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Leonardo Da Vinci, Estudos de Montanhas, 1511

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 103-108)

É assim esclarecedor o ênfase que S.Schama coloca no talento de Leonardo em atravessar as fronteiras entre fantasia e natureza. Também a partir de outros desenhos «alpinos» de Leonardo é possível vislumbrar fenómenos atmosféricos algo sobrenatu- rais, nuvens artificiais que mais parecem bolas de algodão, que elevam as paisagens improváveis de cidades com torreões fictícios para domínios do outro mundo.

De um modo mais alargado, no que respeita à Renascença, S.Schama conclui mesmo que “quando os artistas do séc.XVI que podiam ser ao mesmo tempo paisa-

gistas e pintores históricos (...), utilizavam as montanhas como elementos de retórica nas suas narrativas, a tentação para estilizar era irresistível”125 e nesta linha refere o

germânico Altdorfer, um dos primeiro verdadeiros paisagistas, ou mais tarde, Pieter Bruegel o Velho.

Este aspeto da estilização certamente que merece uma análise mais detalhada, se considerarmos que a estilização carateriza, em parte, as imagens de síntese 3D e a paisagem digital. Claro que se interpretarmos estilizar no sentido de modificar ou con- ceber uma imagem com uma determinada inclinação formal ou para obter um efeito estético, podemos identificar na tecnicidade do 3D computorizado uma ausência de estilo, um estilo sem estilo, isto é, desprovido da personalidade que geralmente intuí- mos no estilo de um artista e que o carateriza. Esse gesto da estilização é, na verdade, uma maneira/modo, que remete para o “como” do processo artístico. Aqui é o tipo da utilização da tecnologia 3D que poderia caraterizar também o estilo, mas esse estilo 3D do qual falamos, já está orientado para uma topografia em parte inexistente,viabili- zada à partida pelo software, se nos dispusermos a proceder a relevos e configurações paisagistas livres, com as ferramentas digitais que este software coloca à disposição. Neste aspeto pode aproximar-se dessa topografia fantasiosa ou idealizada do Renasci- mento, que só na aparência parece naturalista, mas enquanto a paisagem renascentista é idealizada pelo imaginário, projetada a partir do íntimo do artista, a idealização- -estilização do 3D digital é projetada na tela a partir de um modelo manipulado pelo operador, mas registado internamente na memória do computador. Existe porém uma grande coincidência entre ambas as paisagens idealizadas, entre a renascentista e a do 3D digital e esse aspeto comum caracteriza-se por uma tendência para generalizar a paisagem apresentada como não se identificando com um lugar em particular, mesmo

que existam alguns elementos reconhecíveis. No contexto da pintura do Renascimen- to seria preciso justificar esta tendência para a idealização, que diverge do naturalismo ou realismo, com o qual grande parte das teorias procuram esclarecer a arte pictórica da Renascença.

Como indica Javier Maderuelo, a partir dos seus estudos sobre paisagem, e no contexto histórico renascentista: “Os quadros tinham de proporcionar estas visualiza-

ções, devendo ajudar à imaginação do espetador proporcionando-lhe imagens, con- tudo estas imagens pintadas não teriam de ser concretas nem particularizadas”126 ,

pois na pintura devocional da Renascença é suposto não aludir a figuras do quotidiano ou lugares reconhecíveis no mundo, com vista a deixar espaço aos fiéis para desenvol- ver as representações sacras na sua imaginação. A eficácia da pregação e do discurso religioso supõe esta idealização.

Com o acréscimo do suporte da reflexão de Baxandall, Maderuelo considera ainda que esta é realmente a origem da estandardização dos modelos pictóricos, que implicou ainda o desenvolvimento de uma série de códigos, que permitissem o reco- nhecimento de uma cena, mas de forma a facilitar uma correspondência com os mo- mentos chave da retórica dos sermões associados ao discurso bíblico.

A idealização da paisagem renascentista encontra assim justificação, pois “esta é também a razão pela qual os pintores italianos têm que

representar pessoas genéricas, com rostos e partes intercam- biáveis. (...) Do mesmo modo que as personagens, os sítios têm que ser também concretos nos seus detalhes mas gene- ralizáveis. Estes lugares representados deviam ser sugestivos, formados por arquiteturas ou paragens ideais, compostos de tal maneira que se reconheceriam como os cenários idóneos de cada uma das histórias que representam, porém não se de- viam identificar com nenhum sítio ou construção conhecida, uma vez que vulgarizaria a ação do sobrenatural que se evi- dencia127”.

126 Maderuelo, J. (2005). El Paisage, Génesis de un concepto, Abada Editores, p.121. 127 Ibidem.

Podemos portanto sugerir que a paisagem renascentista não é situável ou não está em parte alguma, ou como nos diz Maderuelo, estes pintores remetem-nos para “outro tempo e lugar”. Esta conceção do tema da pintura renascentista, que se afasta de um lugar concreto, é enfatizada também por A.Friedberg, que no seu livro “The

Virtual Window”, começa por contestar as interpretações, em seu entender equivo-

cadas, da janela de Alberti enquanto modelo para uma representação realista, quando na verdade Alberti “nos fornece uma base renascentista para o conceito de um “al-

gures” - não um realismo de uma coisa mas uma vista espacio-temporal à parte.”128

