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DESLOCAMENTOS E ACONTECIMENTOS NA BUSCA DO COMUM

Os Cadernos Colaborativos surgiram em Portugal, em 2005, a partir do convite realizado pelas artistas e pro- fessoras Teresa Eça, Emília Catarino e Anabela Lacerda a alguns amigos para intervirem plasticamente no que então designavam “livros colaborativos”. Posteriormente, juntaram-se ao coletivo C3, sediado em Santiago de Compostela, Espanha, que se dedica a pesquisar e propor interferências com projetos artísticos nos campos da educação e da saúde e em diferentes comunidades, e que já desenvolvia ações com referência nos “livros de artista”. Seus projetos colaborativos envolvem processos de co-criação. A experiência dos Cadernos Colaborativos coloca em questão os limites das noções de autoria e identidade, seja esta individual ou coletiva, evidenciando temas comuns à arte, à vida contemporânea, e no caso particular desta pesquisa, à formação em saúde, possível de ser observado nos Cadernos.

O Caderno Colaborativo é uma prática artística usada tanto por artistas visuais quanto no meio poético e lite- rário para partilhar anotações e reflexões, além de desen- volver interações entre os seus autores. Tanto no contexto da prática artística quanto da prática docente, a ação cole- tiva de intervir e refletir sobre um mesmo objeto ou tema, e de ser capaz de materializá-lo colaborativamente em coisas ou palavras não é comum. Sendo uma prática cria- tiva necessariamente coletiva, o Caderno Colaborativo tem como um dos objetivos “democratizar a prática artística de desenhar, pintar, rabiscar e registar graficamente ideias, pensamentos e sentimentos em cadernos”. Tais coordena- das, somadas à realização coletiva e à democratização das linguagens artísticas nos mobilizou para realizarmos tal proposta no espaço acadêmico, a nosso ver, um ambiente fértil e importante para uma ação educativa e inventiva na interface arte, saúde e educação.

Mesmo realizando esta experiência no âmbito de uma disciplina em uma Universidade Federal em São Paulo, Brasil, nosso intuito foi também o de situar tal proposta em um contexto mais alargado, além mar, além mun- dos, buscando que os participantes, na medida de suas possibilidades e corpos, pudessem contar suas histórias, procurando conectá-las com as dos outros participantes, ou mesmo com os dilemas e inquietações comuns.

A primeira busca do comum foi elencar/produzir um tema/conteúdo comum aos alunos e alunas que partici- pariam dessa experiência de fazer junto, a fim de ativar

um coletivo neste processo formativo-criativo, e que fosse reconhecido como tal. Nos primeiros contatos com o grupo, foi observada uma angústia generalizada dos estudantes em relação à falta de tempo para desenvolver suas atividades acadêmicas e compromissos extra-aca- dêmicos, o que nos chamou a atenção, pois o semestre mal havia iniciado. Os alunos e alunas queixavam-se da existência de uma quantidade excessiva de tarefas, como se seus professores não se organizassem em conjunto ao solicitarem o seu cumprimento. Muitas vezes, o professor ou professora, sobrecarregados, acabam por transferir aos seus educandos essa mesma lógica de funcionamento.

Na vida contemporânea, a falta de tempo é comum a todos nós, sobretudo das grandes cidades, sendo uma situação problemática quando relacionada à experiência. Tudo passa depressa, subtraindo o lugar do processo, de um tempo composto de passado, presente e futuro. Da mesma forma que a falta de tempo é real, também tem sido frequente observar nos jovens certa dificuldade em lidar com o tempo das coisas, por exemplo, com o tempo da espera, dos processos, das transformações. O tempo é cada vez mais o tempo do imediato. Para este sujeito do estímulo imediato, tudo o atravessa, o excita, o agita, mas pouco lhe acontece. Falta-lhe o silêncio, a memória, o foco.

A partir da observação de que o tempo mostrava ser uma questão para este grupo de alunos e alunas, foi pertinente propô-lo enquanto tema a ser explorado nos Cadernos:

Apropriamo-nos do tema TEMPO em sua diversidade de sentidos. O desafio do grupo foi o processo criativo partin- do da subjetividade do indivíduo para o processo coletivo e colaborativo da obra. (narrativa de uma aluna, 2018)

Considerava-se que o caderno enquanto “suporte” pudesse ter um sentido amplo: que pudesse incorporar, além de palavras, desenhos, traçados, pinturas, cola- gens, objetos, cheiros, sons, texturas… que pudesse ter suas propriedades livremente reinventadas (ou não). Considerando a pertinência de ampliar repertório e de promover certo deslocamento para tal propósito, pro- pusemos uma ação poética que denominamos Ativar os Sentidos, antes de dar início à produção dos Cadernos Colaborativos propriamente ditos:

