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INIMIGO DO POVO E A CONFLUÊNCIA DOS MECANISMOS DE APROXIMAÇÃO Com o fim do projeto Tempo Livre no final daquele ano e

a criação da associação sem fins lucrativos Grupo Sócio- Cultural Código, os artistas caminham para um processo de total autonomia tanto na gerência de suas atividades quanto na criação artística. Através da conquista do Prêmio Montagem Cênica, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, o Grupo monta em 2009, Inimigo do Povo de Henrik Ibsen. Nesse espetáculo, também dirigido por Miwa Yanagizawa, o atravessamento pelo território impacta diretamente a obra original a partir de dois mecanismos. O primeiro, sob o aspecto dramatúrgico, consiste também em intervenções no texto original tendo por base a observação do território. A linha narrativa desta adaptação é dividida em três: a primeira que conta com a presença das cenas e persona- gens da peça original com adaptações dramatúrgicas, a

segunda com as intervenções criadas a partir de um pro- cesso de improvisações com personagens que se tornam “condutores” do enredo e um prólogo que se passa em momentos posteriores aos acontecimentos centrais da história. Os atores interpretam três personagens, sendo um em cada uma dessas divisões.

Nessa obra vemos a utilização dos mecanismos de aproximação ao território vistos anteriormente, como a composição do grupo. Nessa montagem, por exemplo, há substituição de grande parte dos personagens masculinos (Hovstad, Billing, Aslaksen, Morten Kriil) em grande maioria na obra original, por femininos (Ana Maria, Sandra, Alexia e Dona Carmem), demonstrando, assim, a participação das mulheres tanto no grupo quanto na sociedade atual. Em observância ao território, há a inserção de típicos repre- sentantes das camadas populares como condutores do

enredo: os trabalhadores da construção civil. Apesar de a obra original fazer alusão ao povo em seu título, as cama- das mais populares da sociedade eram retratadas apenas no final do texto original e de modo passivo. A montagem do Grupo Código busca inverter essa lógica, apresentan- do outros pontos de vista sobre o eixo central da peça, revelando não só a tentativa de uma construção de uma narrativa própria desse território sublinhando o seu “atravessamento”. Essas mudanças ajudam a tornar a obra ainda mais próxima da realidade local, já que encontram eco em aspectos sociais locais no momento em que a peça estava sendo construída e nos próprios aspectos consti- tutivos da formação do grupo, em sua maioria, composto por mulheres e moradores da cidade.

A citação de alguns dos acontecimentos da política regional também auxilia no processo de aproximação desse público à história ali contada. Apesar de o nome da cidade em que se passa essa montagem nunca ser mencionado, é possível perceber, a partir das referências citadas no texto, que se trata de um local familiar para os moradores, gerando um processo de associação. Há, in- clusive, a substituição das informações fictícias do texto original por referências que são consideradas marcas im- portantes da cidade e da região da Baixada Fluminense, como nome dos rios e de determinados bairros.

O atravessamento do teatro pelo território pode ser visto de forma mais concreta na abertura do espaço cêni- co para a interação com o público, permitindo a inserção do momento presente e do real, um aprofundamento da linguagem testada no espetáculo anterior. Aqui, o recurso é utilizado em dois momentos distintos na peça: no prólogo, que se dá na recepção do público e na cena da conferência, clímax da história. No primeiro, acontece a expansão do espaço cênico para além do palco italiano quando a recepção do público é feita por dois atores sob o ambiente que remete ao velório de uma criança, morta pelos impactos causados a partir da questão principal da peça. Eles recebem as condolências do público e

conduzem-no a partir da instauração desse ambiente que será exposto na continuidade da cena.

