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MEDIATION ACTION AT THE CIAJG/GUIMARÃES MUSEUM

TIAGO MORA PORTEIRO

Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Portugal

RESUMO

ABSTRACT

O Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG-Guimarães) acolhe uma expressiva coleção de máscaras africanas, acervo que foi o mote para o espetáculo “Auto das Máscaras” (outubro 2017) – um

site-specific, deambulatório, imersivo e de teatro par-

ticipativo e comunitário (envolveu cerca de 100 partici- pantes não-profissionais). Para equacionar um diálogo cultural com aquelas máscaras, o encenador, João Pedro Vaz, convoca dois ‘patrimónios’ da cidade: o repertório dramático do grupo Velhos Nicolinos, que está associa- do ao ritual festivo dos estudantes, em honra de São Nicolau; e o repertório do grupo Outra Voz, um coro co- munitário, vocal e performativo, criado em 2010, que foi construído a partir de uma articulação entre explorações contemporâneas da vocalidade e reinterpretações do cancioneiro tradicional português. As fontes documentais provêm de uma recolha produzida pelo autor enquanto

observador-participante, bem como de entrevistas rea- lizadas aos criadores, intérpretes e público. Partindo da constatação de que a população da cidade tem algu- ma resistência em entrar naquele espaço expositivo, a reflexão interroga que contributo as artes performativas poderão trazer aos espaços museológicos no sentido de estimular o acesso a outros públicos e de que forma o diálogo intercultural promovido pelas artes performati- vas pode questionar o que haja de comum em atividades, culturais e artísticas, de épocas e culturas diferentes. As ressonâncias que o projeto terá tido não serão, talvez, claramente visíveis, o que não nos impede de identificar mudanças, ainda que temporárias, e de deixar em aberto algumas interrogações, partindo também dos comentá- rios dos diferentes envolvidos, que colocam em perspeti- va o impacto deste trabalho.

The José de Guimarães International Arts Center (CIAJG- Guimarães) hosts an expressive collection of African masks. The performance “Auto das Máscaras” (October 2017) – a site-specific, itinerant, immersive and community theatre (it involved about 100 non-professional partici- pants) – had as a point of departure the aforementioned collection. In order to interrogate the potentialities of a cultural dialogue with the masks, the director, João Pedro Vaz, invite two ‘patrimonies’ of the city: the dra- matic repertoire of the ‘Velhos Nicolinos’, a group that is associated with the festive ritual of the students in honor of St. Nicholas; and the repertoire of the group ‘Outra Voz’, a community vocal and performative choir, created in 2010, from a joint between contemporary explorations of vocality and reinterpretations of the Portuguese tradition- al songbook. Documentary sources come from a collection

produced by the author as an observer-participant, as well as interviews with creators, interpreters and the pub- lic. Given that most of the population of the city has some resistance to enter in that exhibition space, the reflection questions what contribution can the performing arts bring to the museological spaces in order to stimulate the access to other publics and how the intercultural dialogue promoted by the performing arts can question what can be common in cultural and artistic activities of different times and cultures. The resonances that the project may have had will perhaps not be clearly visible, which does not prevent us from identifying changes, even if tempo- rary, and leaving some open questions, also based on the comments of the different participants, which put into perspective the impact of this work.

PALAVRAS-CHAVE

KEYWORDS

1 Informação disponibilizada no site do Guimarães Turismo: http://www.guimaraesturismo.com/pages/152/?geo_article_id=1254. Daqui em diante, esta referência será, no texto, sinalizada como ‘site GT’.

2 Para informação adicional, consultar: http://contextile.pt/2018

Artes performativas; Museu; Interculturalidade. Performing Arts; Museum; Interculturality.

I – CONTEXTOS

Para entrar

No espetáculo Auto das Máscaras assumi um duplo papel: intérprete (um de entre os mais de 100) e investigador que observou todo o processo. Segui, portanto, uma me- todologia de observador-participante, o que exigiu uma aprendizagem de campo específica, pelo simples facto de ter, a cada momento, de saber ‘negociar’ a justa distância que me permitisse, por um lado, envolver-me enquanto intérprete, e, por outro, afastar-me para poder analisar, de forma crítica, esse mesmo processo de criação.

