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Um ponto de vista Quem vê a paisagem?

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 33-36)

2. Revelar

2.2 Um ponto de vista Quem vê a paisagem?

Como começámos por afirmar, a paisagem só existe em função de alguém que a vê, ou que experiencia e identifica essa paisagem de algum modo, uma subjetividade, um espetador. Esse observador é desde logo um agente que se revela no modo como apreende o que vê. Existe, como veremos, uma intencionalidade no exercício do olhar sobre o que está à nossa frente. A imagem de um exterior, captada pelo olhar, implica assim, desde logo, um sujeito ativo dotado do poder organizador da visão que, como vimos, unifica o campo visual e estabelece relações entre os elementos. A propósito de uma paisagem intuímos sempre um sujeito e um agenciamento que tem por base o poder de um olhar. O ponto de vista remete portanto para uma identidade, que acima de tudo tem um lugar, uma localização que a paisagem lhe confere. Temos assim o lugar de observação e o lugar observado, que por sua vez remetem para uma identi- dade; o sujeito, que se revela a si mesmo e se abre ao exterior, no modo como olha e apreende a paisagem diante de si. Se nos parece imprescindível que exista alguém pe- rante a paisagem, a verdade é que as coisas não são tão lineares, o ponto de vista pode ser simulado, mantendo uma ligação a alguém que opera um dispositivo ou programa num ambiente virtual. Se este aspeto não constitui hoje propriamente uma novidade, sobretudo para aqueles envolvidos na computação gráfica e informática, essa questão já adquire outra relevância quando converge e dialoga com a visão tradicional no con- texto da prática artística.

Existe porém a prioridade de entender qual a relação do sujeito com o real no contexto paisagista, antes de prosseguir uma análise complexa, que compara sistemas de visão com aproximações ao mundo muito diferentes, isto é, se queremos entender posteriormente quais as transformações que ocorrem quando convertemos a experiên- cia do olhar, num sistema simulado.

Ao falar, como o fizemos até agora, de natureza, mundo, observador e paisa- gem, é urgente clarificar a experiência do sujeito com o real que está em causa. Vale a pena ter presente que o nosso estudo é, antes do mais, uma experiência da visão. Mas se essa visão é de tal modo central e tem um poder unificador tão grande, será que o protagonismo neste processo ocorre do lado do sujeito dessa visão e não propriamente das coisas em si mesmas, dos elementos e relações paisagistas?

Talvez seja um pouco radical colocar as coisas nesses termos, ou seja, entre uma perspectiva idealista (que considera que as coisas só existem nas e pelas nossas repre- sentações) e um modelo baseado no realismo (que considera que as coisas existem, independentemente de nós). A posição que decorre da nossa análise não obriga a ne- nhuma escolha desse tipo. Se é nossa intenção recriar a paisagem nesta era dos novos media, que contribuem para a imaterialização e virtualização da obra de arte, devemos evitar isolarmo-nos num destes polos demasiado estanques. O meio que agora a paisa- gem instaura, esbate a fronteira que separa o homem do mundo6. É por essa razão que

fabricar esta paisagem implica uma posição que se demarque, quer do realismo quer do idealismo. Podemos assim beneficiar da inspiração que constitui a obra de Nel- son Goodman, “Modos de Fazer Mundos”, na qual expõe a seu teoria do Irrealismo, ou Construcionismo, termo que nos parece mais adequado (ou como indica Carmo D’Orey, o termo de Realismo Interno, sugerido por H.Putnam, também é adequado). Neste sistema, Nelson Goodman considera que não há propriedades dos objetos independentes das nossas construções, “o mundo é feito por nós”7, ou mais precisa-

mente, o nosso conhecimento consiste na construção de “versões-de-mundos”. A tare- fa comum à arte e ciência é a construção de mundos através de sistemas de símbolos e o valor de qualquer delas depende da correção das construções realizadas. O autor considera que não existe uma realidade em si, dado que falar de realidade só tem sig- nificado quando esta é relativizada a uma forma de descrever ou representar.

Claro que esta posição polémica de relativismo comporta dificuldades, tais como as apontadas por Putnam :”E por que razão há de o facto de a realidade não poder ser

descrita independentemente das nossas descrições levar-nos a supor que só há des- crições?”8. É preciso ainda acrescentar, tal como Putnam também admite que, embora

as nossas frases ou visões “correspondam à realidade” no sentido em que a captam e descrevem, não são simplesmente cópias da realidade. E não o sendo, diríamos nós, existe portanto um contributo mental e humano que se acrescenta ao real numa espé- cie de simbiose, favorecendo a re-invenção da paisagem.

