• Nenhum resultado encontrado

Collective Estopô Balaio; Documentary theater; Feminism.

COLETIVO ESTOPÔ BALAIO

O Estopô Balaio é um coletivo de teatro que iniciou sua trajetória no bairro Jardim Romano, localizado no extremo leste da cidade de São Paulo. O bairro teve sua história marcada pelas enchentes. No trabalho do grupo, a água é a representação do inconsciente, da morte, da vida e do perigo; é ao mesmo tempo os caminhos pelos quais a vida nasce e lugar onde as almas retornam. Bachelard, em “A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria”, associa o elemento à travessia, à viagem:

Nenhuma utilidade pode legitimar o risco imenso de partir sobre as ondas. Para enfrentar a navegação, é preciso que

haja interesses poderosos. Ora, os verdadeiros interesses poderosos são interesses quiméricos. São interesses que sonhamos e não os que calculamos. São os interesses fa- bulosos. O herói do mar é um herói da morte. (Bachelard, 2018, p. 76).

Um bairro marcado pelas enchentes é o lugar onde a navegação e o partir se colocam como a única saída ao afogamento, um lugar que transforma seus moradores em barqueiros. A navegação como única possibilidade de vida faz emergir o campo quimérico. Posteriormente, deslocado o trauma e o perigo iminente da enchente, este torna-se o

território de atuação do teatro na comunidade em questão. As águas como símbolos da morte que rompem as barragens e se sobrepõem às vontades humanas ganham possibilidades de serem desejadas pelo espectro do jogo poético e metafórico. Neste sentido, cabe refletir acer- ca do suicídio literário segundo Bachelard. Para este o suicídio literário libera a imaginação para que a morte assuma sua totalidade em diferentes formas e narrativas, trazendo à luz padrões inconscientes e psicológicos. “O suicídio literário é, pois, capaz de nos dar a imaginação da morte. Ele põe em ordem as imagens da morte” (Bachelard, 2018, p. 83).

É a morte preparada e o preparar-se para a morte. A ficção é o campo de reelaboração de traumas e eventos que colocam o ser vivente de encontro com a finitude da vida.

Bachelard (2018, p. 85) aponta o suicídio de Ofélia como exemplo dessa morte literária e desejada. Ofélia morre no rio. Para o autor, segundo Jung, a água é um elemento maternal e, assim, o ser sepultado ou mor- to na água é devolvido à mãe para ser re-parido (apud Bachelard, 2018, p. 75). O afogamento de Ofélia não é só a morte total como é a verdadeira morte feminina. Ofélia morre no rio, nas águas maternais; ela ocupa na peça a função de morrer, já está morta e destinada a uma vida de espera e sem alegrias antes mesmo de sua cena final. Mulheres são representadas na ficção muitas vezes como Ofélia para cumprirem esse destino, mas há também nessa morte paralisada, jovem e tranquila, linhas de fuga, que sugerem mulheres que despertam após um período desacordadas e, além de mulheres, uma série de pessoas marginais destinadas a morrer despertam, apresentando a vida como opção.

Freud (1996) define o trauma como resposta a um evento ou uma série de eventos violentos, inesperados ou arrebatadores que não são inteiramente compreen- didos quando acontecem mas retornam posteriormente, remodelados, como flashbacks, pesadelos e outros fenô- menos repetitivos.1

Este trabalho, que convoca a escavação das super- fícies que encobrem os lençóis freáticos da memória, através do artifício do jogo teatral, organiza num mesmo depoimento pessoal dados históricos, apreensões subje- tivas e lapsos, espaços vazios que não pertencem ao do- mínio da consciência, mas sim ao que foi esquecido e por isso precisa ser inventado em um movimento proposital ou não, não podendo ser organizado de maneira linear. É o espaço/tempo onde o passado erupciona constante- mente misturando-se ao presente e a ficcionalização.

O filósofo Henri Bergson (1990) define a memória como a apreensão do mundo através das imagens e as impressões dessas no corpo. Para Bergson, em concor- dância com Freud, a percepção do cérebro não consegue abarcar a totalidade das percepções possíveis e as im- pressões no corpo são o limite móvel que separa pas- sado, futuro e fabulações sobre as experiências vividas.