Figura 2. Ativando os sentidos. (Foto: Marcia Machado de Moraes). Me marcou muito a escolha do tema. O tempo esteve latente

como assunto desde a primeira aula e já era algo que o grupo carregava desde o início do curso. Quando criamos o deus Tempo com materiais nada óbvios e olhávamos uns para os outros com a certeza de estarmos falando a mesma língua, senti uma conexão rara. O campo das ideias tomou proporção física e todos nós fazíamos parte da obra, éramos os autores, mas também a própria obra; foi mágico! (narrativa de uma aluna após ter vivido com seu grupo a ação poética proposta, 2018)

Todas essas ações demandaram das alunas, alunos e docentes-pesquisadoras posicionamentos pouco exer- citados: estar e fazer junto, afetar e ser afetado pela singularidade de cada um e de cada uma, lidar com o imprevisível no processo criativo, afastar-se da prática de fazer trabalhos grupais onde cada qual faz uma parte, trabalhar com distintas linguagens e, sobretudo, autori- zar-se à mútua interferência no trabalho.

Brota, então, desde o início do processo de produção dos Cadernos, um estado de atenção e certos cuidados em relação ao espaço do outro, como podemos observar na narrativa abaixo:

Pensei em escrever algumas palavras, todavia desejava deixar bastante espaço para não limitar a intervenção de ninguém que quisesse usufruir desta página. (narrativa de uma aluna, 2018)

Ou nesta:

Quando (você) nos contou sobre o trabalho, sobre o tama- nho e proporção dele, não só sobre a relação do projeto com outros países, mas a proporção afetiva que ele criava, fiquei emocionada. Algo tão simples, mas que modifica e desloca tanta coisa dentro da gente. Me empolguei ime- diatamente. Inclusive uma amiga que fez um projeto na comunidade da Vila dos Pescadores sobre suportes e redes de cuidado está pensando sobre a possibilidade de criar

algo com a comunidade nesses moldes. Acho que seria incrível. (narrativa de uma aluna, 2018)

Por outro lado, observamos também a presença do receio de “invadir” o espaço do outro, a hipervaloriza- ção das autorias, da individualidade e da liberdade de escolha, o que certamente dificultaria a possibilidade de se vivenciar minimamente o que seria produzir comum, como é possível observar na narrativa abaixo, o que nos desafiou a pensar o lugar da intervenção no exercício profissional, uma vez que o cuidado em saúde acontece na relação:

Talvez isso (preocupação com o outro, o que justifica a discordância com a ação de intervir/interferir na produ- ção alheia) seja uma característica da turma de Terapia Ocupacional, esse cuidado com a dedicação alheia, ou talvez isso seja característica de cursos da área da saúde. Interessante perceber que ambos promovem o cuidado e se importam com os sentimentos alheios, buscando não atravessá-los ou não gerar uma situação desconfor- tável para quem está diante de nós. (narrativa de uma aluna, 2018)

Uma questão difícil de ser enfrentada manifestou-se na experiência dos Cadernos Colaborativos em relação à produção do comum, a partir da ideia no plano do senso comum sobre o que poderia ser colaborar. Não raro, esta apareceu, ora na ação, ora nos relatos dos estudantes, enquanto ajudar, contribuir, cooperar a partir do que se imagina que o outro deseja que seja feito (no caso uma ou um colega ou mesmo as próprias pesquisadoras-do- centes), continuando de modo sequenciado a ação que o outro iniciou. Como uma forma de “passar o bastão”, sem produzir qualquer deslocamento no percurso su- postamente traçado. Atesta-se, então, a pergunta: Como produzir o comum entre os diferentes, sem anular as diferenças, mas, ao contrário, delas se alimentando?

O desafio de construir um Caderno no coletivo (…) foi inovador. Me atrever a interferir no trabalho do outro foi o que exigia mais de mim, quando me atentava ao máximo na seleção das ideias que possuía, para que es- tas complementassem as mensagens passadas e não as ofuscassem de modo algum. (narrativa de uma aluna, 2018)

Ao que Teixeira (2015) acrescentaria, sublinhando a importância da noção de composição, tal como uma sinfonia, sendo esta caracterizada pela multiplicidade de executantes para cada instrumento e, também, pela diversidade de timbres existentes nela:

A possibilidade de um corpo vir a estabelecer relações de composição com outros corpos depende de sua maior ou menor capacidade de se apresentar a esses outros corpos sob relações que componham com as relações que os caracterizam. Ou, dito de outra forma, depende de sua maior ou menor capacidade de produzir comum ou de fazer comunidade com esses outros corpos. (Teixeira, 2015, p. 22)

