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O interesse na modelação de cláusulas de hardship (de adaptação)

No documento A cláusula de Hardship numa visão comparada (páginas 171-176)

CAPÍTULO II: A CLÁUSULA DE HARDSHIP COMO EXPRESSÃO DA INTERAÇÃO DOS

1.3. APROXIMAÇÃO ENTRE SISTEMAS JURÍDICOS NACIONAIS

1.3.3. O interesse na modelação de cláusulas de hardship (de adaptação)

Noutro diapasão, os fundamentos no que toca ao interesse na modelação de uma cláusula de hardship são variáveis. A depender do sistema jurídico que estiver em atenção, distintas poderão ser as justificativas para incentivar as partes a desenharem-nas. Mais uma vez seguir-se-á a mesma cronologia de exposição de ideias supra utilizada.

Na família jurídica do Common Law, designadamente em Inglaterra, as partes têm a possibilidade de se desobrigarem de suas prestações contratuais, mesmo que não tenham previsto contratualmente esta situação, quando o advento de acontecimentos supervenientes tornar o cumprimento do contrato impossível, porque ocasionou uma frustração do propósito principal. É o que ensina a doutrina da «frustration of purpose». Entretanto, esta não corresponde à doutrina do «hardship».646

Enquanto nos termos da doutrina do «hardship» as partes têm o dever de renegociar o contrato em razão de um desequilíbrio superveniente, responsável por causar excessiva onerosidade para um dos contratantes. Segundo a doutrina da «frustration», somente alterações supervenientes do equilíbrio financeiro não são suficientes a ensejar a incidência da doutrina, deve

646 HILMMAN, Robert A. Principles… 2004, p. 305 e ss; VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 246 e ss; PINHEIRO, Luís de Lima. Cláusulas…2004, p. 247-255; RIMKE, Joern. Force majeure… 1999-2000, p. 8; INGLATERRA. Law Reform…, seção 1 (2) e (3); BARANAUSKASM Egidijus / ZAPOLSKI, Paulius. The effect…2009, p. 201-204.

haver a perda da utilidade do contrato, e a consequência é a extinção do vínculo contratual e não a renegociação dos seus termos.647

Não bastasse isto, os tribunais ingleses são bastante restritivos no que toca à aplicação da citada doutrina. Notadamente porque esta sistemática jurídica é estruturada de forma a ressaltar o liberalismo e o individualismo, o que, faz com que os contratos sejam um mecanismo para o exercício da autonomia da vontade e da liberdade. A lógica deste sistema de Direito é não paternalista. Neste imperam os ensinamentos dos princípios do «sanctity of contracts», ainda frente a este tem ampla aplicação do princípio do «freedom of contracts». Sendo assim, ainda que para os casos de frustração do propósito principal exista a possibilidade de desvinculação contratual, um número reduzido de situações dará causa a tal possibilidade.648

Nos Estados Unidos da América, em decorrência das doutrinas da «supervening frustration» e «impracticability of performance» as partes têm a possibilidade de se desobrigar das suas prestações contratuais quando, um acontecimento superveniente for responsável por desencadear a frustração do objeto principal do contrato, como também quando este for responsável por tornar o cumprimento da prestação excessivamente oneroso. Tal fato demonstra estarem abarcados pelas soluções trazidas pelo sistema os casos de «hardship».649

Em que pese esta possibilidade e com isto haver ao menos alguma aproximação conceitual mormente entre as doutrinas da «impracticability of

647 HILMMAN, Robert A. Principles… 2004, p. 305 e ss; VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2017, p. 246 e ss; PINHEIRO, Luís de Lima. Cláusulas típicas…2004, p. 247-255;

RIMKE, Joern. Force majeure…, 1999-2000, p. 8; INGLATERRA. Law Reform; BARANAUSKASM Egidijus / ZAPOLSKI, Paulius. The effect… 2009, p. 201-204.

648 Cfr: CORDEIRO, António Menezes Barreto. Direito inglês…, 2017, p. 175 e ss; CORDEIRO-

MOSS, Guiditta. Boillerplate…, 2011, p. 278 e ss.; PARADINE v. Jane. [1647] EWHC KB J5, (1647) Aleyn 26, [1658] EngR 486, (1658) Sty 47, (1658) 82 ER 519 (C); VICENTE, Dário Moura.

Direito Comparado…, 2017 , p. 248 e ss.; GLITZ, Frederico Eduardo Z. Anotações…, 2011. p.

4.; RIMKE, Joern. Force majeure…, 1999-2000, p. 7-8.

