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TERRITÓRIO CRIATIVO DE RESISTÊNCIA Algumas especificidades da comunidade LGBTQI+ en-

carcerada abordadas nesse estudo, ressaltadas pela audiência pública 229/2019, em especial a situação das mulheres trans e travestis, estiveram presente em nosso percurso artístico nesse último um ano de trabalho. Nossa ação e pesquisa não está centrada na formulação de dados, mas apesar disso, recolhemos algumas infor- mações relevantes que obrigatoriamente compuseram nossos encontros e que, de algum modo, orientou nossas escolhas artísticas.

No início do trabalho, em dezembro de 2018, ini- ciamos as atividades com base nas metodologias que encontramos na Escola de Teatro da UNIRIO. As aulas geralmente são organizadas de acordo com as referên- cias pessoais dos integrantes da equipe, que colaboram apresentando suas perspectivas e experiências em sala de aula, para depois, a partir disso, criarmos um modo de trabalho novo, que não seja orientado por uma meto- dologia específica, mas que dê conta das demandas que surgem aula a aula. Foi guiado por esse princípio que Osni, Natali, Vika e eu começamos a perceber o desejo das alunas pela escrita e, a partir disso, fomos em busca de referências que pudessem dar mais estímulos para essa prática.

Já almejávamos que o processo de escrita pudesse apontar para caminhos dramatúrgicos, fazendo com que o material produzido pudesse ter sua tradução interse-

miótica (Diniz, 1998) em cena/performance ou ação.23

Também percebemos que as alunas não estavam inte- ressadas em fazer relatos pessoais sobre sua condição no cárcere, o que estava muito de acordo com o nosso interesse, pois desejávamos, tendo em vista a platafor-

ma de resistência24 que escolhemos – ou seja, a escrita

e a cena – criar estratégias para descobrir as questões que atravessavam aquele grupo sem que as alunas se sentissem expostas. A prioridade era aproveitar o espaço para fundar um território criativo, dando protagonismo ao encontro e ao bem-estar, mesmo que fosse neces- sário atentar e resolver algumas solicitações referentes às péssimas condições no cárcere. Atuamos de acordo com a demanda do grupo, percebendo que elas estavam

dispostas a falar sobre suas histórias através do riso, misturando realidade e ficção, debochando da própria condição na prisão.

Sugeri que recorrêssemos à experiência recente que tive no curso de mestrado da UFRJ com a professora Luiza Leite25. Na disciplina26, investigamos caminhos para a

construção de procedimentos para uma escrita situada, ou seja, um modo de trabalho para pensarmos a compo- sição textual a partir dos nossos sentidos e da relação com o espaço. Isso nada tem a ver com um saber anterior ou hábito de escrita. Esse modo de trabalho – e compo- sição – se aproxima muito de alguns pontos que já me interessavam, em especial a proximidade com a noção de

Organismo Perceptivo, apresentada por Bogart (2017), que

a apresenta tendo em vista a influência de John Cage em seu percurso artístico. Por mais que John Cage não tenha sido citado em nossos encontros na prisão, ele nos serve como inspiração para que não esqueçamos que nossa motivação naquele espaço é “fazer perguntas ao invés de fazer escolhas” (Scheffer, 2012). Foi a partir dessas referências que fortalecemos nosso interesse em saber de que modo poderíamos ocupar aquele auditório para mover e compor.

Desenvolvemos procedimentos de escrita semanal- mente, a partir de decisões coletivas, sempre com o com- promisso de olhar o material produzido a cada semana para poder sugerir a etapa seguinte. No primeiro momen- to, pedimos que as alunas destacassem uma constelação de interesses, sugerindo que organizassem seus desejos do jeito que quisessem através de palavras chaves.

Logo nos primeiros encontros percebemos os pontos em comum nos textos apresentados pelas alunas, o que evidenciou uma reivindicação coletiva que orientou a te- mática central da nossa pesquisa artística nesse semes- tre. Todas as alunas apresentaram em suas constelações o desejo de possuírem mais objetos e roupas femininas. Elas não são proibidas de usar, mas a maioria delas não têm acesso a esses objetos.