Encontramos ocorrências semelhantes sobre a inter- venção em algumas experiências realizadas por Teresa Eça e Angela Saldanha no Projeto Cadernos Artivistas:

(…) os autores não alteraram as páginas anteriores, por respeito pela obra do outro. Os cadernos guardaram todas as singularidades respeitando a multiplicidade de registos. Esse respeito impediu que o caderno fosse trabalhado como um todo, a colaboração ficou assim restringida à sua forma mais simples: adicionar. Ninguém rasgou folhas anteriores, ninguém cortou ou colou no trabalho dos ou- tros. Enfim, ninguém; ninguém ousou transformar folhas já realizadas (…) Trabalhar em cima das obras feitas pelos outros é um processo que pode parecer pouco ético. Mas será que a colaboração, no sentido artístico não seria mais interessante se tal tivesse acontecido? Mas, como

superar o medo de invadir a autoria do outro? (…) O sen- tido colaborativo que buscávamos não o encontramos no processo de elaboração das folhas, que foi sempre singular, mas sim no processo de encadernação e de visualização onde se compunha a multiplicidade. (Eça; Saldanha, 2018)

Pudemos observar, também, que em nossa expe- riência esta questão ética foi explicitada por alguns dos participantes ao utilizarem em suas narrativas palavras como “adicionar”, “continuar”, “interferir”, “respeitar”, “complementar”, “rasgar”, “tinta preta”, “rompimento”, ao se referirem às intervenções realizadas (ou não), o que denota seus vários sentidos no projeto. De um lado, estes atos se configuravam como “destruição”, desrespeito, invasão, para alguns alunos e alunas. Em contrapartida, outros e outras viviam de maneira desafiadora e positiva a possibilidade de interferir no trabalho uns dos outros, de experimentar um processo de co-criação, de produzir comum.

Todos esses acontecimentos certamente nos convoca- ram à busca do comum, valendo lembrar que:

O problema do comum cobra, permanentemente, uma solução real na/da vida, independente de nos darmos conta disso ou não, porque se trata, rigorosamente, de um problema colocado pela vida, tanto mais quanto esse comum (isto é, aquilo que deve ser necessariamente com- partilhado) constitui, em boa parte, nossa condição de existência. (Teixeira, 2015, p. 18)

Ao que concorda este aluno, ao afirmar com precisão que:

Só podemos nos transformar quando somos afetados pelo mundo ao nosso redor; então é imprescindível haver uma cooperação entre indivíduos, por mais complexo que seja. (narrativa de um aluno, 2018)

Um bem comum não é apenas um conjunto de re- cursos, de coisas, mas também um produto social, uma prática. Ou seja, não é só a coisa compartilhada, mas também o seu compartilhamento por uma comunida- de (Savazoni, 2018, pp. 38-39). Mesmo que saibamos e reconheçamos que alguns bens materiais (água, ar etc.) e imateriais (linguagem, conhecimento, afetos etc.) sejam compartilhados, o que evidencia que boa parte do nosso mundo e da nossa existência esteja fundada no comum, a percepção desse comum encontra-se deveras ofuscada pelo modo de existência contemporâneo, a partir da na- turalização de uma lógica privatista presente em nossas vidas, ainda segundo Teixeira (2015).

Considerando tal obliteração e associando-a à urgên- cia de resgatarmos o valor da experiência na formação e em nossas vidas – quiçá esta possa ter um importante lugar no compromisso com a percepção do comum – , observamos que uma vivência estética pode ter a potên- cia de contribuir para retirar o sujeito de um estado de anestesia, à medida que o convida a mergulhar em outro

estado, o da estesia – αιστηεσιε (aisthesis) ou αiστηεσισ (aisthesie), cujo sentido etimológico refere-se à percep- ção de sensações, à capacidade de perceber sensações, de experimentar o sentimento da beleza, referindo-se também à sensibilidade (Dicionário Houaiss, 2017) –, mesmo que essa passagem não pareça nada fácil, nem tão pouco simples:

O processo criativo a partir do zero (…) fluiu de maneira leve e tranquila. Já quando passamos para a parte das intervenções, senti, a princípio, a sensação de resistência ao intervir nas demais páginas; ultrapassar essa linha foi o maior desafio, a insegurança de “destruir” a arte feita por outra pessoa fazia com que me sentisse desconfortável e não muito “bem vinda” ao fazê-lo. A partir do momento que fiz [uma intervenção], foi um caminho sem volta, passei a mexer em tudo, mudar tudo, queimar uma página, pisar em outra, molhar uma terceira a por aí foi (narrativa de uma aluna, 2018).

CADERNOS COLABORATIVOS E FORMAÇÃO EM SAÚDE

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