649 Cfr: TIMM, Luciano Benetti. Common Law… 2012, p. 560 e ss; RESTATEMENT (Second) of

Contracts. [Em linha]. Disponível em: https://www.nylitigationfirm.com/files/restat.pdf,. Acesso em: 10 de fev. de 2018,; HILMMAN, Robert A. Principles… 2004, p. 310 e ss; SUPREME Court of California. Mineral Park Land Co vs. Howard. Supreme Court of California, Mar 13, 1916, 156 P. 458, (Cal. 1916); UNIFORM Commercial Code. [Em linha]. Disponível em: http://www.law.cornell.edu//ucc. Acesso em: 10 de fev. de 2018; VICENTE, Dário Moura. Direito

Comparado…, 2017, p. 249; PINHEIRO, Luís de Lima. Direito Comercial… 2005, p. 240 e ss;

SUPREME Court of New York. Maple Farms, Inc. v. City School District of the City of Elmira, NY. Supreme Court of New York, 352 N.Y.S. 2d 784, 1974 N.Y; FRANSWORTH, E. Allan.

performance» e «hardship», a verdade é que as Cortes norte-americanas são muito conservadoras no que toca à eficácia da doutrina. Resultado disto é em poucas situações ter-se logrado êxito em desobrigar os contratantes em decorrência dos desequilíbrios supervenientes ocasionados em razão da alteração das circunstâncias. 650

Outrossim, é dado frente a este contexto preferência à desobrigação do contrato, e não à readaptação dos seus termos alterados. Sobretudo porque esta sistemática também é estruturada de forma a ressaltar o liberalismo e o individualismo. Mais uma vez em virtude dos princípios do «sanctity of contracts» e «freedom of contracts», também consagrados nesta ordem. Porque diante deste contexto jurídico, em decorrência do chamado «forgone opportunity», se entende que um terceiro rever os termos do contrato original é forma de ferir a boa-fé objetiva, consoante conhecida por este sistema de direito.651

Do que fora exposto é possível perceber que tanto em Inglaterra, quanto nos Estados Unidos da América as soluções trazidas não solucionam os problemas dos casos concretos da forma que a teoria do «hardship» visa solucioná-los. Seja porque sequer há correspondência entre os requisitos que ensejam a incidência (conforme ocorre em Inglaterra); seja porque mesmo quando há correspondência (conforme ocorre no sistema estadunidense) os tribunais são mais restritivos no que toca ao reconhecimento frente ao caso concreto.

Por isto que, intentando soluções para os casos em que o advento de um acontecimento superveniente gere alteração das circunstâncias do contrato e, disto resulte excessiva onerosidade para o cumprimento da prestação. A mais, pretendendo promover a conservação do contrato, mediante a remodelação dos seus termos e redistribuição dos riscos contratuais, bem como fazer valer valores de ordem moral superiores aos fatos, é de interesse que as partes negoceiem cláusulas de «hardship».652

650 TIMM, Luciano Benetti. Common Law…2012, p. 560;

651 TIMM, Luciano Benetti. Common Law…2012, p. 535-560; GLITZ, Frederico Eduardo Z. Anotações…2011. p. 4.; ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Supreme Court of South Dakota. Groseth International Inc vs Tenneco, INC 410 N. W. 2d. 159 (S. D. 1987) (Groseth I); COURT

of Appeals for the Sixth Circuit. Karl Wendt Farm Equipment CO, INC Co. vs International Harvest Co., 931 F2d 1112 (6th Cir. 1991); VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado… 2017, p. 245 e ss; DIMATTEO, Larry A. / HOGG, Martin – Comparative…, 2016, p. 354

652 Cfr: VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…, 2015, p. 334-338; LARENZ, Karl. Derecho Justo…, 1985.

Desta forma, concentrarão em suas mãos o desenrolar do contrato. Poderão avaliar o modo mais adequado de redistribuir os riscos. Terão a oportunidade de evitar perdas vultosas. Terão a oportunidade de conformar a situção em causa com a ideia da justiça social, corolário sobretudo dos sistemas romanistas653. Outrossim, terão a possibilidade de garantir que, no caso de não chegarem a um termo a contento, caberá a intervenção de terceiros no seio do contrato alterado para readaptá-lo.

Na família jurídica romano-germânica, notadamente em Portugal e no Brasil, os sistemas jurídicos trouxeram soluções positivas para os casos de desequilíbrios supervenientes capazes de desencadear alterações das circunstâncias causais e excessiva onerosidade no cumprimento dos seus termos. Em Portugal, por intermédio dos artigos 437º a 439º do Código Civil, os quais deram expressão normativa à doutrina da alteração das circunstâncias. E no Brasil, através dos artigos 317 e 478 a 480 do Código Civil, que deram expressão normativa à doutrina da onerosidade excessiva superveniente.

