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Emoção provocada de forma dolosa e negligente

No documento Os Estados Passionais nos Homicídios (páginas 146-150)

Parte II: Abordagem jurídica

2. As emoções e as situações de exclusão da culpa ou de desculpa

2.1. Emoção e imputabilidade

2.1.1. Emoção provocada de forma dolosa e negligente

I. O n.º 4 do art. 20º não exclui a imputabilidade do agente quando a anomalia psíquica contemporânea do factor tiver sido provocada por aquele com intenção de provocar o facto (Actio libera in causa). Neste caso, o agente é considerado imputável porque instrumentaliza o seu próprio corpo de modo a realizar um facto querido pela sua vontade. Trata-se, então, de uma excepção à regra da coincidência entre a inimputabilidade e o facto335.

Segundo PINTO DE ALBUQUERQUE, FERNANDA PALMA e

FIGUEIREDO DIAS, a acção livre na causa pode ser provocada com dolo directo ou necessário, mas não admitem a punição do agente a título de dolo eventual336. TERESA

335

Cf. PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Código Penal” (2010), p. 130, anotação 17.

336

Cf. PINTO DE ALBUQUERQUE, “Comentário do Código Penal” (2010), p. 130; FERNANDA PALMA, “Casos e Materiais de Direito Penal” (2004) p. 102; FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal,

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DE BRITO vai mais longe e admite a acção livre na causa com dolo eventual337. Em sentido contrário, CAVALEIRO DE FERREIRA e GERMANO MARQUES DA SILVA admitem apenas a privação intencional e preordenada da imputabilidade338. Por último, RUI PERREIRA e TAIPA DE CARVALHO admitem a acção preordenada apenas a título de dolo directo339.

II. No caso do art. 133º também se exige que a emoção, não tenha sido provocada pelo agente de forma preordenada (acção livre na causa), uma vez que não pode ser compreensível a emoção causada preordenadamente pelo agente, com o intuito de praticar um homicídio. Nestes casos, o legislador recua a momentos anteriores para fundamentar um juízo de culpa, porque no momento da prática do facto, o agente tem a sua imputabilidade diminuída. Assim, é necessário analisar, nestes factos, o momento temporal da prática do facto com uma certa elasticidade porque a emoção acaba por ser, ela própria, um meio de execução do facto. Por conseguinte, a análise da emoção tem de ser feita, obrigatoriamente, em dois momentos: no momento da prática do facto e na sua origem. Se o agente não pode ser responsabilizado no primeiro momento, já o poderá ser no segundo. Deste modo, apesar da imputabilidade diminuída do agente no momento da prática do facto, ele poderá ser punido não de acordo com o art. 133º, mas de acordo com os arts. 131º ou 132º.

Tal como refere AMADEU FERREIRA: “esta solução deriva directamente do art. 20º n.º 4, em nada respeitando à compreensibilidade da emoção, a não ser em sentido muito amplo, nada nos adiantando para o preenchimento daquele conceito ”340. Todavia, o legislador recua para além do momento da prática do facto para poder fundamentar a culpa do agente, pelo crime cometido, pelo menos nos casos de provocação preordenada da emoção.

III. Nos casos em que a acção livre na causa não é preordenadamente provocada mas que ainda assim é provocada culposamente, isto é, nos casos em que actio libera in

337

Cf. TERESA DE BRITO, 1991, p. 11; citada por PINTO DE ALBUQUERQUE, in “ Comentário do

Código Penal” (2010), p. 130.

338

Cf. CAVALEIRO DE FERREIRA, “Lições de Direito Penal, Parte Geral, I” (1992), pp. 276-277; GERMANO MARQUES DA SILVA, “Direito Penal Português, Parte Geral, II” (1998), p. 158.

339

Cf. RUI PEREIRA, “O consumo e tráfico de droga na lei penal portuguesa ” (1996), in RMP, ano 17º, n.º 65, p. 63; TAIPA DE CARVALHO, “Direito Penal, Parte Geral”, volume II (2004), p. 318.

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causa é provocada com dolo eventual ou com negligência, aplica-se a regra do art. 295º. Segundo FIGUEIREDO DIAS, deixam de funcionar as regras gerais sobre a inimputabilidade, porque o agente apesar de não ser punido pelo facto típico cometido em estado de inimputabilidade provocada, sê- lo-á, de forma independente e autónoma, pelo acto de auto-colocação em estado de inimputabilidade por dolo eventual ou negligência, sendo ainda necessário que, nesse estado, o agente pratique um facto típico, que funciona, unicamente, como condição objectiva de punibilidade341.

Mas no caso do art. 133º e, de uma maneira geral, no surgimento de estados passionais será possível falar de emoções culposamente provocadas mas não preordenadas?

In veritate, para se compreender melhor a própria emoção violenta é imperativo que se o estabelece uma relação entre o estado passional e as suas causas ou motivos, pois, para se entender uma emoção tem de se entender as relações que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e o co ntexto em que se verificou a atitude, de maneira a entender o estado de espírito do agente e a situação psíquica que o levou ao crime. Contudo, a compreensibilidade pode ser afastada se o estado emocional for causado pelo próprio agente.

