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UMA PINTURA ATMOSFÉRICA: UM NOVO LUGAR As materialidades referem-se a materiais em potencial, a

um ponto de partida para a investigação cênica, podendo ser uma imagem, uma música, um aroma, um elemento da natureza, um objeto, o fragmento de um filme, de um texto literário ou dramatúrgico. Esses elementos com possibilidade de ressonância podem ser inseridos intencionalmente em diferentes momentos dos processos de investigação cênica. Quando me refiro à investigação cênica não me atenho apenas ao processo que objeti- va a construção de narrativas, como ocorre no Drama. Partindo do pressuposto de que essa materialidade pode transitar por dois caminhos. Sendo o primeiro, se pensarmos pelo viés da criação enquanto possibilidade de gerar temas, textos e cenas. Já o segundo, é quando essa materialidade entra em fricção com o corpo, através de exercícios e jogos, provocando novos movimentos e ações, possibilitando novas associações.

A areia, a argila ou a araruta colocada em contato com o corpo, a incidência de uma luz violeta ou a ven- tania produzida por um conjunto de ventiladores, pode gerar imagens, pode fazer surgir personagens, pode pro- duzir a atmosfera de um espaço ficcional. Essas materiali- dades podem ser descoladas de um texto que o professor utiliza como pré-texto para a construção de um percurso criativo. Nesse sentido, a intencionalidade do professor de Teatro nessas escolhas é importante para analisar o lugar do sujeito em relação a esses elementos – a ação do sujeito em relação dialética com a materialidade ofe- recida em situação experimental mediada.

A presença dessas materialidades oferece aos alunos

a possibilidade de um encontro e contribui diretamente para um estado de presença no jogo improvisacional instaurado pelo professor. São diferentes maneiras de experienciar e interpretar o espaço através dos sentidos. As aulas de Teatro permitem ao aluno ser um colecio- nador de lembranças de atmosferas, reais e inventadas, povoadas de diferentes sensações, de sentimentos com- plexos. As aulas podem ocasionar experiências íntimas e únicas de aprendizagem com esse novo lugar em que a sala é transformada. Lugar onde encontramos carinho, segurança, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e recebem atenção. Saliento que esse valor atribuído depende da intimidade de uma relação particular estabelecida aqui entre o professor de Teatro e seus alunos – momentos de satisfação e escuta em que as pessoas verdadeiramente estabelecem algum contato. Nesse sentido, a geografia humanista de Yi-Fu Tuan apro- xima-se aqui da Arte, pois nos preocupamos igualmente na prática com o projeto de um habitat mais humano, representado aqui pelas aulas de Teatro.

Na imagem que segue abaixo crianças se deliciam com tecidos de diferentes cores, estampas e texturas, que após a experimentação convertem-se em rios, em longos cabelos, em toalha de mesa, em capa de super-herói, em um manto do rei ou em uma cobra. As dinâmicas de peso, gravidade, temperatura, densidade e fluidez dos tecidos eram exploradas na interação com as crianças. A imagina- ção infantil estava tomada pela atividade, ao explorar e brincar com os tecidos elas mergulhavam em um mundo de aventuras.

Figura 3. Alunos interagindo com tecidos na sala de aula. (Fonte: arquivo da autora).

Adotando uma expressão das artes visuais, arrisco dizer que, em algumas situações, essas materialidades atuam como uma pintura atmosférica, pois alteram o es- paço da sala de aula com cores, formas, cheiros, imagens e uma nova temperatura. Para a artista plástica Fayga Ostrower, “(...) toda matéria tem potencialidade, tudo depende do uso que será feito dela” (1987, p. 73). Assim, a mobilização desses alunos no fazer teatral é também alimentada intencionalmente pela diversidade de signos e o cruzamento desses com o contexto dos alunos. Não apenas no momento da experiência instaurada, mas mes- mo nas aulas que a sucedem, a maneira como o aluno é mobilizado com essas materialidades passa a influenciar os seus percursos criativos. Essa criação abrange ainda, como sugere Fayga, a capacidade de compreender, rela- cionar, ordenar, configurar e significar.

Para Fayga Ostrower esta mobilização continua agindo e mesmo descansando continuamos presentes, pensan- do e sentindo, sempre atentos. De acordo com a autora, o reconhecimento de acasos na criação artística nunca se dá efetivamente ao acaso: “(...) qualquer sugestão, qualquer incidente, pode tornar-se uma centelha que de repente ilumina todo um novo caminho” (Ostrower, 1999, p. 21). As ideias criativas são, portanto, resultado de um processo cognitivo complexo e os insigths não surgem do nada. No processo de tecer os fios, de se apropriar das materialidades acionadas e fazer conexões na construção de cenas construídas coletivamente, os alunos podem encontrar respostas inusitadas através de associações muito amplas.