Ser identificado por todos os envolvidos no projeto como sendo mais um dos que faz parte do grupo permitiu- -me, mais facilmente, aproximar-me de ‘afetos’ e expe- riências ’pessoais’ que se partilham ao longo do processo. Esta cumplicidade revelou-se particularmente importante quando, por exemplo, comecei a surgir com um gravador

em mão para recolher depoimentos acerca das vivências de cada um dos participantes. Assim, para além do recurso à minha própria experiência pessoal, considerei que seria útil e enriquecedor recolher, complementarmente, os pon- tos de vista dos diferentes participantes. Durante a criação e mesmo após a apresentação pública do espetáculo, fui ainda entrevistando membros da equipa artística, outros participantes e também elementos do público.

Quando comecei a tratar as minhas memórias e os materiais recolhidos, senti ainda necessidade de com- pilar outras informações que tinham sido disponibiliza- das sobre este projeto; de igual modo, fiz uma pesquisa bibliográfica adicional (de origens disciplinares diversas) que me ajudasse a apoiar a reflexão. É da articulação en- tre estas diferentes fontes que provém este olhar sobre

Auto das Máscaras, que agora partilho.

ENQUADRAMENTO

O espetáculo Auto das Máscaras, apresentado na cidade de Guimarães (Portugal) entre 27 e 29 de outubro de 2017, aconteceu no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), um novo espaço museológico na cida- de, construído de raiz e inaugurado em 2012, no âmbito da Capital Europeia da Cultura. Tem por missão difundir a “arte contemporânea e as relações que esta tece com ar- tes de outras épocas e diferentes culturas e disciplinas”1.

Apesar do seu caráter inovador, é percetível que uma

grande percentagem da população da cidade desconhece o museu e que tem mesmo uma relação ‘problemática’ com aquele espaço. Talvez porque não tenha ainda es- quecido que naquele sítio, bem no coração da cidade, se situava, outrora, o mercado municipal, onde os habitan- tes da cidade iam fazer as suas compras. A este propósi- to, a artista Ann Hamilton, quando convidada a intervir no CIAJG pela Bienal de Arte Têxtil Contemporânea2,

referiu existir ali uma “ferida original e aberta”.

A resistência em atravessar as fronteiras daquele edifício não terá passado despercebida ao encenador de

Auto das Máscaras, João Pedro Vaz (JPV), pois foi ali que

decidiu desenvolver a sua primeira criação quando, nos finais de 2016, assumiu o papel de diretor artístico da companhia profissional da cidade, o Teatro Oficina. Deste modo, e como nos disse, este projeto deverá ser equa- cionado enquanto “(...) relação da comunidade com todo [aquele] museu” (JPV, entrevista, 18/02/2018). Inerente a esta proposta estará, pois, a possibilidade de as artes performativas estimularem o acesso de uma ‘outra’ popu- lação da cidade ao espaço do CIAJG.

Esta estratégia de mediação que o encenador quis testar no museu insere-se num movimento mais amplo, que tem início por volta de 1970 e é frequentemente denominado de New Museology3. Preconizava, entre

outros aspetos, que a ‘intromissão’ das artes performati- vas no seio dos museus fosse um meio diferenciador de experiências e um criador de novas dinâmicas de relação, e, portanto, possibilitasse novas leituras acerca do es- pólio de cada um dos museus. Nesta perspetiva, a ação performativa poderia transformar “(...) uma normal visita numa experiência imersiva onde o público é convidado a ver não só objetos significantes (...)”, mas a viver um “(...) percurso, vendo, ouvindo, tocando, cheirando” (Groppel- Wegener, 2011, p. 42). E, “(...) porque envolve muitos mais

3 Cf., a este propósito, Vergo (1989).

4 Mais informações em: https://icom.museum/en/activities/standards-guidelines/museum-definition/

5 A este propósito, referir que, em Portugal, esta discussão veio a público quando se pretendeu, em Lisboa, construir um museu que se apelidaria “das Descobertas”: https://expresso.pt/cultura/2018-04-12-A-controversia-sobre-um-Museu-que-ainda-nao-existe.-Descobertas-ou-Expansao

6 Artista português com uma vasta obra no domínio da escultura e artes visuais e que, nas últimas décadas, tem tido maior projeção internacional.

sentidos, essa visita será muito diferente de olhar um objeto num dispositivo que esteja fechado” (Groppel- Wegener, 2011, p. 42). Tais dinâmicas acabariam em última instância, por promover, entre outros aspetos, uma maior democratização dos museus enquanto espaços de conhe- cimento abertos a toda a comunidade. Do ponto de vista das artes performativas, estes intuitos têm percorrido o seu caminho, abrindo, para artistas e investigadores, novos terrenos de experimentação.

