrificar os bens jurídicos do lesado; noutras situações, o agente apropria-se do direito de escolher quem vive e quem morre. Em ambos os casos, a ilicitude da acção de salvamento decorre da imponderabilidade da vida da pessoa. São exemplos do primeiro tipo o caso clássico de Mignonette, em que os náufragos esfomeados à deriva num bote matam um deles, o mais enfraquecido, para se alimentarem dele; o caso da tábua de Carneades, em que um de dois náufragos agarrados a uma tábua empurra o outro para a agua, morrendo este e salvando-se aquele; e o caso dos montanhistas, muito discutido na doutrina e jurisprudência alemã, em que o último dos montanhistas agarrados por uma corda resvala para um precipício, arrastando os outros, tendo um deles cortado a corda que os unia. São do segundo tipo o caso do agulheiro, que desvia um comboio de mercadorias descontrolado para uma linha onde se encontravam três trabalhadores, com vista a evitar um choque com um comboio de passageiros; o caso da máquina de reanimação, em que o médico desliga a maquina de reanimação de um doente com 30% de hipóteses de sobrevivência, para a ligar a um doente com 70% de hipóteses de sobrevivência; o caso Holmes ou do piloto de Ferry, que para salvar a maioria das crianças que seguiam no barco sobrelotado lança algumas ao mar, para evitar o afundamento do barco; e o caso dos médicos nazis, que ordenaram que fossem mortos alguns doentes mentais de um estabelecimento hospitalar de modo a evitar que todos os doentes mentais desse estabelecimento fossem mortos375.

Em todos estes casos, pode ter lugar o estado de necessidade desculpante, tudo depende da pura aferição, in casu, da cláusula de inexigibilidade.

V. Diferentemente, CONCEIÇÃO CUNHA376 distingue entre os casos de “comunidade de perigo com pessoa marcada para morrer, de cuja esfera advém o perigo”, como o dos montanhistas, e os casos de “comunidade de perigo sem pessoa marcada para morrer”, como os casos Mignonette, dos médicos nazis, e da tábua de Carneades. No primeiro tipo de casos (com pessoa marcada para morrer), a autora admite a existência de uma causa de justificação nova, o estado de necessidade destituído da cláusula da autonomia pessoal do lesado, o que, além de introduzir o

375

Cf. PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Código Penal” (2010), pp. 188-189.

376 Cf. CONCEIÇÃO CUNHA, “Vida contra vida, Conflitos existenciais e limites do direito penal ”

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arbítrio intrinsecamente associado à incerteza existencial do prognóstico da morte dos “marcados para morrer”, constitui uma causa de justificação “alargada” ou “flexível” que prescinde da dignidade da pessoa do lesado, um estado de necessidade justificante cego ao princípio da solidariedade comunitária. Trata-se em última análise de uma causa de justificação contraditória nos seus próprios termos.

Por outro lado, a autora considera o segundo tipo de casos (sem pessoa marcada para morrer) como “livres de direito”, em que o direito penal não intervém, o que redunda na consagração do arbítrio da lei do mais forte e mesmo numa admissão da contradição radical da ordem jurídica, com prejuízo das regras do direito não penal como sucede no direito marítimo, que dá preferência a certas vitimas como as mulheres, velhos e crianças. O âmbito do art. 35º fica, no parecer da autora, restringido a um outro tipo de casos, os de “comunidade de perigo alternativas”, isto é, de transferência do perigo para um terceiro alheio, como o caso do agulheiro, ou de desapossamento de meios de salvamento, como o caso da máquina de reanimação377.

VI. Não é possível acolher uma tal orientação porque a mesma não leva em consideração o principio da cláusula de exigibilidade. O que se pretende no estado de necessidade desculpante é de aferir se em determinado caso ser ia possível ao agente adoptar um comportamento diferente, por sua vez, licito. Em qualquer dos exemplos clássicos não podia ser exigido aos agentes um comportamento diferente; mesmo nos casos designados pela autora por “comunidade de perigo sem pessoa marcada para morrer”, não era exigido aos agentes, em cada caso em particular, que os mesmos se deixassem morrer, apesar de ser ilícito tirar a vida a outra pessoa para se salvarem. Não se pretende com os exemplos clássicos generalizar formas de desculpação à custa de vidas humanas porque, conforme dispõe o art. 35º, tudo dependerá de uma análise cuidada das circunstâncias de cada caso em concreto; só após essa análise dos factos se poderá concluir se era exigido ou não aquele agente em concreto um comportamento diferente.

A distinção feita por CONCEIÇÃO CUNHA acaba por tornar a exclusão da culpa do art. 35º dependente dos requisitos objectivos relacionados com o perigo e o bem jurídico ameaçado ao invés de submeter a situação em concreto a uma cláusula de inexigibilidade individual como se impõe ao nível da culpa. Tal entendimento, na minha

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opinião, para além de contraditório, acaba por misturar elementos próprios do estado de necessidade justificante com o estado de necessidade desculpante em detrimento da culpa individual do agente in casu. Por conseguinte é de rejeitar tal interpretação do art. 35º CP.

VII. Ainda relacionado com este tema, surge a questão de saber em que termos a proporção ou desproporção dos bens jurídicos conflituantes deve, em última análise, influenciar a própria cláusula de inexigibilidade, nomeadamente se o bem salvaguardado for sensivelmente inferior ao bem lesado, em que medida se deve considerar pura e simplesmente excluída do âmbito do estado de necessidade uma tal situação.

FIGUEIREDO DIAS dá como exemplos de situações deste genero, o caso de A que produz em B uma ofensa grave à sua integridade física para afastar de si o perigo de um leve ferimento; e que C mutila D para afastar o perigo de um ferimento relativamente grave mas reparável. Para este autor, a negação da exclusão da culpa só deve, em princípio, ter lugar em caso de crassa desproporção dos bens em jogo, devendo todos os restantes casos ser decididos em função da cláusula de inexigibilidade da situação em concreto378.

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