Em Pareyson (1993) a materialidade da obra é aponta- da como elemento fundante, encontra-se a regra ope- rando; não seria assim possível projetar a obra antes de fazê-la, só escrevendo, pintando, cantando é que ela é encontrada. Em nossa área, brincando, jogando, improvi- sando, sentindo, lendo, atuando, encenando – em fricção com as materialidades acessadas. Assim, no processo inventivo direcionado pelo professor de Teatro não há distinção entre as etapas de experimentação, seleção e organização vivenciadas pelos alunos. Os exercícios e jogos não se configuram apenas como aquecimento ou

treinamento, mas podem igualmente compor a estética da cena. Esse caráter relacional no interior da criação dialoga com o pensamento de Luigi Pareyson que con- sidera a obra, um objeto em construção, definindo sua estética como uma “teoria da formatividade”. A formati- vidade, como lei interna guia intuitivamente a obra em permanente formação.

Outro aspecto importante quando pensamos no inte- rior da aula de Teatro é a presença. Em seu texto Presença

e processos de subjetivação, a professora e pesquisadora

Beatriz Cabral defende que: “Sentir-se presente está as- sociado com disponibilidade para ação e com motivações pessoais para criar, apresentar, apreciar” (2011, p. 109). Ela questiona o que de fato instaura um corpo que responde ao jogo do texto e da cena. Defendo que essa disponi- bilidade está diretamente atrelada às materialidades oferecidas para a experiência criativa e a atmosfera lúdica propiciada pelo professor de Teatro. Desvelamos a beleza que existe a partir das relações que construímos na sala de aula, que se produz em lugares e situações inespera- das. Beleza essa, que quando experimentada, gera uma empatia que instantaneamente os afeta.

É claro que com tantas motivações: o espaço da sala de aula livre, professor aberto ao diálogo, elementos atrativos, como música ou figurinos, o contato direto com os colegas; a aula, muitas vezes, converte-se num verda- deiro caos, pois os alunos não estão acostumados a tanta liberdade. Para quebrar este caos não há receita, não há uma solução pronta, há uma atitude de persistência e de paciência pedagógica. Só a frequência e a constân- cia dessas aulas farão a diferença – outro problema que enfrentamos no espaço público: a descontinuidade desses encontros. A criação de uma rotina de trabalho é uma das atitudes necessárias e contribui para que os próprios alunos transformem o espaço da sala no horário da aula. Rotina não como algo rotineiro, mas como “(...) a expres- são do pulsar do coração [com diferentes batidas rítmicas] vivo do grupo, como a cadência sequenciada de atividades diferenciadas, que se desenvolvem em um ritmo próprio (...)” (Freire, 2008, p. 118). Do mesmo modo, tempos de silêncio em um grupo, junto a tempos de fala compõem

ritmicamente o pulsar que permite a escuta. Os encami- nhamentos, as falas de orientação dos exercícios, ativida- des ou jogos devem ser firmes, precisas e objetivas.

Esse professor como agente político precisa passar segurança, e para tanto, precisa se planejar, ser disci- plinado, organizado, avaliar e reavaliar suas ações. Seu desafio permanente é reger esses diferentes ritmos para a construção da unidade: a rotina do grupo. Precisamos recuperar a convicção de que é possível fazer algo espe- cial no trabalho em sala de aula: “(...) algo que permita reencontrar prazer e sentido no ofício de ensinar, algo

que talvez tenha (...) algumas consequências sobre as atitudes e resultados dos alunos” (Meirieu, 2008, p. 69).

Ao tratar da distância entre o dizer e o fazer no discurso pedagógico Philippe Meirieu nos devolve a responsabilidade de encontrarmos prazer em nosso tra- balho. Nós trabalhamos sobre o saber que ensinamos e nesse sentido precisamos estar atentos à especificidade epistemológica do que ensinamos. Como de fato nossos alunos aprendem a fazer Teatro? Existe outra forma, que não experienciando? Nosso desafio como agente políti- co permanece.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Figura 4. Sala de aula escola pública em Salvador BA. (Foto: arquivo da autora).

Ensinar e fazer Teatro na escola pública não é tarefa fácil, nos confrontamos sim com diversas dificuldades, mas são elas que nos desafiam a instaurar experiências sensíveis, como a que é retratada na imagem acima: cor- pos que se esparramam no chão da sala, acompanhados de silêncios alternados por risos. Momentos que iniciam ou finalizam uma aula. São essas as experiências que nos interessa suscitar. É esse novo lugar que queremos construir e alimentar.

É nesse contexto que afetamos e somos afetados. É dessa forma que carregamos de sentido uma sala de aula, que pintamos mesmo que no espaço/tempo de cinquenta minutos, uma nova atmosfera. É no campo das viabilizações, das possibilidades, que esses corpos – nossa principal materialidade no Teatro – participam efetivamente do processo de aprendizagem.

