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1 Não existe registro oficial (não encontrado) que comprove a existência de Antônio Alves Vação. Porém o garimpeiro português está presente na memória oral do dis- trito. A região, no período colonial brasileiro, era explorada por garimpeiros de ouro de aluvião. Ainda hoje, a região do distrito e entorno é rica em minérios e outros metais. Esta característica tem alterado a geografia e a demografia do lugar resultado da ação de grandes empresas mineradoras.

O nome São Gonçalo do “Bação” surge, segundo a tradi- ção oral do lugar, de uma promessa feita pelo garimpeiro português Antônio Alves “Vação”1 (século XVIII) para o

santo de sua devoção: São Gonçalo. Entre os moradores do distrito, na oralidade, perpetua a história que, uma vez alcançada a graça, Antônio Alves teria erguido uma capela em homenagem ao Santo. Para determinar o lugar exato da capela, Antônio Alves colocou uma imagem do santo no “lombo de um burro”. Após ser “motivado” a an- dar a esmo, onde o burro parasse seria o lugar escolhido para ser erguida uma capela para a guarita da imagem. “Em torno da capela concluída em 1740, o arraial, na época, se formou” (Souza, 2014, p. 34). Essa história está presente na atualidade nas falas dos moradores mais velhos do atual distrito de São Gonçalo do Bação e, como tantas outras histórias, é contada de geração para geração. Não há registros oficiais quanto à “promessa” e à história do burro com o santo no “lombo”. Isso fica a cargo das reconstruções realizadas pelo imaginário dos habitantes do distrito.

O primeiro espetáculo montado pelo grupo (1998 /1999), foi intitulado “A Saga Baçônica” e reconta a história fundante do distrito acima resumida. A peça trabalha ainda com o contexto da época na então Vila Rica (século XVIII), sede da Capitania das Minas Gerais naquele período histórico. Para recriar “A Saga Baçônica” a partir da oralidade, foram colhidas as histórias orais narradas pelos moradores mais antigos do lugar e pela comunidade em geral. Os momentos de escuta e regis- tro dessas memórias foram realizados na casa de algum narrador do distrito ou em espaços coletivos onde mais de um narrador estavam presentes e, instigados pelo movimento de rememorização, comentavam e se com- pletavam as narrativas. O grupo ouviu e registrou o que foi lembrado e como foi lembrado. Assim, não houve um único narrador, mas vários. Contribuindo com sua memória pessoal, os participantes foram construindo a memória coletiva dos episódios tratados. Com o objetivo de contextualizar o narrado oralmente no tempo histó- rico, foram realizadas pesquisas em busca de fatos e rela- tos históricos ou pitorescos na tentativa de reconstruir o cotidiano representado. Assim, às fagulhas das reminis-

cências (Benjamin, 1985) vão sendo incluídas variantes

que orientavam a cronologia do narrado. Ainda foram escolhidos e incluídos trechos de produções literárias ou relatos de viajantes da época que complementassem o contexto histórico e ficcional.

Atualmente, o distrito tem todas as comodidades da “vida urbana”: luz elétrica, telefone, internet, ruas pavi- mentadas, água encanada e está localizado a 14 quilôme- tros da sede do município – Itabirito – a 54 quilômetros

de Ouro Preto (antiga Vila Rica) e a 74 quilômetros de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais. Essa localização possibilita um trânsito de seus habitantes nessas outras cidades para atendimentos sociais básicos, como saúde, educação e outras necessidades. Seus habi- tantes dispõem das comodidades de consumo comuns à atualidade da modernidade líquida (Bauman, 2001).

São Gonçalo do Bação é um lugar onde se vive as vicissitudes peculiares de um distrito de origem colonial e rural num “Brasil”, que se vê às voltas com o mun- do “globalizado” e a cultura de massa. Porém, em São Gonçalo do Bação, assim como em outros recantos rurais, a memória e as reminiscências dos velhos (Benjamin, 1985; Bosi, 1994) são ouvidas pelos mais jovens, criando imagens e referências de um universo passado. A maioria dessas histórias não está registrada em forma escrita ou em outros meios físicos de preservação da memória cole- tiva. Apenas a narrativa oral mantém essa herança.

O Grupo de Teatro inicia seus trabalhos em 1997 e se torna associação cultural em 1999. Nesta época, contava com 42 membros participantes diretos, entre crianças, jo- vens, adultos e idosos cujas idades variavam entre os 06 e 88 anos. À exceção das crianças e dos mais jovens, os demais participantes não tiveram oportunidade de estu- dar ou de completar seus estudos do ensino fundamental e raramente tiveram acesso, como espectadores, a mon- tagens teatrais. A maioria se dedicava a seus afazeres habituais dentro da comunidade: donas de casa, comer- ciários, pedreiros, trabalhadores rurais, jovens estudan- tes, pensionistas, professores e outros profissionais.

Ainda em 1999, o grupo participou num festival de inverno em Itabirito (cidade sede), o V Inverno Com Arte, e realizaram o curso: “Formatação de Projetos na Área Cultural” (Procedimento Operacional para Captação de Recursos Financeiros com a Utilização das Leis de Incentivo à Cultura). Também, neste festival, houve uma oficina de teatro especialmente para o grupo (iniciação ao teatro) e essa se tornou uma referência importante para a sedimentação do grupo.