Finalmente, consideramos que a via de Goodman parece mais do que um mero perspetivismo de inspiração em Niezstsche, que na atualidade toma essencialmente

6 Neste esbatimento da fronteira homem/terra, revemo-nos em algumas posições de M.Serres e na sua formulação de uma filosofia da natureza. Cf. Serres,M. (2005). O Incandescente. Instituto Piaget. 7 Goodman, N. (1995). Modos de Fazer Mundos, Edições Asa, p. 5.

como base a perspetiva linguística e retórica (isso é bem patente, por ex. na apologia de Carrilho do perspetivismo contemporâneo com alicerces também em R.Rorty )9.

De facto, o modelo de Goodman tem mais a seu favor, sobretudo quando temos em vista o contexto da criação artística. Como indica Putnam:

“Apesar de Goodman encontrar problemas na noção de ver-

dade nunca propõe que a abandonemos. Propõe antes que alarguemos o âmbito do debate filosófico. Em lugar de falar- mos exclusivamente, ou em primeiro lugar sobre linguagem, sobre versões de que consistem em enunciados, devíamos con- siderar também outras “versões” do mundo, como quadros ar- tísticos, composições musicais, etc. (Segundo Goodman, todas as obras de arte funcionam em termos semânticos e constituem versões/mundos)”10.

Se nos aproximamos aqui de uma nova dimensão ficcional da criação artística, verdadeira construtora de mundos - que será aprofundada ulteriormente -, importa contudo fazer um esclarecimento. Quando dizemos que não há propriedades dos ob- jetos independente das nossas construções, insistimos que não queremos dizer que o protagonismo fique do lado do sujeito, mas sim que é privilegiada uma simbiose entre ambos os polos. Não obstante a paisagem prever um observador, é porém uma paisa- gem que não está refém de uma dominância parasita idealista. A paisagem que temos em vista recriar não se pretende enfabulação de uma aventura solitária, mas parte de um mergulho no real, vivo e experienciado em algum momento, porque os elementos paisagistas captados pela visão ou reinventados pelos artistas, apelam a uma memória dos próprios elementos da natureza. É certo que as nossas visões e construções repas- sadas pela imagem digital, excluem, aparentemente, a temperatura, a flora e os seu odores, bem como as rugosidades das rochas. Aí reside, porém, um equívoco, uma vez que estes efeitos da natureza nunca se evadem da imagem que procuramos circunscre- ver, uma imagem que diz e fala de muitas coisas para além daquilo que nos dá a ver, do aspecto visual. Neste plano, reinventar a paisagem não é certamente transformá-la

9 Cf. M.M. Carrilho.(2013). As Virtudes do Perspectivismo, Grácio Editor. 10 H. Putnam.(1998). Renovar a Filosofia, Instituto Piaget, p. 184.

em algo inferior à semelhança de um cenário sem vida. Estamos próximos aqui de Mi- chel Serres, quando convoca uma verdadeira filosofia da natureza para a atualidade:

“Não haverá outra paisagem a não ser a audiovisual? A me- teorologia de televisão substitui a neve, o gelo e as trovoadas que agora só são sentidos, riscos incluídos, nas férias na Ar- cádia. Os pensadores de apartamento falam de palavras, de si- nais e de códigos; o seu acosmismo apaga os objetos, os seres vivos, o universo e o vento. A nossa narrativa já só diz respeito a nós. Não, a paisagem que habitamos obceca-nos.”11

Serres não deixa de alertar os perigos das demarcações duras entre o homem e a terra ou:

“Pior, a distinção natureza/cultura deu, quando a inventámos, uma liberdade total às conquistas sem moderação; objecto sem sujeito, a supradita natureza tornou-se um lugar de não- -direito, tesouro a gastar e caixote do lixo a encher sem ver- gonha, onde se servem os nossos desejos incrementais e onde deitar os nossos desperdícios excrementícios. Diante do puro cenário só nos interessamos pelos homens e pelas fogueiras da sua cupidez, da sua inveja, da sua dominância. Como não fa- zem caso da paisagem as nossas narrativas humanas, sociais políticas, históricas devastam-na cegamente”12.

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 33-36)