Para haver privilegiamento do homicídio por emoção violenta é necessário que o agente se encontre dominado por tal emoção, que a mesma seja compreensível, e que seja ela própria a causadora do acto criminoso, ou seja é a emoção que leva o agente a matar (nexo de causalidade entre a emoção e o crime).

Quanto à questão de saber como ajuizar o poder das razões que ocasionaram a emoção violenta, desenham-se na doutrina e jurisprudência duas linhas, sendo uma que entende que este critério deve ser concretizado por referência à personalidade daquele agente que actua; outra que defende que a compreensibilidade há-de aferir-se, não em relação às particularidades concretas daquele agente, mas em relação a um homem médio com certas características que aquele agente detém342. Entendo que no caso da emoção violenta, se está perante um forte estado de afecto emocional que é provocado por uma situação que o agente não pode ser censurado e à qual também um “homem fiel ao direito”, colocado nas mesmas condições, também não deixaria de ser sensível.

341 Cf. FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I (2004), p. 546. 342 Cf. Ac. STJ de 14-07-2010.

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No caso do desespero, o elemento que privilegia o crime é a ausência total de esperança, sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das condições elementares de manifestação da dignidade da pessoa. O desespero significa e traduz-se num estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado emocional do sujeito ao ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo. Deste modo e atendendo às circunstâncias de cada caso em concreto é possível considerar, uma acentuada diminuição da culpa por menor exigibilidade de outro comportamento.

Face as características especiais deste estado emocional, o juízo de culpabilidade terá de ser feito, não com recurso à figura do homem fiel ao direito, mas com recurso à situação daquele agente em concreto naquela situação.

IV. Se analisarmos bem a emoção que acompanha o estado pas sional presente no homicídio privilegiado – independente de se tratar de uma compreensível emoção violenta, compaixão ou desespero – vemos que, de uma maneira geral, o estado passional só se desenvolve e conduz à prática do crime porque o agente permitiu. Ou seja, o domínio do agente pela emoção poderá configurar situações de inimputabilidade no momento da prática do facto, contudo o agente deve ainda responder pelo homicídio praticado, porque sente a emoção a crescer e nada faz para a controlar, deixa-se, voluntariamente, envolver por ela.

Não é possível privilegiar um estado passional quando este é criado pelo próprio agente, aliás o privilegiamento da emoção só se justifica se existirem causas externas à conduta do agente que justifiquem o surgimento de tal estado. Mas o facto de surgir tal estado é um risco tanto para o agente como para terceiros que estejam à sua volta. Uma situação de compreensível emoção violenta provoca no agente uma perturbação emocional devido à intensidade daquela emoção, que acaba por dominar o agente chegando mesmo, no momento de praticar o facto, a priva- lo do seu auto-controlo e do seu domínio sobre o curso causal dos factos. Esta entrega à emoção violenta representa um risco porque, muitas vezes, estas condutas terminam com a morte da pessoa, objecto do estado passional. Privilegia-se a conduta do agente apenas e só quando, por um lado a emoção surge num contexto no qual um homem fiel ao direito não deixaria de ser sensível e quando, por outro lado, essa emoção é de tal forma intensa e violenta a ponto

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de privar o agente, no momento da pratica do facto, do seu raciocínio e da sua relação com a realidade.

A não verificação de uma causa externa que justifique a presença de tal emoção, não pode privilegiar a conduta do agente quando este cria o estado passional. Entendo que o agente quando cria ele próprio o estado passional assume sempre, em última analise, o risco inerente a tal estado passional. Ainda que não assuma o resultado morte como consequência directa da sua colocação naq uele estado, certamente assumirá o perigo inerente à colocação num estado emotivo que lhe retira o discernimento.

O que acaba de se dizer em relação à compreensível emoção violenta também se verifica nos restantes elementos privilegiadores do art. 133º. Por exemplo, não é admissível que o agente, “do nada”, se coloque num estado de desespero e que em consequência do mesmo, mate os seus descendentes; ou ainda que o agente movido por um pressuposto “motivo de relevante valor moral ou social” assassine o chefe de estado. Por conseguinte, entendo que o agente que cria o estado passional, independentemente de ter ou não intenção de cometer o crime, perde automaticamente o privilegiamento da sua conduta.

V. E ainda importante salientar que na análise destes casos se trata, em suma, de um alargamento do conceito de “momento da prática do facto” até ao surgimento da própria emoção que leva ao crime. Este alargamento e não a concepção rígida de fazer equivaler o momento da prática do facto com o momento da sua execução, tem suporte bastante no art. 133º. Aí a culpa diminuída do agente pela prática do homicídio depende de um juízo prévio de compreensibilidade em relação à emoção que levou o agente ao crime. Se não foi a emoção que levou ao crime já não fará sentido aquele juízo de compreensibilidade. Assim, segundo AMADEU FERREIRA: “o juízo de compreensibilidade e o juízo de culpa são juízos de idêntico conteúdo só que referidos a momentos distintos da acção do agente. Ambos se situam ao nível do tipo de culpa”343.

Denote-se que mais uma vez, o legislador não se limita à verificação da emoção, pois sobre ela faz incidir juízos de valor para que possa ser relacionada com a culpa do agente.

2.2. Excesso de legítima defesa

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