Em relação à liberdade de exercer a identidade de gênero e feminilidade, essa cadeia oferece uma circuns- tância bem específica, que parece ser um ponto positivo

e diferencial dentro do contexto que encontramos em outras prisões do país.

Em entrevista com as lideranças trans dessa peniten- ciária, fomos informados que a maioria dessas mulheres preferem permanecer nesta unidade prisional. A peniten- ciária é considerada modelo, com as melhores condições para a comunidade LGBTQI+ no Rio, porque desde 201527

tem promovido um tratamento diferenciado, oferecendo acesso à hormonização, um diálogo aproximado com o diretor – que inclusive reuniu as noventa mulheres trans e travestis para uma consulta sobre o desejo de celas específicas para a comunidade28–, e a possibilidade de

exercerem suas identidades, podendo, inclusive, ter seu nome social respeitado.

É óbvio que há contradições, e o depoimento da liderança não abarca toda a complexidade que percebe- mos nas aulas. Nos encontros, já identificamos relatos de alunas que não estavam recebendo remédios por retaliação de algum agente. Ou, como já dito, dependen- do do plantão, encontramos servidores pouco dispostos à manutenção do respeito e dos direitos básicos a essa população.

Trabalhamos com o intuito de desdobrar o debate sobre os Objetos Femininos, produzindo diversos proce- dimentos de escrita que pudessem nos levar a entender quais outras possibilidades de discussão poderiam surgir a partir dessa temática. Assim, propusemos que elas ela- borassem um texto só com os nomes de produtos femi- ninos e objetos de interesse, ou seja, todos aqueles que elas pudessem lembrar, ou simplesmente aqueles que ti- nham alguma relação com a história pessoal de cada uma delas. Aos poucos fomos percebendo como esse exercício desencadeou um debate sobre o processo de montação da mulher trans, abordando questões importantes sobre a travestilidade, hormonização e saúde dessas mulheres no processo de transição.

Começamos a organizar todas essas discussões e textos tendo como pano de fundo a inauguração de um salão de beleza. Essa ideia surgiu depois que lemos uma reportagem sobre a inauguração de um salão na argen- tina, coordenado por um grupo de mulheres trans.29 A

partir desse novo estímulo, começamos a pensar em pro- cedimentos que pudessem criar cada vez mais desloca-

mentos, ou seja, que estimulassem as alunas à produção

de textos sobre personagens inventados.

No mesmo encontro em que elas discutiram sobre a importância desse salão na interrupção do ciclo da prostituição na vida daquelas mulheres trans e traves- tis, propusemos uma lista de relações possíveis entre algumas personagens inventadas por elas. Com pa- peis cortados e sorteados, apresentamos temas como: uma carta escrita pela dona do salão para uma mulher trans recém-contratada; uma carta de um admirador ou admiradora secreta para alguma funcionária do salão;

27 Em entrevista, a liderança trans destacou a mudança de tratamento na penitenciária em 2015. “Antes disso, eu levava tapa na cara e tinha o cabelo raspado” (Lide- rança, 2019).

28 Em entrevista, a liderança destacou a insatisfação da comunidade em ter uma cela exclusiva: “Se for para colocar todas juntas, coloca uma ambulância na porta, porque nós vamos nos matar. A gente tem marido” (Liderança, 2019).

29 https://www.efe.com/efe/brasil/sociedade/primeiro-sal-o-de-beleza-trans-da-argentina-fecha-a-porta-para-prostitui/50000246-3135551

uma carta de uma funcionária do salão para um fami- liar onde pretende contar algum segredo. Esses são só alguns dos disparadores que motivaram a escrita nessa etapa. Seguindo essa mesma lógica, nos dias seguintes, produzimos escritas com temas como: Como Montar uma

Travesti? Estou indo no salão hoje, porque amanhã é um dia importante, O que está por trás da foto? e A história do meu nome social.