1 Freud relata um episódio onde um garoto não se lembrava do velório de sua avó mas sim da imagem insignificante de uma bacia de gelo em cima da mesa, datada do mesmo período do falecimento - observa-se, neste exemplo, a substituição na memória da lembrança do evento traumático por outra. Há, portanto, um mecanis- mo que busca proteger a integridade do self isolando-o de reviver os eventos que comprometem sua sobrevivência. O evento traumático não está disponível para a consciência, ou seja, o trauma está intimamente relacionado com sua própria incompreensão.

Nossa experiência passada é uma experiência individual e não mais comum, porque temos muitas lembranças diferentes capazes de se ajustarem igualmente a uma mesma situação atual, e também porque a natureza não pode ter aqui, como no caso da percepção, uma regra inflexível para delimitar nossas representações. Uma certa margem é portanto necessariamente deixada desta vez à fantasia; e, se os animais não se aproveitam muito dela, cativos que são da necessidade material, parece que o espírito humano, ao contrário, lança-se a todo instante com a totalidade de sua memória de encontro à porta que o corpo lhe irá entreabrir: daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação

liberdades que o espírito toma com a natureza (Bergson, 1990, p. 210).

Nesta linha de pensamento imaginação e memória são co-dependentes, estando interligadas pelas percepções do corpo, sendo mutáveis. Sempre que narrado, o fato se altera, se alteram as percepções e a própria narrativa, afastando dos fatos essenciais. O mecanismo da narração transforma a relação e percepções das imagens pelo cor- po, gerando uma diferente disponibilidade de ação.

Em 2016 o grupo sai do bairro do Jardim Romano e, ainda com o interesse sobre os dramas documentais, ini- ciam o projeto “Nos trilhos abertos de um leste migrante” com a escrita de cartas na estação Brás do metrô na ci- dade de São Paulo, agora tendo como local de pesquisa a metrópole como um todo. A estação dá acesso às linhas de trem que ligam o centro da cidade aos bairros periféricos.

Com algumas mesas e cadeiras dispostas no espaço e um banner onde se lê “escrevemos cartas”, o convite performativo para a ação se inicia. Sobre a mesa, uma garrafa térmica com café e alguns copos. O café é um dispositivo importante nessa lógica: ele remete à casa, ao lugar privado, onde erupcionam lembranças e desejos. A presença do café e o convite para tomá-lo gera uma fissura no ambiente urbano, acolhendo e conectando de maneira mais íntima orador e escrivão. Soma-se a esses elementos a espera, atenta, que gera curiosidade por si só. Afinal, parar e esperar em um território de trânsito constante já é uma ação performática.

A escrita de cartas é para Foucault (2012) um cuidado de si; essa é considerada para o filósofo uma vivência que auxilia o mapeamento próprio. Ao colocar-se no papel, o “eu” toma forma do “outro”. No caso das cor- respondências, há ainda um remetente em um local tem- poral e geograficamente diferente.

O convite para escrever uma carta é, acima de tudo, um convite para re-olhar a própria história, como aponta a dramaturgia “Te escrevo para não esquecer e pra que tu saiba tudo que me aconteceu”.

Escrever tem, então, caráter de diálogo e dialetica- mente permite uma releitura da experiência atribuindo a ela novos significados. Como aponta Hannah Arendt (2007) a consciência dos processos vividos podem

significar uma reconciliação com a própria história:

A cena que Ulisses escuta a estória de sua própria vida é paradigmática tanto para a História como para a Poesia: a “reconciliação com a realidade”, a catarse, que segundo Aristóteles era a própria essência da tragédia, constituía o objetivo último da História, alcançado através das lágrimas da recordação. (Arendt, 2007, p. 74).

Em um último movimento o escrivão lê a carta para aquele que a ditou, corrige falhas e confirma o envio. Pede

2 Entrevista cedida ao Coletivo Estopô Balaio. 3 Ibidem

para fotografá-la para a fotografia da carta compor o ar- quivo documental do grupo teatral, fotografa o remetente com uma Polaroid e sela o envelope. Carimbando o encon- tro vivido entre o escrivão e o orador, entre o orador e seu próprio passado, entre o orador e seus desejos futuros.

O trabalho convoca os sujeitos marginais a estarem no centro de suas narrativas, por meio da escrita de cartas ou pela dramatização da própria história e busca conduzir o público desde o centro até às margens da cidade, até as margens de outras vivências a partir do evento teatral em si.

Outline

Documentos relacionados