A discussão encetada, acerca destas novas ‘leitu- ras’ do espaço museológico, levar-nos-ia a um vasto campo de especialização e onde confluem diferentes áreas disciplinares. Para sinalizar a atualidade do tema, refira-se que existe, atualmente, um debate sobre o pró- prio conceito de museu e que esteve em foco na última reunião mundial organizada pelo International Council

of Museums4. Em particular, pretendeu-se associar os

museus a “(...) espaços democratizantes, inclusivos e po- lifónicos para um diálogo crítico sobre os passados e os futuros (...)” (Canelas, 2019), que deveriam trabalhar “(...) em parceria activa com e para diversas comunidades, para coleccionar, preservar, pesquisar, interpretar, expor e melhorar diversas compreensões do mundo” (Canelas, 2019). Não desconsiderando, igualmente, o questiona- mento, que se encontra na ordem do dia, sobre como se poderá “descolonizar os museus”5.

NÚCLEO

Quando conheci o espólio do CIAJG, descobri uma fabu- losa coleção de máscaras e, naquele preciso momento, senti que queria fazer um trabalho performativo a partir daquele espólio. (JPV, entrevista, 18/02/2018)

O interessante conjunto de máscaras africanas do CIAJG é parte integrante de uma vasta coleção pessoal do artista vimaranense José de Guimarães (JG)6, à qual

se acrescentam outras peças e objetos de Arte Africana, Arte Chinesa Antiga e Arte Pré-Colombiana. Sob a alçada do CIAJG, encontra-se, ainda, uma parte significativa das suas próprias obras artísticas. Nuno Faria, diretor do

espaço desde a sua fundação, tem sabido arquitetar cru- zamentos e ‘colisões’, por vezes improváveis, entre esse acervo e obras de artistas contemporâneos, tal como com peças, objetos e imagens do património popular, reli- gioso e arqueológico, provenientes quer de Guimarães, quer de outras geografias. Em todos os ciclos expositivos realizados, o curador tem sempre sabido desenhar um verdadeiro “(...) roteiro espiritual e simbólico que descre- ve um arco geográfico e temporal” (site GT) que propor- ciona aos visitantes uma experiência e “(...) uma reflexão sobre a diversidade enquanto forma de construção da identidade” (site GT).

PROPOSTA

O espólio de máscaras do GIAJG é talvez das coisas mais incríveis que nós temos na cidade. As pessoas não ima- ginam como é que o que aqui está exposto também faz parte das raízes identitárias das pessoas desta cidade! (JPV, entrevista, 18/02/2018)

As máscaras são, no entender de Monteiro (2012b), “os mais comuns e os mais inquietantes dos objetos, porque é de sua natureza afirmarem e negarem simul- taneamente a mesma coisa, esconderem e revelarem, serem secretas e regulares”. Foi, pois, perante tal comple- xidade que João Pedro Vaz teve de delinear a proposta

estruturante da criação. O que veio, finalmente, a adotar foi o mesmo conceito curatorial de cruzamento cultural e temporal que está plasmado no CIAJG. Assim sendo, a coleção de máscaras não daria lugar a um espetáculo onde fossem usadas ou onde se quisesse contar as suas histórias, funções, e mesmo simbologia, ou seja, Auto

das Máscaras não seria um espetáculo sobre máscaras,

ou sobre algumas das máscaras daquele espólio, mas antes “(...) sobre a presença da comunidade em frente daquelas máscaras (...)” (JPV, entrevista, 18/02/2018), ou seja, um trabalho de encontro e de diálogo com aquelas máscaras a partir de elementos da cultura vimaranense. As questões que estariam em discussão neste projeto de criação seriam, entre outras: i) Como é que tempos e visões do mundo diferentes podem coabitar?; ii) Como é que manifestações culturais de distintos lugares podem dialogar?; iii) O que é que esse encontro nos poderá revelar? Este projeto colocava-nos, pois, em face de um questionamento sobre o que pode haver de comum e de diverso entre manifestações culturais de distintas regiões e de diferentes momentos históricos. Em suma,