A partir do ano 2000, o Grupo de Teatro passou a fo- mentar seu próprio festival que acontece exclusivamente na área do distrito de são Gonçalo do Bação. A necessida- de da realização de um evento como esse se justifica na demanda existente no distrito por novos conhecimentos artísticos e de recreação e na possibilidade de agregação da sua comunidade. Motivado pelo festival, o grupo e sua comunidade discutiram novos rumos para o trabalho artístico do Grupo de Teatro ou simplesmente possibilita- ram à comunidade em geral o acesso a bens culturais.

OS FESTIVAIS

Desde o início (2000), os festivais objetivam, principal- mente, a realização de cursos e oficinas em artes de cunho popular ou não, artesanato, culinária para os membros da comunidade do distrito em geral, espetácu- los e apresentações em geral.

São convidados artistas, grupos nas diversas modali- dades artísticas, grupos de folclore e arte popular, can- cioneiros, ministrantes de oficinas e cursos. Esses vêm

em sua maioria das cidades de Itabirito, Belo Horizonte e outras. Esses convidados colaboram com a realiza- ção do festival, em sua maioria como voluntários. Mas os membros da comunidade também oferecem cursos em culinária, artesanato, etc. Basta ter “um talento” ou habilidade específica e disponibilidade para ministrar uma oficina nos festivais (Figura 1).

Figura 1. Oficina de culinária (Foto: acervo do Grupo de Teatro).

Nesses 20 anos o grupo conseguiu realizar 17 festivais, sendo o último em julho de 2019. Na maioria das edições, houve pouco recurso financeiro. Quando houve, na em geral, foi originário de doações, arrecadações diversas, venda de material promocional como camisetas, etc. Em alguns casos, foram parcos recursos públicos destinados ao grupo. Mas também houve doações de comerciantes do distrito e da sede, Itabirito. Na sua grande maioria, a realização dos festivais (sua logística e produção executi- va) se deu através de voluntários.

Nesses festivais realizados, o grupo conseguiu mobili- zar e produzir:

• 41 oficinas com o tema “o fazer teatral” (técnicas diversas, conscientização corporal, jogos teatrais, teatro para crianças, teatro para jovens, teatro de rua, malabares, contação de histórias, etc.);

• 25 oficinas com o tema “o fazer músical” (canto, com- posição, percussão, violão, cirandas, musicalização

para crianças, etc.) (Figura 2);

• 62 oficinas relacionadas com o artesanato, desenho e trabalhos manuais; (bordado, caixas, papel reciclado, técnicas de desenho, pintura, cerâmica, modelagem, colagem, etc.);

• 28 oficinas com o tema “educação patrimonial e am- biental”: (cultura popular, produção cultural, cartogra- fias rurais, memória e patrimônio, fotografia, rodas de conversa, etc.);

• 12 oficinas com o tema “o corpo” (dança, capoeira,

yoga, etc.);

• 17 oficinas de culinária tradicional (doces, salgados, etc.);

• 3 oficinas tendo como tema específico “a mulher”; • 12 oficinas diversas: (arte terapia, sabão artesanal,

fotografia, brinquedos e brincadeiras, linguagem dos sinos, etc.).

Figura 2. Oficina de percussão para crianças. (Foto: acervo do Grupo de Teatro).

Desse universo de oficinas destaca-se que, para além dos temas, as oficinas são oferecidas em acordo com o público. Sendo assim, do quantitativo já citado, 16 ofi- cinas foram realizadas especificamente para o Grupo de Teatro e outros artistas de teatro que participavam nos festivais; 3 oficinas específicas para músicos e cantores com experiência; 23 oficinas para crianças abaixo de 10 anos; 14 oficinas exclusivas para crianças acima de 10 anos; 13 oficinas para pré-adolescentes; 50 oficinas para adolescentes acima de 14 anos; 8 para acima de 16 anos. Demais oficinas diversas se destinaram a adultos.

Na contagem realizada para este artigo, conseguiu-se computar que os festivais também promoveram:

• 65 espetáculos de teatro sendo, 15 espetáculos de teatro infantil;

• 57 espetáculos de música e canto; • 9 espetáculos de dança;

• 44 atividades diversas como caminhadas patrimoniais; cavalgadas, lançamentos de livros; palestras e circo;

• 13 sessões de cinema.

No último dia do festival, são sempre realizadas mos- tras para a comunidade e participantes dos resultados das oficinas. Isso origina novos espetáculos, apresenta- ções diversas, mostras de artesanatos, degustação culi- nária, etc. Essa ação reforma o compromisso do Grupo de Teatro e dos festivais com o fazer artístico e o fazer popular. Mas reforça, principalmente, o lastro cultural que une aquela comunidade.

É importante destacar o papel do edifício da igreja católica para as produções do grupo no tocante aos festivais e também aos espetáculos realizados. O interior da igreja é utilizado como espaço teatral (Pavis, 2003) em muitas ocasiões. Também, o adro, espaço que se localiza à frente da entrada principal da igreja, foi eleito como o local de apresentações ao ar livre, além da comodidade de retirar os bancos no interior da igreja para a plateia (Figura 3).