As normas referidas foram consagradas em razão do forte apelo social que fundamenta estas sociedades, apelo este que refletiu também no domínio contratual. O referido se nota, designadamente do fato de haver consagração de diversos princípios contemporâneos responsáveis por restringir a liberdade dos indivíduos e prever uma maior regulamentação e interferência estatal no seio dos contratos654. No tocante às soluções legais em atenção, que intentam reaver o equilíbrio contratual afetado de forma superveniente, merecem destaque, em suma, os princípios do ‘rebus sic stantibus’ (que em Portugal é conhecido como equivalência das prestações e no Brasil como princípio do equilíbrio económico655); da boa-fé negocial; da justiça social na sua sistemática jurídica; bem como valores morais, que por vezes são superiores aos fatos.656

De mais porque as ordens jurídicas dos países que integram a família romano-germânica dão atenção mais pronunciada à base ética e axiológica do Direito. Daí porque o Direito destas ordens jurídicas não se reduz a um complexo

653 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado…. 2015. p. 334 e ss.

654 Neste sentido, sobre o Direito brasileiro, cfr: NEGREIROS, Teresa. Teoria… 2002. p. 24 e ss,

278 e ss.

655 Neste sentido, sobre o Direito brasileiro, cfr: NEGREIROS, Teresa. Teoria… 2002. p. 24 e ss. 656 Neste sentido, ao tratar da análise económica do direito no âmbito do Direito norte-americano:

de leis causais em que se intenta dar efeito para técnicas de resolução dos problemas sociais, como se estivesse diante de uma espécie de «engenharia social».657

Relativamente aos requisitos e pressupostos à incidência das regras legais dos sistemas português e brasileiro, a despeito de disparidades que possa haver entre os requisitos hábeis a provocar a eficácia das regras legais entre ambos os contextos jurídicos, fora demonstrado que não representam diferenças cruciais entre elas. Para além de não haver tais distinções entre as regras internas destas sistemáticas, também não se vislumbra diferenças significativas entre os elementos a provocar a eficácia delas e da regra do «hardship» ou das cláusulas de hardship negociadas de forma a incorporar a teoria do hardship do comércio internacional. As semelhanças são resultantes sobretudo do fato de todas estas teorias serem teorias que trouxeram nova roupagem à cláusula medieval ‘rebus sic stantibus’.

Não obstante, na mencionada teoria não se vislumbrem distinções cruciais entre os requisitos legais e pressupostos de admissibilidade das soluções teóricas referidas, o que demonstra prestarem-se a solucionar casos semelhantes (os casos de desequilíbrios supervenientes que, dado serem responsáveis por desencadear alterações das circunstâncias, tenham tornado o cumprimento do contrato excessivamente oneroso para uma das partes). Isto poderia levar a pensar inexistir grande interesse em negociar, nos contratos paritários, entre privados, sob a égide destas sistemáticas jurídicas, solução equivalente às soluções legais, eis que já há solução pelo sistema. A realidade da prática dos tribunais portugueses e brasileiros nesta seara é de que em um número escasso de casos se logrou êxito em se ver a aplicação dos regimes legais, designadamente porque é de difícil reconhecimento a ocorrência dos requisitos previstos658.

De mais, as soluções legais trazidas pelos sistemas jurídicos português e brasileiro preveem, mediante a comprovação cumulativa dos elementos à incidência da norma, a possibilidade de revisão ou resolução do contrato

657 Neste sentido, ao tratar da análise económica do direito no âmbito do Direito norte-americano:

VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado... 2015, p. 334 e ss.

658 MONTEIRO, António Pinto. A «hardship clause»…, 1998, p. 28 e ss; TIMM, Luciano Benetti. A manutenção… 2006.

alterado. Não há para as partes o dever de renegociar o contrato alterado. O que implica em considerar que um terceiro terá necessariamente de intervir no seio do contrato e arranjar a solução adequada aos contratantes, de modo que os contratantes poderão permanecer vinculados, mesmo que a solução não tenha se dado a atender, de forma efetiva, as necessidades do setor de mercado que esteja em atenção às suas contratações.

Daí porque, quando as partes intentarem a conservação do contrato de forma a contentar as efetivas necessidades comerciais que estejam as suas contratações subjacentes; ainda, quando as partes pretendam a manutenção do desenrolar da relação contratual em suas próprias mãos (sobretudo porque são elas próprias que detém maiores conhecimento a respeito das relações negociais a que se submetem); como também quando quiserem se precaverem das influências que os azares do destino podem desencadear no seio dos seus contratos; é também conveniente a negociação de cláusulas de hardship nos contratos paritários, entre privados, sujeitos as jurisdições portuguesa e brasileira (seja porque se cuidam de contratos nacionais, seja porque estas são as legislações aplicáveis aquando da integração de um contrato internacional lacunoso). Contudo, especialmente diante do contexto português, este interesse pode se vir diminuto porque mesmo havendo cláusula nestes termos negociada, pode-se ter uma aplicação subsidiária da regra da alteração das circunstâncias conforme já referido.659

No documento A cláusula de Hardship numa visão comparada (páginas 171-176)