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Robert Barker Panorama de Edimburgo, 1787

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 147-156)

estas equipas eram geralmente coordenadas por um artista ou uma entidade. Apesar do êxito dos panoramas, é curioso que alguns pintores eram de algum modo descredi- bilizados pelas instituições artísticas pelo facto de participarem nos panoramas. Este aspeto deve-se provavelmente ao caráter impessoal da obra, fruto de um trabalho conjunto que desvanecia a aura do indivíduo criador, e que recaía em parte no coor- denador do empreendimento. Também o caráter comercial ou propagandístico dos panoramas podia colocar em segundo plano os propósitos estéticos que caraterizam a obra de arte. Mesmo assim, os panoramas não deixaram de impressionar pintores de referência do séc.XIX, o que demonstra uma certa ambivalência no que se refere à avaliação das suas propriedades artísticas.

No seu livro de referência sobre arte virtual, Oliver Grau faz uma abordagem ampla dos panoramas como espaços históricos de ilusão. E em parte estamos em sin- tonia com o autor, pelo menos quando este afirma que “a representação da natureza

ao serviço da ilusão era, desde a origem, a ideia central do panorama”199. No âmbito

da obra de Grau os panoramas são evocados como antecedentes do "ilusionismo", que será por fim explorado até um ponto extremo pelos espaços imersivos da arte virtual com recurso à computação digital. O "ilusionismo" é destacado por Grau so- bretudo na medida em que está ao serviço do efeito imersivo, com vista a incrementar a impressão de presença, ou seja, “a qualidade de estar aparentemente presente nas

imagens”200, propriedade que esbate, em certa medida, a perceção da diferença entre

realidade e espaço imagético. O que interessa a Grau nos panoramas, é essencialmen- te o contributo destes como precursores nas estratégias de ilusão e estratégias visuais de imersão na realidade virtual de computador. O autor assume ainda que, diante dos dois polos de significado da imagem, que enumera como “a função representativa e a

constituição de presença”201, a sua investigação incide sobre a última. Ora, sem querer

demarcar deste modo áreas estanques do significado da imagem, podemos assinalar que a nossa investigação não evoca apenas a noção de presença, na medida em que a intrepreta do ponto de vista do devir (que carateriza uma realidade virtual que está em via de ser atualizada). Por outro lado, damos maior ênfase que Grau, à valência representativa da imagem, mas esta é todavia encarada por nós sob um ponto de vista crítico e que sugere outros modos para além da representação, num contexto de uma

199 Grau, O. Arte Virtual. (2005), Editora Senac São Paulo, p. 86. 200 Ibidem, p. 31.

paisagem transfigurada ou refigurada. A abordagem que privilegiamos, atesta afinal um recuo da representação, e é a consciência e a sinalização desse aspeto que nos permite sugerir subsequentes configurações paisagistas, a partir de paisagens virtuais ou digitais que não requerem necessariamente um referente, como ocorre geralmente com a representação tradicional.

No que concerne o panorama, é conhecido que este meio retratava nas suas telas de grandes proporções vários temas de índole paisagista, mas que exibia em particular representações de cenas de batalha em campo aberto, muitas vezes com o intuito de propaganda política, como é o caso do panorama da batalha de Sedan, que descreve um episódio da guerra franco-prussiana em 1870, amplamente analisado por Oliver Grau. Os panoramas retravam assim cenas de batalha ou episódios históricos, onde muitas vezes se incluíam paisagens, mas também exibiam paisagens urbanas de importantes centros, tais como Roma, Londres, Paris ou Istambul, que atraíam e fascinavam turistas e um público heterogéneo no qual se incluíam ainda artistas e intelectuais.

Como já apontámos, é de notar que alguns pintores de relevo da época, que aliás dominavam a paisagem com mestria, tais como Constable ou Reynolds, demonstra- ram uma impressão favorável em relação ao efeitos do panorama, impressão essa que mostra como a receção do panorama, apesar dos seus detratores, encontrava aceitação até nos observadores com exigências estéticas elevadas.

Se na abordagem de Grau é destacada a presença e o efeito imersivo do panora- ma, por outro lado, num estudo inteiramente a ele dedicado por Bernard Comment, a questão que está no cerne do panorama é um problema da representação/ilusão, ou melhor, está em questão determinar até que ponto deve a imitação respeitar certos limites. Aliás, um dos dilemas também sugerido por Grau, no que respeita à receção dos panoramas, foi a polarização das opiniões a favor ou contra o excesso de ilusão desse artefato. Também Bernard Comment cita testemunhos, quer de intelectuais quer de publicações artísticas que referem uma certa sensação de estranheza ou "náusea" e "tonturas" perante o realismo dos panoramas, e que declaram, remontando à eterna questão da mimesis, que “aquilo que não queremos ver nas artes é uma completa

imitação da natureza”202. Como é compreensível será a imaginação a completar o

movimento, ou se seguirmos as palavras de Bernard Comment, o consentimento da

ilusão deveria ser permitido e não infligido ou imposto a outrem203.

