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Nicolas Poussin A Grande Máquina pormenor

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 138-142)

Como explica a autora “A combinação da alegoria e paisagem na obra tardia

de Poussin encaminha-nos para uma maior abstração das formas e da composição. Desaparecidos ou reduzidos ao mínimo são agora os atributos arqueológicos bem como a sua exatidão. O que foi considerado na sua ausência, são os sinais de que a pintura representa outra coisa para além do que vemos - não as paixões da alma, que a pintura histórica procurou tornar visível moldando figuras humanas, mas outra coi- sa menos acessível à visão - um conceito. “187 Por sua vez a autora considera ainda que

quando o conceito é elevado para além da imagem visível, o que subjaz por detrás da imagem “é qualquer coisa semelhante a um diagrama”, ou melhor ainda "uma ruína" refere a autora evocando Walter Benjamin.

O modo como os espetadores descodificam os significados das imagens e o co- nhecimento intangível das ruínas era parte do trabalho de decifração que as paisagens de Poussin propunham. No contexto dos “espaços do olhar”, Nicholas Mirzoeff as- sinala este “código” caraterístico das pinturas de Poussin, como um antecedente da revolução digital do final do séc.XX:

“Durante o entusiasmo com o período digital da década de

1990, uma constatação foi amplamente difundida, ou seja, que sempre houve realidade virtual. Enquanto é verdade que a verdadeira representação mimética imita a realidade, houve variadas e assinaláveis experiências muito diferentes dessa re- presentação. No século XVII, um pintor como Nicolas Poussin tinha a intenção de que a sua audiência aristocrática pudesse passar uma boa parte do seu tempo a decifrar com atenção a sua obra, como se fosse uma forma de código cultural. Era uma forma conspícua daqueles que não trabalhavam demons- trar o seu status como classe de lazer, e do seu capital cul- tural tal como demonstrado pela sua habilidade em decifrar a complexidade de significados nas pinturas. Uma exposição em 2008 de Poussin, no Museu Metropolitano de Nova Iorque, sugeriu um regresso a essa forma atenta de leitura, como se a prerrogativa da aristocracia das monarquias absolutas agora 187 Mctighe, S. (1996). Nicolas Poussin’s Landscape Allegories, Cambridge University Press, p. 9.

inspirassem uma nova classe sobre como passar o seu tempo”188.

O código cultural de Poussin, o “signo clássico” (termo de Louis Marin nem sempre consensual), apela pois a um vasto conjunto de convenções de signos e sím- bolos. Requer portanto uma mediação, ou mediador, que na época podiam ser, por exemplo, manuais e livros como a iconologia de Cesare Ripa. Porém, a tendência de Poussin, na sua obra tardia, rompe provavelmente com o signo clássico, na suposição de que o pictórico se baste, ao mesmo tempo que abandona as convenções conhecidas ou as reformula no sentido do insondável.

Resta por fim recontextualizar a qualidade concetual da noção de Arcádia que Poussin prosseguiu nas suas paisagens, com a nossa investigação. Como indica Clai- re Pace acerca da sua obra, a Arcádia parece constituir o conceito por excelência ou paisagem-conceito. “O conceito de Arcádia, que foi definido como a “paisagem de

uma ideia”, transporta consigo uma potencial seriedade e complexidade, explorando a tensão entre o desejo do homem pelo mundo ideal da natureza e necessidade inelu- tável do mundo real.”189 É por isso que a Arcádia tem pelo menos duas facetas, uma

idílica e uma sombria, associada à linguagem decifrada pelos pastores na obra Et in

Arcadia Ego.

Jonathan Bordo é particularmente incisivo quando analisa a noção de Arcádia

em Poussin. Tal como Bordo descreve,

“(...) os pastores são confrontados com símbolos indiscerníveis.

