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Claude Lorrain, Paisagem com a Fuga para o Egipto, 1646

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 126-131)

tal como A Trindade da Igreja do Monte, agora na National Gallery, são exceções”163.

Esta compreensão de que a “paisagem ideal” de Claude é uma construção, parece aliás ser corroborada por vários autores. Também Michael Jakob considera que:

“(...) a arte é para ele uma expressão de retórica que vai conferir à na- tureza representada o caráter de assemblagem de loci. A natureza ela mesma - aquilo que é por vezes designado pelos historiadores de arte como “paisagem ideal” - é completamente falsa, composta de todas as peças, uma mistura sábia de elementos díspares, um todo em benefício do efeito criado pela imagem.”164

Este caráter fictício da natureza concebida por Claude, apesar de radicar numa observação atenta, é portanto um precursor das paisagens virtuais computorizadas. Também as árvores, elevações e rochedos, que é possível modelar e dispôr através de software 3D, exigiram um conhecimento de geografia, e uma observação sistemática da natureza com vista à programação de algoritmos, pois só assim as imagens 3D puderam alcançar uma fidelidade ou “aparência de natureza”, como é possível com- provar na atualidade, nos resultados que se obtêm com alguns softwares de geração de ambientes. É certo que no caso particular de Lorrain existe um compromisso com “uma certa ideia de lugar” - uma Itália genérica e mais concretamente com a Roma antiga. São porém sítios longínquos quer temporal quer objetivamente, e que remetem para essa famosa Arcádia ou Idade do Ouro. Pois como completa Michael Jakob sobre Claude Lorrain: “O artista transforma os dados observados no local combinando-os

aos “topoi” e inventa uma Itália nem verdadeiramente antiga, ou verdadeiramente contemporânea, um país à luz da idade de Ouro. Ele propõe imagens de uma natureza serena, próxima das figuras divinas e humanas, em suma, um mundo inverosímil”165.

Um dos argumentos inovadores de Claude para criar os seus mundos de ilusão, é a maneira exímia como trabalha a luz nas suas paisagens. É uma luz ambiente muito própria, que envolve todos os elementos e as suas respetivas cores. A luz que, como sabemos é o fator determinante que possibilita uma “visão”, é articulada para unificar um mundo ou paisagem que nos surge como que encantada.

163 Sonnabend, M. (2011). Claude Lorrain: The Enchanted Landscape, Oxford:Ashmolean Museum, p. 12. 164 M. Jakob. (2013). Le Paysage, InFolio - Collection Archigraphy, p.66

Sabemos também que, do ponto vista tecnológico, as paisagens virtuais são edi- tadas hoje com o auxílio de algoritmos sofisticados de luminosidade, tais como o radiosity, que descrevem os variados reflexos de luz, ou ainda outros efeitos ou filtros que sugerem uma luminosidade abrangente que envolve toda a imagem, editáveis segundo diferentes níveis de contraste.

No caso concreto de Claude Lorrain, e da sua forma de trabalhar a luz, interes- sa considerar também a análise de Dennis Cosgrove. Concordamos com este autor, quando na sua interpretação coloca à partida o talento de Claude para além do atri- buto técnico: “O luminismo de Claude serve uma função poética. É retratado como

uma força natural que harmoniza a paisagem com a condição humana que a sustém e reflete. Essa condição é melhor descrita como Arcadiana, ou então Virgiliana.”166

Cosgrove refere no entanto que as pinturas de Claude e Poussin, não são em sentido, algum, menos fantásticas do que as pinturas barrocas, não obstantes ambas as obras apresentarem, como sabemos, alguns traços clássicos. Sucede que no caso da obra de Claude, os jogos de luz são determinantes para elevar as suas vistas a um plano superior, quer se refiram às periferias da cidade ou a um passado imaginário. Como é descrito por Cosgrove

“as paisagens de Claude são certamente baseadas em detalhes

da natureza - em topografia, vegetação e nuvens - e acima de tudo no jogo de luz em torno que os envolve. Os seus esboços de carvão e aguadas foram concebidos directamente dos seus passeios por Roma, em particular à noite ou de manhã cedo quando podemos captar e explorar o jogo de luz e sombras nas elevações e ramos e reproduzir o seu detalhe e drama.”167

Todavia, como Cosgrove reconhece, apesar de ser possível identificar em Clau- de uma antecipação da atenção à natureza pelos pintores de paisagem do século XIX, “os seus interesses são distintos dos pintores holandeses seus contemporâneos, e não

se verifica a tentativa de reproduzir formas empíricas em trabalhos acabados.”168

A estratégia que assiste à invenção de Claude, não é, em boa verdade de grande

166 Cosgrove, D. (1998). Social Formation and Symbolic Landscape, Wisconsin, p. 158. 167 Ibidem, p.157.

complexidade, ou pelo menos no que se refere a um escrutínio exaustivo da realidade. Concordamos por isso ainda com Cosgrove, quando considera que