A partir desse ponto, todo o processo de escrita leva- va em consideração o ambiente de um salão de beleza. A beleza se tornou um tema guarda-chuva para nossas produções. Como já dito, a escrita suscitou debates importantes sobre a condição dessas mulheres, seja no cárcere ou fora dele. Para a etapa do O que está por

trás da foto? solicitamos uma autorização à Secretaria

de Administração Penitenciária para que pudéssemos realizar uma sessão de fotos e um mutirão de beleza e montação. Desejávamos reproduzir algumas fotos de pro- cedimentos estéticos dos anos 60, 70 e 80 escolhidas por elas como parte da nossa composição final, mas infeliz- mente tivemos nosso pedido negado.

Eu estava passando na Lapa com meu cabelo pranchado, começou a chover e meu cabelo encolheu. Então, resolvi fazer um pente quente, queria ficar com o cabelo igual da Maria Bethânia. Fiz o pente quente e meu cabelo ficou liso. Fiquei bonita. Eu só queria ficar com o cabelo igual de uma índia, já tenho a cor. Segui caminhando para Copacabana, lá encontrei um ator. Ele me parou e perguntou para onde eu ia, e disse que era para o posto 5. Ele me convidou para ir em uma balada, ele admirou meu cabelo e minha cor, cantamos juntos, curtimos muito a música eletrônica, e, no final da festa, fomos dormir em um motel. Quando acordei, ele pensou que eu fosse uma mulher. Falei para ele que era, mas também não era. Ele estranhou, mas eu já havia filmado e postado no Instagram (Larissinha, 2019).

Só recentemente soubemos que a construção de um salão de beleza exclusivo para as mulheres trans e tra- vestis foi autorizado pelo diretor da penitenciária. Talvez nossa produção artística tenha sido o estopim para que essa pauta ficasse cada vez mais evidente. Não sabemos ao certo como essa influência aconteceu, mas consi- deramos um resultado importante, especialmente pela despretensão e limitação de intervenção do Projeto de Extensão na dinâmica da cadeia. É certo que nos últimos meses, além de marcarmos presença em nosso espaço de produção artística, reforçando a necessidade de ativi- dades regulares para essa comunidade, nos engajamos na resolução de pequenos problemas: seja ajudando a quebrar a invisibilidade dessa comunidade para a escola, incluindo nomes na lista de matrícula, ou simplesmente parando para escutar as narrativas apresentadas por elas, podendo, inclusive, garantir a elas que estaremos

engajados em compor uma rede de apoio que as receberá depois do período de privação de liberdade; e usaremos o espaço da Universidade Pública para isso.

O processo ainda está em andamento e devemos apresentar uma cena/ performance nos próximos dias, onde organizamos trechos de Como Montar uma Travesti, encenando a inauguração do salão nomeado como

Zagner, e também uma cena/performance de apresen-

tação dos nomes sociais. Para esse processo final, as alunas compuseram uma paródia da música Beijinho no

Ombro30, onde está apresentada algumas das discussões

acumuladas ao longo do ano de trabalho, e que será performada em um evento que reunirá a escola, alguns agentes e diretores, e outros internos.

O relato extenso dessa experiência comporá a

30 Música de Wallace Vianna e André Vieira gravada pela cantora de funk Valesca Popozuda. O funk foi indicado pelas próprias alunas, pois possuíam grande intimida- de com a letra e melodia. Antes, utilizávamos a música como proposta de aquecimento a partir do ritmo do funk brasileiro. Mais tarde, as alunas sugeriram parodiar a música com passagens sobre o empoderamento trans. Trecho da paródia utilizado nos ensaios: Beijinho no ombro, sou travesti com orgulho / Beijinho no ombro, nem venha com preconceito, não / Beijinho no ombro, do meu salto eu não desgrudo / Beijinho no ombro, só glamour e ostentação / Beijinho no ombro, esse salão vai ser tudo / Beijinho no ombro, tô louquinha pra inauguração / Beijinho no ombro, vou produzida no luxo / Beijinho no ombro, todas na hormonização.

pesquisa de mestrado realizada por mim através do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas, na UNIRIO, prevista para ser concluída em meados de 2020.