A frase de Alberti, do quadro como uma janela aberta para o mundo, com suporte na perspetiva enquanto reveladora do real, não funciona, porém, como um dispositivo que valida uma descrição mimética da natureza ou do mundo, através da vista enqua- drada por uma janela a partir de um ponto de vista fixo. Friedberg recorre assim a uma introdução da obra de Alberti, De Pictura, ressaltando o modo como Cecil Grayson corrige a ideia de que a janela de Alberti se abre simplesmente à visualização de uma natureza sem mediação. “O objetivo do artista é certamente dar ao espetador a expe-

riência espacial do olhar pela janela, no qual a matemática da visão e as aparências gerais e as proporções da Natureza vão ditar as atitudes e relações fundamentais. E não decorre deste realismo metodológico que o espetador deva ver uma cena da “vida real”129. O que carateriza a janela de Alberti não será portanto a transcrição

pictórica de um mundo natural mas, como Friedberg reconhece, o “índice metafórico do enquadramento”. Esta janela que informa a pintura da Renascença traduz portanto uma utilização retórica da janela como uma metáfora da pintura.

Estas conclusões recordam também o modo como Maderuelo faz a correspon- dência dos novos modelos pictóricos com a retórica do discurso religioso. Tal como o autor reconhece a partir da Lamentação sobre o Cristo Morto, de Perugino, a par da convencionalidade das personagens bíblicas, também se reconhece um grau de con- vencionalidade semelhante no lugar em que se situa a cena:

“Os montes são silhuetas indefinidas, um grupo de casas possí-

vel configura a imagem de uma cidade, ainda que desconhecida, 128 Friedberg, A.(2006). The Virtual Window, MIT, p.32

e árvores que aparecem separadas e esparsas, representam um bosque, contudo este vale não é tão pouco a representação de um vale real que poderia ser visto num dado lugar, senão um cenário idealizado das Sagradas Escrituras, necessariamente distante e intemporal. Esta distância convencional não é a consequência da aplicação de uma cómoda receita de atelier mas uma necessi- dade retórica que afasta os pintores do mundo terreno que supõe a representação de realidades concretas e reconhecíveis.”130

Esta distância convencional comporta por isso uma retórica, ou mesmo uma narrativa, na verdade uma Istoria, tal como indicado por Alberti. Portanto, mais do que um tema pintado (religioso ou eventos de heróis clássicos) está também em causa o estilo da pintura. Mas à partida, o tema ou o argumento que deve dominar a pintura renascentista não seria de facto o registo direto da natureza e da paisagem, como aliás deduz Friedberg, na sua leitura atualizada do texto de Alberti:”O texto de Alberti foi

frequentemente incompreendido neste ponto, ele considerava-o como uma fórmula para a representação de narrativa da Istoria, e não de paisagens ou vistas de janelas vazias”131.

Ora, é nesta linha que a paisagem, em muitas pinturas renascentistas, surge em segundo plano, como um acessório para preencher o fundo, constituindo um anteparo, um cenário naturalista (genérico), que visa tornar credível uma cena que pode incluir figuras bíblicas ou históricas. E a supremacia do argumento ou Istoria como afirma Alberti, mostra bem que a paisagem não era reconhecida ainda como uma categoria da arte, não existindo ainda um nome para a identificar.

No entanto, como começámos por fazer notar, existem já esses fragmentos de paisagem ou ambientes que compõem as pinturas, elementos que raramente retratam lugares precisos, mas sim verosímeis (e claro, nada impede que possam ter uma cor- respondência remota com territórios familiares ao pintor). No essencial, são já pre- núncios de paisagens ficcionais que conhecerão na Alemanha e na Holanda as primei- ras pinturas paisagistas que começam a configurar um género autónomo. Realmente são os artistas do Norte da Europa que começam a exportar pinturas a óleo para Itália,

130 Maderuelo,J. (2005). El Paisage, Génesis de un concepto, Abada Editores, p.124. 131 Friedberg, A.(2006) The Virtual Window, MIT, p. 32.

inclusive paisagens. Além disso é de notar, nesta altura, a importância da adesão dos pintores italianos à técnica da pintura a óleo, que permite um maior realismo que a tempera ou o fresco, e tem um grande impacto em imagens do mundo natural. Toda- via, quais são os precursores da paisagem na arte ocidental, e o que caracteriza esse estatuto? Podemos identificar que são alguns pintores destacados do Quatroccento (se não quisermos recuar a Giotto), em cujas obras se reconhece a paisagem lado a lado com o assunto e personagens, a narrativa histórica ou religiosa. É assim que é citado frequentemente Joachim Patinir, pintor flamengo, com as suas paisagens-mundo, ou seja, vastos panoramas habitados por pequenas figuras. Sem se perder o tema bíblico, a figura recua apesar de tudo, verificando-se por vezes uma narrativa em vários mo- mentos, em que dominam campos, relevos, rochas e oceanos. É o caso da Paisagem

com S.Jerónimo (1515-1519) ou a Paisagem com Condutor da Barca (Fig.25) .

Podíamos recuar ainda a Giovanni Bellini com as suas paisagens plenas e aber- tas para o horizonte, que por vezes nos iludem, e que desejaríamos que fossem mais do que apenas “decor” de um tema bíblico, como ocorre na sua obra “A Oração no

Horto” (1460).

O que sucede no período do Renascimento, é que na primeira metade do Qua- trocentto, a paisagem é um ator secundário que só no final do séc. XV ganha alguma Fig

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 103-108)