Podemos contudo supor que era precisamente nos limites da ilusão que o pano- rama desenvolvia o seu virtuosismo, configurando imagens e cenários e nesse sentido o panorama marca ainda a diferença em relação à pintura tradicional, incrementando a ilusão para além dos limites de uma moldura. Havia, com efeito, várias estratégias para escamotear os limites da imagem que envolvia o espetador, pelo que não devemos esquecer que os panoramas eram geralmente espaços ilusórios de 360°, que começa- ram a ser criados com meios de pintura tradicional. Como recorda Oliver Grau, era a forma mais sofisticada desse tipo de ilusão, que realmente provocava a impressão, ou ilusão, de estar perante um espaço diferente. Afinal, estamos de algum modo perante a criação de um mundo artificial que envolve o espetador, um mundo que é experiencia- do virtualmente, ao mesmo tempo que é anulada a ligação com o mundo real. Por isso a iluminação difusa das imagens do panorama era algo cuidadosamente preparado, tal como o percurso através de corredores escuros, que favorecia uma transição entre ambientes e uma acomodação ocular até ao centro cilíndrico, mais iluminado, no qual estava montada a pintura de 360°.

O panorama remete para várias questões no domínio do pictórico suscitadas pelo seu "ilusionismo". No que diz respeito à nossa investigação, vamos porém aten- tar nos seus modos de visualização e construção de imagens e entender a forma como o panorama fornece já indicações acerca da natureza das imagens e das paisagens na era da computação digital.

Vale a pena recordar como a noção de natureza que integra a paisagem, a par da ação do homem, é tratada no âmbito dos panoramas, em virtude da ilusão do realismo das cenas retratadas e da virtualidade já patente. O geógrafo Alexandre Humboldt, a propósito dos panoramas, falava por exemplo de uma “natureza estrangeira”204, pois

os panoramas levavam mais longe a já ambígua conceção das pinturas ilusionistas, os “faux terrains”, paisagens ilusionistas com origem na Renascença e depois usadas nos tetos barrocos de edificações religiosas, para sugerir espaços mais amplos com evocações celestiais. Mas se a estranheza dessa natureza apresentava um realismo excessivamente ilusório a alguns, já o mesmo não acontecia a propósito de outros testemunhos. É o caso do dramaturgo e poeta Heinrich von Kleist, que em 1800 terá

203 Cf. Comment, B. (1999). The Panorama, Reaktion Books. 204 Cf. Grau, O. (2005). Arte Virtual, Editora Senac São Paulo.

visitado o primeiro Panorama construído em Berlim que simulava uma representação de Roma. Nos estudos acerca do panorama, o episódio de Kleist é geralmente assina- lado, de uma forma ou de outra, mas gostaríamos de lhe atribuir um sentido preciso na nossa abordagem, na sua articulação com a imagem digital.

Kleist considerava a ilusão dos panoramas aquém de um mergulho pleno na na- tureza, ou seja, a ilusão alcançada pelas imagens pintadas não era suficiente na medida em que, a seu ver era decisivo o espetador não detetar que se tratava de um engano (o que não ocorria nos exemplos conhecidos). Na perspetiva de Kleist, a ilusão só seria completa se a construção adotasse a forma de uma esfera: o espetador “devia colo-

car-se sobre a pintura ela mesma e não se aperceber de nenhum ponto que não fosse pintura”205.

Na atualidade, a fotografia digital torna mais exequível este tipo de modelo de panorama que maximiza o conceito até ao extremo, como proposto por Kleist (Esq.1). Tal como acrescenta por sua vez Oliver Grau também a propósito das reflexões de Kleist sobre o panorama. “A noção que Kleist tinha da posição ideal do observa-

dor está na imagem e, fascinado por um meio imagético que procurava realizar uma segunda natureza diferente, ele fez um esboço dos seus planos, que infelizmente se perderam”206. Esta ideia de absoluto, que carateriza as intenções de Kleist neste do-

mínio da natureza recriada, são bem caraterísticas da vanguarda da sua obra, mesmo no contexto das ruturas propostas da geração de criadores românticos do princípio do séc. XIX, da qual era contemporâneo. No capítulo seguinte analisaremos os elos entre a paisagem romântica e a cultura digital, testando igualmente a visão de Kleist que considerava a possibilidade da elevação do imaginário a par das novas tecnologias.