O abandono da ludicidade no trabalho pedagógico pode ser presenciado no dia a dia de muitas escolas. Os movimentos de liberdade e de beleza de que carece a educação são também nossa responsabilidade. Nossas escolhas metodológicas carregam esse espírito lúdico, esse colorido presente no prazer estético propiciado. As materialidades oferecidas passam a povoar o imaginá- rio de nossos alunos influenciando e tecendo os seus percursos criativos. Todas essas materialidades deixam

de ser o que são quando se convertem em alimento para a prática artística. De acordo com Pareyson, elas dão sustento, suportam significação, na mesma relação de conteúdo e forma.

São através de ações planejadas que mobilizamos os corpos e a imaginação de nossos alunos. Afastamo-nos da precariedade atuando como professores artistas. Qual a outra forma de promover mudanças, senão pela ação? A ressignificação do corpo no processo de ensino-aprendi- zagem acontece não somente para o aluno, mas, também para o professor. O professor de Teatro se envolve e está comprometido em jogo, propondo, questionando, mediando, intervindo e até mesmo deslocando-se pelo espaço com seu grupo. A sala de aula como lugar e não mais como espaço da escola pública passa a ser um

constructo da experiência, onde sentimentos e pensa-

mentos são criados no tempo de duração desse encontro, reinventados a cada dia.

Alguns dos conceitos de Yi Fu Tuan aqui mencionados referem-se à emoção com que cada um se relaciona com uma escala do espaço, que faz dele um lugar humano, individualizado por sentidos positivos de pertencimento, proteção e segurança. As escolas onde atuamos estão inseridas em diferentes bairros. A diluição dos vínculos entre corpo e comunidade, entre lugar e sensação de

pertencimento, amplia em nossas crianças e jovens outra sensação, a de solidão em meio a cidade.

O espaço da escola se torna lugar através das ex- periências individuais e de uma nova visão de mundo construindo identificações que são compartilhadas num território comum e que tem um papel social. É assim que mobilizamos os corpos, a imaginação e o desejo de nossos alunos de Teatro. A sala de aula é recebida como matéria bruta a ser trabalhada ao instaurarmos uma experiência criativa, ao atribuirmos a ela um novo signi- ficado, ao defendermos a postura de um professor artista que assume a pintura atmosférica do seu espaço.

Nesse contexto, a teoria ou os conceitos nascem da

prática (fazer artístico) e a prática igualmente contém a teoria. A prática docente do professor de Teatro não de- veria estar desvinculada de um fazer artístico, pois estes se complementam. A pesquisa de metodologias do ensi- no do Teatro também perpassa pela pesquisa da prática artística na escola. Partilhar a cultura e a renovação do mundo, usufruir de uma aula de Artes, aprender Teatro é direito de todos, mas é preciso que queiram aprender, que possam aprender e que o façam com prazer, com ex- periências que ponham seus corpos em ação. O lugar que estamos criando e o ato de fazê-lo muda tanto o realiza- dor quanto o seu destino.

REFERÊNCIAS

Cabral, B. A. V. (2011). Presença e processos de subjetiva-

ção. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v.1, n.1,

(pp. 107-120).

Cruz, J. (2015). O Trabalho Teatral com pessoas com defi-

ciência visual a partir do uso da materialidade no pro- cesso criativo. Salvador: Escola de Teatro da UFBA, 2015.

Trabalho de Conclusão de Curso.

Freire, M. (2008). Educador, educa a dor. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

Kastrup, V. (2015). Cognição inventiva, arte e corpo. In:

ABRACE: arte, corpo e pesquisa: experiência expandida.

Belo Horizonte: ABRACE, Gráfica e Ed. O Lutador. (Memória ABRACE)

Maffesoli, M. (2005). O mistério da conjunção: ensaios

sobre comunicação corpo e socialidade. Trad. Juremir

Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina.

Meirieu, P. (2002). A pedagogia entre o dizer e o fazer: a

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Mendonça, C. S. (2010). Sobre importâncias: sabo- reando materialidades no processo de criação cênica. In: Anais do IV Colóquio Internacional de Educação e

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Ostrower, F. (1999) Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

Pareyson, L. (1993). Estética: Teoria da Formatividade. Petrópolis, RJ: Vozes.

Perobelli, M. (2013). Formação de professores: uma ex- periência teatral lúdica. In: Telles, N. (org.). Pedagogia

do teatro: Práticas contemporâneas na sala de aula.

Campinas, SP: Papirus.

Tuan, Y. F. (1983). Espaço e lugar: a perspectiva da expe-

riência. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL.

BIOGRAFIA

SHORT BIO

Celida Salume Mendonça é doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2009); cursando pós-doc no Centro de História da Arte e Investigação Artística (CHAIA) da Universidade de Évora. É professora da Escola

de Teatro e dos Programas de Pós-graduação em Artes Cênicas e ProfArtes da UFBA. Tem experiência na área de Pedagogia do Teatro.

Celida Salume Mendonça holds a PhD in Performing Arts from Federal University of Bahia; pursuing post-doc at the Center for Art History and Artistic Research, University of Évora. She is a teacher at the School of Theater and at

the Pos-grad Programs in Performing Arts, and ProfArtes at Federal University of Bahia. Experienced in Theater Education.

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