Eles interrompem a Arcádia. A escrita penetra no recinto da Arcá- dia, e traz consigo a História ou, tal como foi dito acerca dos pri- mitivos sem história, traz a Pré-história para a Arcádia. O sinal linguístico da sepultura bloqueia o regresso para a outra condição selvagem da Arcádia que o pastoral coloca na leitura de Panofsky. Antes da Arcádia havia escrita - a era negra da Arcádia.”190

188 Mirzoeff, M. (2009). An Introduction to Visual Culture, Routledge, p. 225.

189 Pace, C. (2008). Poussin and Nature: Arcadian Vision, Yale University Press, p.79.

190 Bordo, J. (2002). Picture and Witness as the Site of the Wilderness, in Landscape and Power, The University of Chicago Press, p. 302.

Tal como prossegue o autor, a inscrição na lápide torna a História espacial e de facto a paisagem “encena a história”. Em certa medida não é o sujeito que está em pe- rigo de extinção mas como conclui Bordo, é a eterna presença da cultura da fala que é ameaçada. Há portanto uma irrupção da História do homem nas terras intemporais da paisagem ideal. É pela mão de uma das primeiras técnicas de comunicação, a escrita, que se evocam as camadas de temporalidade que a obra Et in Arcadia Ego declara. As técnicas discursivas e em particular a escrita, que explica as imagens e a pintura, antecipa a própria influência da tecnologia e das máquinas para explicar a civilização e a modernidade europeias.

A linguagem da sepultura na Arcádia, é assim o primeiro mecanismo (de per- suasão, explicação, revelação...) entre outros por vir. O princípio de abstração patente nas máquinas, está já presente no mecanismo da linguagem, na escrita que se fundou como nos diz Flusser: “na nova capacidade de codificar planos em retas e abstrair

todas as dimensões, com excepção de uma: a da conceptualização, que permite codi- ficar textos e decifrá-los”191.

Mas é sobretudo a partir da análise de Simon Schama que podemos sustentar a noção de uma Arcádia tecnológica. Schama parte da interpretação da pintura de Poussin, Paisagem com Homem Perseguido por uma Serpente (Fig.39), assinalando um momento de tragédia na Arcádia, na qual um viajante é a vítíma iminente de uma serpente, conjugando “a arcádia da luz com a arcádia da escuridão

Deduzimos, ainda a partir de Schama, que a Arcadia II da modernidade vai devorar posteriormente esta primeira Arcádia do Idílio Pastoral192, na qual os perigos

contidos em certos aspetos das pinturas deixa entrever transformações subsequentes. Na verdade, como descreve o autor, duzentos anos mais tarde, não demoraria mais de vinte minutos aos londrinos, ir da National Gallery à nova casa dos Répteis no Jardim Zoológico no Regent’s Park. As proteções de vidro que protegem os visitantes das cobras, induzem Schama a denominar este novo contexto de “Arcádia sob Vidro”, pois como nos é dito, a Arcádia habitável tem por princípio banir as criaturas selva- gens do seu território, e daí “o horror perculiar de Poussin, no qual estas constatações

colapsaram.” O mais importante aqui para a nossa análise, parece-nos ser a dedução

que decorre deste cenário do medo que acomete a Arcádia original, e que remete para

191 Flusser, V. (1985). Filosofia da Caixa Preta - Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, Editora Hucitec, p.8.

a instauração da Arcádia futura com recurso às novas tecnologias do jardim zooló- gico :”Mas a tecnologia do Império Britanico tratou de tudo isso. Água canalizada

aquecida industrialmente e painéis de vidro tornaram possíveis importar o exótico e selvagem para o centro da vida urbana.”193 Assim, um verdadeiro jardim zoológico

assume o vocação de lugar ameno e harmonioso como supunha incialmente a Arcádia. Simon Schama refere ainda outros exemplos de micro-ambientes que fazem uso da tecnologia do ferro e do vidro (Fig.40), a partir da revolução industrial:

“Em 1842, um designer francês de casas de vidro, para mostrar

o alcance desta ilusão de um Eden produzido tecnologicamente, desafiou jardineiros a imitar “a desordem viva da floresta pri- meva”. O espaço milagroso não seria apenas um arranjo de

193 Schama, S. (2004). Landscape & Memory, Harper Press, p. 562.

Fig

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 138-142)