Esta nova natureza, que se poderia alcançar conduzindo ao extremo a noção de panorama, descobrimo-la também, na atualidade na reflexão de Anne Cauquelin. A autora fala precisamente da última modalidade de paisagens digitais como “paisagens de segunda natureza”. Como explica a autora

“A paisagem, com a imagem digitalizada, já não é contra a

natureza, ou seja, combinação de forma contrastada com o seu fundo, apoiada na verdade natural que ela revela ao ocultá-la, 205 Kleist, H.von. (2000). Correspondance, Le Promeneur, op.cit. p. 69.

dado contra, em troca de, equivalendo a... É uma pura cons- trução, uma realidade inteira, sem partilha, sem dupla face, exatamente aquilo que ela é: um cálculo mental cujo resultado em imagem pode - mas não é obrigatório - assemelhar-se a uma das paisagens que existam em representação. Basta pro- porcionar-lhes leis.”207

Este aspeto de uma construção auxiliada pela técnica, e mediante um programa

ou protocolo, coincidir por ironia com o objeto natural, encontra efetivamente alguma correspondência com o panorama. Há também no panorama esse vetor, no sentido de constituir como que uma segunda natureza, por intermédio das suas paisagens fictícias. É possível que a natureza volte a descobrir-se precisamente por intermédio da intervenção humana, através de transformações que afinal são de algum modo

207 Cauquelin, A. (2008). A Invenção da Paisagem, Edições 70, p. 132.

Esquema

 1. Captação de imagens para montagem de um panorama que

programadas.

Como indica Leonel Fadigas, as modificações no território, a partir do apareci- mento da vida humana, revelam provavelmente um novo paradigma que sugere uma programação, isto é, comporta a ação inteligente da qual resultam emoções, e das quais não havia outrora qualquer vestígio208.

“Como sabemos, a ação humana carateriza-se pela capaci-

dade que o homem tem de transformar o seu habitat de forma inteligente e programada, adaptando-o às suas necessidades. Esta nova realidade marca o momento a partir do qual pode- mos considerar que existe paisagem. A ação da natureza como fator de transformação do território é, nuns casos, substituída pela intervenção humana, noutros, é simplesmente contraria- da. Mas quando tal acontece, a natureza reage, sempre, para repor os equilíbrios afetados.

A paisagem é o resultado desse processo. Um processo em que a a ação humana é determinada por necessidades próprias e por emoções que lhes estão associadas”209

Existem alguns pontos-chave evocados nesta visão “geográfica” da paisagem, onde reconhecemos uma correspondência com um processo, que é assinalado no texto de Cauquelin, uma vez mais, a respeito da dimensão pictórica das novas paisagens:

“Enquanto obra, ela é “fragmento”, e ainda que saibamos que

é produzida pelo artifício, é uma totalidade em si - uma “na- tureza”. É, sem dúvida, por este meio que a natureza está presente na paisagem, não porque fosse uma parte dela, que valesse pelo todo, mas porque é produzida por uma sequência de regras, cuja coerência cria um objeto em tudo semelhante ao objeto natural”.

208 Cf. Fadigas, L. (2011). Fundamentos Ambientais do Ordenamento do Território e da Paisagem, Edi- ções Sílabo

Será então que o panorama começa por colocar a descoberto uma série de pro- cedimentos que configuram a ilusão? Afinal, no caso do panorama, estamos perante uma sequência de imagens envolvidas num todo, é um amplo processo de montagem que configura esta “natureza estrangeira” essas montagem incluía por vezes vários planos, a diferentes distâncias do observador, com vista a sugerir uma profundidade, a par de objetos reais - todo um “programa” com vista à ilusão total. Numa outra ace- ção, existe também um processo de montagem nos panoramas que beneficiaram dos primeiros contributos da fotografia. É conhecido pela investigação dos antecedentes da realidade virtual nos mais diversos domínios, que as primeiras técnicas de panora- mas a integrar a fotografia recorram a uma certa manipulação, ou seja, “consistiram

em fazer séries de fotografias adjacentes, com um determinado preenchimento entre elas. É preciso recordar que o aparecimento da fotografia veio dar um contributo importante ao panorama, que beneficiou de um maior nível de verosimilhança, para proceder depois à montagem manual da série por simples justaposição”210.

