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Interpretação do art 133: história do preceito

No documento Os Estados Passionais nos Homicídios (páginas 98-101)

Parte II: Abordagem jurídica

1. Abordagem jurídica aos crimes passionais

1.1. Homicídio privilegiado

1.1.1. Interpretação do art 133: história do preceito

O art. 133.º do Código Penal (CP) de 1982 representa um desvio importante do direito anterior e da tradição legislativa correspondente. No código penal de 1852 previa-se, seguindo o modelo do código francês de 1810, uma secção contendo “as causas de atenuação” referidas genericamente aos “crimes de homicídio voluntário, ferimentos e outras ofensas corporais” (art. 370.º a 375.º). Tratava-se, essencialmente, do regime da provocação como circunstância modific ativa atenuante. A provocação tem dois elementos: um estado emocional de cólera, dor, excitação ou indignação, e um facto injusto do provocador, que é determinante daquele estado emocional, que a ele se segue mais ou menos imediatamente (“em acto seguido”, art. 39.º). A atenuação qualificativa do artigo 370.º acrescenta um requisito negativo, a ausência de premeditação, e um requisito positivo, que o facto injusto consistisse em pancadas ou outras violências graves, com exclusão de injúrias verbais, difamação ou imputações injuriosas e ameaças não qualificadas como crime no art. 363.º (art. 374.º). Com a

178 Cit. SOUSA E BRITO, “Colectânea de Textos de Parte Especial do Direito Penal – Um caso de

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reforma Penal de 1884, a ofensa directa à honra passou a ser considerada como violência grave (circunstancia 4.ª do art. 39.º).

O Código de 1982 seguiu uma orientação radicalmente diferente. Não se regula genericamente a provocação, mas cria-se um tipo de crime, o homicídio privilegiado (art. 133.º), em que o fundamento da atenuação não é a provocação, mas um intenso estado emocional que tanto pode ser causado por provocação, como por qualquer outro facto, mesmo lícito.

O modelo seguido foi o do Projecto de Código Penal alemão de 1962, que por sua vez se inspirou no Código Penal suíço. O código suíço regula em primeiro lugar no art. 111.º o homicídio doloso simples (meurtre), depois no art. 112.º o homicídio qualificado (“em circunstancias ou com uma premeditação que revelam que o individuo é particularmente perverso ou perigoso”) e nos artigos 113.º a 116.º varias formas atenuantes ou privilegiadas do homicídio doloso - passional (art. 113.º), a pedido da vitima (art. 114.º), incitamento e ajuda ao suicídio (art. 115.º), o infanticídio (art. 116.º)179.

Há que destacar, em especial, o homicídio passional (Totchlag) do art. 113.º, nos termos do qual “se o delinquente matou estando dominado por uma emoção violenta180

e que as circunstancias tornavam desculpável, será punido com reclusão até 10 anos ou com prisão de um a cinco anos”.

O projecto alemão de 1962 segue o código suíço enquanto começa por descrever o tipo fundamental do homicídio doloso, a que chama Totchlag, seguindo-se dois crimes privilegiados como formas atenuadas de Totchlag e que têm a seguinte redacção: “Quem matar outrem será punido com prisão maior (Zuchthaus) de não menos de cinco anos. Se o agente é levado a agir em compreensível emoção violenta a pena é de prisão maior até 10 anos, (ou) em casos menos graves, prisão de um a cinco anos. Se a compaixão, o desespero ou outros motivos, que determinem o agente a agir, diminuam substancialmente a sua culpa, a pena é prisão de não menos de um ano. A tentativa é punível”.

O texto português foi também directamente influenciado pelos trabalhos preparatórios do projecto alemão, em particular pela discussão transcrita no vol. 7 das Actas, donde resulta, por um lado, a evidente semelhança entre o art. 139.º do

179

Op. cit., p. 13.

180 Em francês: “lors qu’il était en prie à une émotion violente”; em italiano: “cedendo ad una violenta

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Anteprojecto Eduardo Correia (correspondente à primeira parte do art. 133.º) e a alternativa sugerida por GALLAS e por SCHAFHEUTLE e preferida pela totalidade dos professores de Direito Penal presentes na reunião da Comissão alemã (JESHECK, WELZEL, GALLAS, BOCKELMANN, LANGE, EBERHARD, SCHMIDT), segundo a qual: “Quem, em compreensível emoção violenta, que diminui substancialmente a sua culpa, é levado a matar outrem, será punido com prisão de não menos de um ano”; por outro lado, o Anteprojecto Eduardo Correia, no art. 140.º, retém a qualificação genérica dos motivos que privilegiam o homicídio como motivos “de relevante valor” (ansich achtenswert), fórmula que caracterizava o estado da redacção final por ter prevalecido a critica de Lange, segundo o qual as palavras citadas deveriam ser eliminadas por repetirem o que já é dito pela exigência de motivos que diminuam substancialmente a culpa, uma vez que estes, para diminuírem a censurabilidade, já terão de ser de relevante valor181.

São estas as fontes dos arts. 139.º e 140.º do Anteprojecto Eduardo Correia182. A Comissão revisora aprovou os dois artigos por unanimidade, com leves alterações formais: “é levado” foi substituído por “for levado” e, no art. 139.º, “e que diminui” foi substituído por “que diminua”.

Por último, no art. 136.º da proposta de lei de 11 de Julho de 1979 (Código Penal – Parte Especial), encontramos o texto do art. 133.º do Código actual. A história do preceito sugere que se trata de uma junção dos dois artigos anteriores, resultante da uniformização das respectivas medidas penais, já muito próximas, sem alterar os grupos de casos e a teologia própria de cada artigo. Como tal, a oração relativa final “que diminua sensivelmente a sua culpa” refere-se às duas partes da frase “dominado por compreensível emoção violenta” e “por compaixão, desespero ou outro motivo, de relevante valor social e moral”, e não apenas ao “outro motivo”, como no anterior art. 140.º. A alternativa “outro motivo de relevante valor social e moral” abrange apenas os motivos de compaixão e desespero que se seguem à disjunção básica “ou por”; e,

181

Op. cit., p. 14.

182

Art. 139.º (homicídio privilegiado por provocação): Quem, dominado por compreensível emoção violenta e que diminui sensivelmente a culpa, é levado a matar outrem, será punido com prisão de seis meses a cinco anos.

Art. 140.º (homicídio privilegiado): Quem, por compaixão, desespero ou outro motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa, é levado a matar outrem, será punido com prisão de um a cinco anos.

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finalmente, “dominado” refere-se somente à emoção violenta e não aos motivos seguintes à disjunção183.

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