Posso não me encaixar no padrão de beleza, mas sei o meu lugar, e meu lugar é aqui no mundo igual a vocês. Não adianta tentar me ferir com palavras ou tentar me diminuir pela minha orientação sexual e gênero, pois opção é quando temos opções, e não optei em viver em um mundo de preconceito e de rejeição. Eu nasci assim. Eu cresci assim e pretendo morrer assim. Não julgue o caráter de alguém pelo que ela tem no meio das pernas, e sim pelas atitudes e o dia-dia, com respeito ao próximo. (Jeniffer, 2019)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha orientadora, Professora Marina Henriques Coutinho. Esta pesquisa é financiada com recursos da FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa

do Estado do Rio de Janeiro, no âmbito do edital Bolsa Mestrado Nota 10 – 2019.

REFERÊNCIAS

Barros, J. C. (2019). Com medo de ameaças, Jean Wyllys, do PSOL, desiste do mandato e abandona o Brasil. Folha

de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.

com.br/poder/2019/01/com-medo-de-ameacas-jean- -wyllys-do-psol-desiste-de-mandato-e-deixa-o-brasil. shtml?origin=facebook#_=_

Bogart, A. (2017). A conversation with Anne Bogart: I’m ab- solutely certain that certainty is bad. The Theatre Times.

Disponível em: https://thetheatretimes.com/conversa-

tion-anne-bogart-im-absolutely-certain-certainty-bad/ Da Silva, R. (2018). Disputa religiosa nos presídios inte- ressa ao sistema e não aos detentos. Rede Brasil Atual. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/revis- tas/137/disputa-religiosa-nos-presidios-interessa-ao-sis- tema-e-nao-aos-detentos-diz-especialista

Diniz, T. F. N. (1998). Tradução Intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de Tradução, 1(3), (pp. 313-338). Fiche, N. R. (2009). Teatro na Prisão: trajetórias individuais

e perspectivas coletivas. (Dissertação de mestrado não

publicada). UNIRIO, Rio de Janeiro.

How to Get Out of the Cage: A Year with John Cage. Direção

Frank Scheffer. EuroArts, 2012. 1DVD (144min). Jeniffer. (2019). Como Montar uma Travesti. Produção Textual das Oficinas do Projeto de Extensão Teatro na Prisão. Não publicado.

Jesus, J. G. (2015). Introdução. In G. G. Ferreira, Travestis e

prisões: experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil. Brasil, Curitiba: Multideia.

Ker, J. (2018). Atriz trans que interpreta Jesus: ‘Os segu- ranças que contrataram para nos defender queriam me bater’. The Intercept. Disponível em: https://theintercept. com/2018/08/08/atriz-trans-jesus/

Larissinha. (2019). Como Montar uma Travesti. Produção Textual das Oficinas do Projeto de Extensão Teatro na Prisão. Não publicado.

Martín, M. (2017). Crivella veta no Rio a exposi- ção Queermuseu, censurada em Porto Alegre. El

País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/bra-

Miklos, M. (2017). A ideologia de gênero e 2018: a améri- ca latina ameaçada. Mídia Ninja. Disponível em: https:// midianinja.org/manoelamiklos/a-ideologia-de-genero-e- -2018-a-america-latina-ameacada/

Moira, A. (2017) Vidas Trans (pp. 9). Bauru, SP: Astral Cultural.

Ribeiro, D. (2017). O que é: lugar de fala? (pp. 86). Belo Horizonte, MG: Letramento/ Justificando.

BIOGRAFIA

SHORT BIO

Sergio Costa Junior (Sergio Kauffmann) é um artista multidisciplinar. Formado em Licenciatura em Artes Cênicas pela UNIRIO/RJ e mestrando no Programa de

Pós Graduação em Artes Cênicas nessa mesma institui- ção. É bolsista FAPERJ M-10 e colaborador do Projeto de Extensão Teatro na Prisão desde 2011.

Sergio Costa Junior (Sergio Kauffmann) is a multidis- ciplinary artist. Graduated in Performing Arts Degree at UNIRIO / RJ and Master Degree student in the

Postgraduate Program in Performing Arts at this same institution. He is a FAPERJ M-10 Fellow and collaborator in the Theatre in Prison Project since 2011.

GÉNERO NA ARTE: LABORATÓRIOS DE ARTE

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