Em finais do séc. XIX e com o aparecimento do filme flexível, apareceu uma nova linha de câmaras fotográficas concebidas especificamente para a captura de pa- noramas. Estas câmaras tinham a possibilidade de obter ângulos de 110 e 140° e ti- nham corpo rotativo, o que permitia obter uma única imagem de um vasto campo, ao invés das capturas múltiplas. A primeira câmara panorâmica data de 1843, concebida pelo austríaco Joseph Puchberger, de Retz.

Após um longo período de melhorias tecnológicas dos meios fotográficos, alcan- çámos por fim o panorama concebido pela computação digital, que torna mais flexível as operações mais laboriosas através da fotografia convencional, tais como o recorte, ou o redimensionamento, mas atingido-se também um novo patamar de manipulação da imagem. A alteração e fusão das fotografias, ou o retoque, é agora de outra ordem. Javier G. Lahoz, juntamente com outros investigadores espanhóis do âmbito da reconstrução 3D, analisaram o que nos habituámos a entender por “visitas virtuais” a espaços (paisagem, museu, lugar público, cena de um crime, etc.) que vários tipos de software permitem proporcionar. Esta modalidade começou aliás por ter alguma difu- são num passado recente, no princípio do séc.XXI. É portanto um panorama projetado nos écrans de computador

210 Lahoz, J.G. (2010). Reconstrucción 3D y Realidade Virtual en Criminología, Ediciones Universidad de Salamanca, p.59.

“(...) com a visualização limitada, em princípio, a um setor do conjunto do mesmo, mas com a possibilidade de mover para a esquerda e direita, acima e abaixo, o eixo de visualização com o rato. Desta maneira, o programa informático pode calcular a porção do panorama que corresponde a uma determinada direção do eixo de visualização e, além disso, fazê-lo em tempo real. É assim criada a sensação de um varrimento natural do panorama que simula de forma verosímil os movimentos de ex- ploração da cabeça do espetador que se encontra no interior do lugar original.”211

Ao nível tecnológico, podemos mencionar o QuickTime, como um dos softwa- res pioneiros a proporcionar panoramas digitais com 360º, em ficheiros de media imersivos de realidade virtual para computadores pessoais. Tratando-se de um softwa- re que surge em 1990 (Eric Chen), dirigido às plataformas Macintosh e Windows - é certamente diferente da tecnologia de realidade virtual, que registara desde os anos 70 custos elevados. Apesar das limitações compreensíveis do formato, este software permitiu, contudo, flex ibilizar o processo de montagem sequencial das imagens que compõem os panoramas digitais (Figs.44-46). A simulação de realidade virtual, e a criação de imagens imersivas, por intermédio da sua ferramenta de edição, revela bem a automatização e o potencial da QTVR212.

Desde o aparecimento da aplicação, esta detinha portanto funcionalidades rele- vantes, uma vez que também começou por incluir alguma interatividade com elemen- tos do panorama, previamente preparados para o efeito.

É de assinalar que só a partir de 1995 os panoramas começaram a ser verdadei- ramente explorados pela fotografia digital profissional, e pela comunidade da com- putação gráfica, no sentido de conceber ambientes virtuais. E até à atualidade, as aptidões necessárias e acessibilidade do equipamento, torna compreensível que só recentemente a fotografia panorâmica esteja mais aberta ao grande público213. Além

211 Lahoz, J.G. (2010). Reconstrucción 3D y Realidade Virtual en Criminología, Ediciones Universidad de Salamanca, p.61.

212 Cf. Ferncase, R.K. (2004). Quicktime for Filmmakers, Focal Press.

disso, segundo G.Vass, “a visão computorizada e o processamento por algoritmos a

operar em PCs correntes, permitem-nos agora “reinterpretar” as fotografias corren- tes e convertê-las em panoramas redimensionados”214.

É visível atualmente uma nova vaga de interesse pelo panorama, que em cer- ta medida, depois do seu auge de popularidade em meados do séc.XIX, passara de moda; inclusive perdera-se grande parte das referências históricas materiais, ou seja, os edifícios e estruturas que os integravam. É de referir, por isso, que alguns artistas contemporâneos voltaram a interessar-se recentemente por este modo de visualização. É o caso de Yadegar Assis (FIgs.47,48) , que se tem dedicado de forma continuada à conceção de panoramas, sobretudo desde o sucesso do seu panorama «Everest» em

214 Vass, G. Digital LAndscaping, http://www.vassg.hu/pdf/cgw_panorama_edited.pdf, p.3.

Fig

 .46. Quicktime. Painel de colagem, que permite navegação para testar o efeito do panorama Fig

 .45. Quicktime. Janela de enquadramento cilindrico.

Fig

No documento Reinventar a paisagem na era digital (páginas 147-156)