“(...) a paisagem de Claude é artificiosamente simples. É uma vista no sentido de uma fonte de luz, enquadrada por colinas mais escuras, e em geral árvores do tipo pinheiros em arco que captam a luz por entre as suas coroas. A vista central é atra- vessada por bandas de luz e sombra, alternadamente, ou por vezes interpenetrando-se, que conduzem o olhar sem esforço através da profundidade do espaço pictórico, a origem da luz transbordante e do seu halo que banha toda a paisagem em tons dourados. Nuvens fugidias e ribeiros tranquilos refletem e difundem esta luz através da tela.”169

Estes efeitos de luz estão precisamente ao serviço do ideal já referido, mas que em si, como Goethe terá proferido acerca da obra de Claude, detém uma verdade que naturalmente não está no plano convencional da realidade. Justifica-se que o luminis- mo de Lorrain é um precursor da virtualidade da paisagem digital, e dos mundos de ficção patentes na arte dos novos media. Como explica por sua vez Michael Jakob, a verdade da natureza de Claude reside, com efeito, no artifício conquistado com o auxílio da sua técnica, esse dom supremo da representação de cariz artificial que é um vaso comunicante com o futuro:

“(...) o modo de retratar a luz, os degradés, a profundidade. Lorrain confere em outros termos uma visão paisagista de um país impossível, inexistente, composto pelas regras da retóri- ca clássica, e da conjugação espacial do primeiro, segundo e terceiro plano, descrito pela primeira vez no Trattato dell’arte della pintura...(1584) de Lomazzo”170.

Este “país impossível” de que fala Michael Jakob foi ganhando, em certa me-

169 Cosgrove, D. (1998). Social Formation and Symbolic Landscape, Wisconsin, p. 157-158. 170 Jakob, M. (2013). Le Paysage, InFolio - Collection Archigraphy, p. 66.

dida, conotações negativas, por alguma crítica e pela posteridade de Claude Lorrain. Por exemplo, no séc. XIX, o crítico de arte John Ruskin, inclui a pintura de Claude no conjunto de pintores que deplora, uma vez que valorizam mais as obras do que as coisas reais e a natureza a que se referem. É uma crítica da arte pela arte, e é nesta linha que Ruskin considera que “um homem acostumado a estudar a natureza ficará

desiludido com os oceanos insignificantes de Claude”. George J.Leonard faz uma

análise sofisticada das vanguardas artísticas ao longo da história moderna, na qual considera John Ruskin171. Nesse estudo confirma-se que Ruskin não defende uma có-

pia retiniana da natureza, na medida em que a cópia do natural pura e simples seria a forma artística mais baixa, pois nada seria acrescentado à coisa retratada. O autor cita Ruskin, na medida em que este considera que “existe uma certa “elegância absurda

em Claude”, mas que a sua obra “não lembra nada que exista no mundo””172.

Em suma, como indica por sua vez Malcolm Andrews, na verdade está em causa um estilo próprio, uma vez que Claude passou a ser louvado pelo seu “naturalismo exótico.”173 E mesmo esta variante de naturalismo estava associado, como diz o autor,

à descrição de um cenário real, ainda que curiosamente não seja isso que esteja em causa. Na verdade, como considera o autor, a fidelidade à natureza é algo relativo, e os desenhos, esboços e aguadas de Claude estão provavelmente em maior sintonia com os gostos da atualidade e ao modo como hoje interpretamos a natureza. Interessa-nos, contudo, destacar a referência de Malcolm Andrews ao Luminismo de Claude Lor- rain. Também nesta perspetiva,”é o brilho da luz e a riqueza tonal do plano central

que é verdadeiramente cativante na pintura de Claude. Atraem o olhar rapidamente para o primeiro plano e fazem concentrar a sua atenção na atmosfera extraordinária de serenidade”174.

Devemos, por fim, assinalar um aspeto decisivo que acentua a ligação entre as paisagens inventadas de Claude Lorrain e as paisagens virtuais que podem ser vi- sualizadas na atualidade. De facto, o modo como Claude concebia uma atmosfera e distribuía a luz nos espaços das suas paisagens, é também um elo com a era digital, na qual a visualização de imagens por écran é dominante, permitindo uma manipulação

171 Cf. Leonard, G.J. (1994). Into the Light of Things, Chicago. 172 Leonard, G.J. (1994). Into the Light of Things, Chicago, p. 113.

173 Cf. Andrews, M. (1999). Landscape and Western Art, Oxford History of Art. 174 Andrews, M. (1999). Landscape and Western Art, Oxford History of Art, p. 99.

da imagem e dos seus níveis de brilho com grande flexibilidade, por intermédio de software de edição de imagem. Mas é sobretudo através do confronto com disposi- tivos de visualização, como o Vidro de Claude ou ainda o Espelho de Lorrain, que nos deparamos com tecnologias de visualização e mediação que são precursoras, em parte, das mediações computorizadas que assistem as paisagens digitais.

O Vidro de Claude consistia precisamente num vidro colorido transparente mui-

to particular, disponível em várias co Fig

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 126-131)