7 Ver: https://nicolinas.pt/

8 São eles: O pinheiro, As danças, O baile, As posses, As roubalheiras, As ceias, As novenas, O pregão, As Maçãzinhas, O magusto. 9 Ver: http://www.outravoz.com/

Auto das Máscaras não se projetou, unicamente, para

o CIAJG, mas também enquanto ação desenhada para um específico ecossistema sociocultural, o concelho de Guimarães, lugar onde, no entender do encenador João Pedro Vaz, ainda “(...) cheira muito a paganismo (...)” e onde se reconhece uma dimensão “(...) muito festiva, muito ritualística e mesmo muito performativa” (JPV, entrevista, 18/02/2018). Foi este contexto que o levou a “(...) experimentar, nesta cidade, um teatro que seja des- pojado da mundanidade e que vá buscar essa ideia da energia primitiva – qualquer coisa próxima do ritual (...)”, desejando que este espetáculo fosse capaz de “(...) con- tribuir para que a comunidade se atualiz[ass]e (...)” (JPV, entrevista, 18/02/2018). E assim se chegava ao conceito de ‘Auto’. Diferentes caraterísticas poderiam ser convoca- das para definir tal tipologia, mas optamos por salientar o ponto de vista do encenador: o “(...) modo singular de selecionar, por entre os elementos de uma comunidade, os intérpretes que irão fazer parte deste tipo de repre- sentação” (JPV, entrevista, 18/02/2018).

INTÉRPRETES

(...) No início até pensei que poderia haver alguns intérpre- tes profissionais. Em seguida, achei que precisava de um grupo da comunidade que tivesse uma certa abstração. E aí lembrei-me do Outra Voz. Depois pensei no momento performativo na Sala das Máscaras e pensei que ali pre- cisava de uma espécie de ritual explosivo de mascarados. Lembrei-me dos Nicolinos. (JPV, entrevista, 18/02/2018)

Vejamos, em modo sintético, as caraterísticas de cada um desses grupos que foram considerados, pelo encena- dor, representativos da identidade cultural da região, e que o levaram a escolhê-los:

– Velhos Nicolinos – são os ‘guardiões’ do patrimó- nio das Nicolinas7, festas em honra de São Nicolau que

celebram, simbolicamente, o atingir da idade adulta dos estudantes da cidade. As festividades desdobram-se em vários ‘números’8 e acontecem na cidade de Guimarães

entre finais de novembro e inícios de dezembro de cada ano, constituindo um incontornável marco sazonal da vida desta localidade. Para além de João Pedro Vaz con- siderar este ‘repertório’ performativo como um dos mais identitários da cultura vimaranense, reconhece ainda nos Velhos Nicolinos uma dimensão simbólica e ritualista que pode ser vista como “uma metáfora do uso daque- las máscaras” (JPV, entrevista concedida à Guimarães TV, outubro 2017).

– Outra Voz9 – grupo nascido na esteira das dinâmicas

artístico-culturais encetadas, em Guimarães, no momento da Capital Europeia da Cultura (2012). Atualmente, este

ensemble é composto por mais de 100 cidadãos do con-

celho, não-profissionais da área do espetáculo, maiorita- riamente seniores, com formações e profissões diversas e de estratos sociais diferenciados. A diversidade social do grupo une-se no prazer que todos partilham de explorar as potencialidades performativas da voz. Ao longo da sua existência, têm criado um repertório vocal e performati- vo próprio e onde se conjuga a linguagem experimental contemporânea com uma apropriação singular do can- cioneiro popular da região. Em síntese, a escolha de JPV ter-se-á fundamentado no facto de o Outra Voz:

• ser constituído por um número significativo de pessoas da região (mais de 100), o que lhe permitia alcançar a dimensão comunitária e participativa que almejava;

• ser já um dos ícones culturais e artísticos incontorná- veis da cultura vimaranense, o que reforçava o cunho representativo que queria imprimir ao projeto; • ter criado uma linguagem artística e um reportório

que estabelecem pontes entre memória e atualidade, o que alinhava com o desejo de experimentar uma nova poética para este ritual ‘contemporâneo’ e não religioso que pretendia criar.

Em síntese, para o que na verdade estes dois grupos tinham sido convocados era para interpelar e expandir as origens e os sentidos das suas próprias ações performa- tivas através do encontro intercultural, a partir daquelas máscaras.

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