Figura 3. Adro da igreja católica em dia de apresentação. (Foto: acervo do Grupo Teatro).

2 O espaço mnemônico se estabelece no momento presencial da performance teatral e está relacionado à memória, as construções e constatações identitárias entre atores, espectadores, texto, cenografia e adereços, sonorização e, também, o espaço físico disponível. O espaço mnemônico está compreendido na perspectiva da ativação da memória em sua relação temporal e espacial e é estabelecido não somente no plano individual, mas, sobretudo, na esfera do coletivo: a dimensão da memória social e identidade que é deflagrada nos participantes durante a performance e depois dela, nos desdobramentos possíveis. Aguiar, R. (2008). Espaço e memória. A construção de um espaço mnemônico nas artes do espetáculo. In: F. W. Evelyn, Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras.

Esse espaço permite uma ocupação em semiarena, sem necessariamente um espaço cênico (Pavis, 2003) específico. Em geral, a plateia está no mesmo nível dos

atores e, por vezes, para um olhar distanciado, se confun- dem no espaço mnemônico2. (Figura 4)

Figura 4. Apresentação do Grupo de Teatro. Ao fundo, a plateia. (Foto: aacervo do Grupo de Teatro).

Os festivais também ocupam outros espaços da co- munidade: escola, becos e atual sede do grupo.

As ações do Grupo de Teatro citadas encontraram uma forma própria de, por um lado perpetuar a cultura tradicional e popular, bem como oferecer novas e diver- sas referências culturais e identitárias num movimento

de transmutação cultural (Hall, 2001). Nessa dinâmica, o Grupo de Teatro e a comunidade/público vão forjando seus próprios percursos culturais, recuperando a sua identidade em meio a profusão de informações e mas- sificações impostas pelo mundo globalizado. Trata-se de uma ação clara de resistência cultural ou, uma tática na

acepção de Michel de Certeau (Certeau, 1995). Segundo esse autor, tática são ações implementadas pelos grupos minoritários ou populares onde se criam maneiras pró- prias de assimilar e modificar as estratégias oficiais em suas “práticas” cotidianas.

O grupo e suas ações transitam entre o popular e o contemporâneo. Segundo Betti Rabetti:

A cultura popular hoje, poderia identificar-se também com aquele conjunto de produções ou manifestações que, inseridas nos atuais contextos de produção e comunica- ção de massa, mas que preservam ainda – ao menos no campo simbólico – consistentes dimensões ou aspectos de valores e características das “culturas tradicionais”. A título de síntese, pode-se recuperar aqui os elementos fundamentais daquelas culturas, ligadas às correntes de longa duração (que envolvem persistências e variações), à transmissão oral, à hegemonia da festa, à mistura do sagrado e do profano, ao rústico, à eleição de praças e ruas como espaços de intenso convívio entre mani- festações artísticas diversificadas, ao riso, à procura da manutenção de parâmetros coletivos de produção, ao anonimato prevalecendo sobre a autoria, ao profuso em detrimentos ao específico, à aparente espontaneidade (...) (Rabetti, 2000, p. 4).

Na análise das ações desenvolvidas pelo Grupo de Teatro e suas “reverberações da Saga Baçônica”, encon- tram-se características que se assemelham ao destacado por Rabetti: o caráter comunitário do Grupo de Teatro, sua origem nas festas religiosas populares, suas ações e encenações acontecendo em lugares públicos do distrito e, sempre, gratuitas.

São Gonçalo do Bação e seu Grupo de Teatro vêm se apropriando dos espaços coletivos de memória, reforçan- do os laços de pertencimento cultural e de fortalecimen- to da identidade do distrito, baseados nas relações esta- belecidas nas reverberações da Saga Baçônica. A isso se somam as projeções que são realizadas na dimensão do coletivo, do social e do político enquanto proveniente da

pólis, construindo uma “teia” (Geertz, 1987) de relações

que envolve as dimensões de tempo, espaço e memória. Marilena Chaui (1986) em seu livro “Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil” afirma que:

(...) seres o objetos culturais nunca são dados, são postos por práticas sociais e históricas determinadas, por for- mas da sociabilidade, da relação intersubjetiva grupal, de classe, da relação com o visível e o invisível, com o tempo e o espaço, com o possível e o impossível, com o necessário e o contingente. (Chauí, 1986, p. 122).

O Grupo de Teatro, na dinâmica da produção de seu trabalho e dos festivais, contribui para criar uma sensa- ção de segurança para si e para a comunidade/público no momento em que “protege” e valoriza uma identi- dade comum a todos e contribui para o alargamento de suas referências culturais. Contudo, não é criada uma “trincheira”, mesmo porque, no mundo globalizado isso é impossível. Mas cria-se um referencial de localização cultural nesse mesmo mundo globalizado. O trabalho do Grupo de Teatro mantém um movimento de mão dupla entre a cultura local guardada na memória de sua co- munidade e os possíveis encontros culturais e artísticos proporcionados pelos festivais.

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