O segundo momento acontece durante a cena da Conferência em que o doutor Tomas Stockmann, perso- nagem central da peça, confronta e é confrontado pelos moradores da cidade. O texto adaptado faz referências diretas aos acontecimentos recentes da política brasileira e local, causando uma operação dúbia no espectador: os discursos se fundem já não permitindo distinguir se a mensagem dita pelo ator refere-se apenas aos aconteci- mentos relatados na peça ou ao tempo atual. Esse atra- vessamento chega ao ápice quando o universo dos ope- rários, ali presente como público da tal conferência, se funde ao universo dos personagens da obra original, com os atores se alternando de modo ainda mais freqüente, causando fricções no jogo teatral. No final da cena, o “povo” retratado na cena e representado pelos operá- rios, deixa o palco, toma a plateia e a incentiva a jogar “pedras” no personagem que proferiu a célebre frase, mantida da obra original: “Inimigo do povo é o próprio povo!”. O discurso atinge seu maior grau de dubiedade, sobretudo na versão do espetáculo mais recente reali- zada em 2016 e que circulou outros estados do país, em tempos das controvérsias do processo de Impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e de crimes ambientais históricos como o de Mariana/MG. Este recurso, somado à quebra da quarta parede, coloca o público na respon- sabilidade de fazer uma escolha ética: jogar ou não a pedra no ator/personagem que proferiu o discurso. No momento em que há a expansão do espaço cênico em confluência com o momento presente, real, a saída dos “operários” do palco e a “virada do jogo”, a plateia se mistura à representação ficcional do povo, imergindo e atravessando a encenação. O povo está em cena, não só caracterizado pela representação dos operários, mas também pela plateia. A história é invadida pelo real, o fora e o dentro se interpenetram, há o atravessamento do teatro pelo território de forma contundente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os esforços empreendidos neste artigo se direcionaram a entender como o Grupo Código operou o diálogo do teatro com o território a que estava inserido nos seus quatro primeiros espetáculos. A análise dos processos sugere a existência de um teatro atravessado pelo ter- ritório por meio de diversos mecanismos de aproxima- ção como a composição social do grupo e a observação das características territoriais como fonte de inves- tigação teatral. Esta aproximação do território se dá, inclusive, na adaptação dos textos clássicos da drama- turgia nacional e universal. Esses mecanismos tendem a tencionar o duplo movimento do teatro a partir da inserção dessas características como elementos de en- cenação, da expansão espacial da cena, influenciando também na estrutura cênico-dramatúrgica do espetá- culo, o que envolve os âmbitos “de fora” e “de dentro” e ajudam a caracterizar o “atravessamento”.

Os diálogos do teatro com territórios específicos a partir de mecanismos de aproximação indicam uma forte tendência contemporânea presente nos processos de criação empreendidos por grupos da periferia. Operações como essas podem ser vistas em produções semelhantes realizadas nas últimas duas décadas a produções mais recentes como as da Cia. Marginal do Complexo da Maré

Eles não usam Tênis Nike e da Baixada Fluminense como

a Cia. Atores da Fábrica de Nova Iguaçu em Ricardo III. O atravessamento pelo território parece ter se transfor- mado em uma condição no desenvolvimento dos proce- dimentos criativos do Grupo Código a partir dos meca- nismos de aproximação aqui relatados. Nesse sentido, a produção teatral empreendida nesses 14 anos pautou a construção da sua linguagem, sobretudo nos anos ini- ciais, como vimos, graças à sua abertura para o “fora”, tal qual Bident (2016).

Acredito que o uso dos mecanismos que possibilitam o atravessamento possam ser instrumentos importantes para o desenvolvimento de um teatro que busca forta- lecer as narrativas oriundas de territórios específicos. Esses mecanismos são explorados, ainda, de diversas formas nas seis obras seguintes produzidas pelo coletivo até os dias de hoje e contribuíram para o adensamento

da pesquisa de sua linguagem e por torná-la marca do grupo. O reflexo dessa criação estética também pode ser notado, em maior ou menor grau, nos cerca de quinze es- petáculos teatrais criados através das oficinas de teatro promovidas pelo grupo ao longo dos seus quase quinze anos de existência no seu território de morada.

AGRADECIMENTOS

À Márcia Pompeo Nogueira (in memoriam).

A participação no EIRPAC foi realizada com o apoio da CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior – Brasil através da Bolsa de Doutorado Sanduíche no Exterior PDSE 2018-2019.

REFERÊNCIAS

Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Disponível

em: <http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/749>. Acesso em: 31 de Julho de 2018.

Bident, C. (2016). O teatro atravessado. In: Art Research

Journal. Revista V. 3, n. 1. p. 50-64. jan./jun. Rio Grande do

Norte, Brasil: UFRN. Disponível em: < https://periodicos. ufrn.br/artresearchjournal/article/view/8504>

Coutinho, M. H. (2012). A favela como palco e personagem. Rio de Janeiro, Brasil: FAPERJ. Da Costa, J. (2014) Dentro e

fora do teatro e da representação: modos de lidar com o

comum e com o outro. In: Revista Sala Preta. v.14, n.2. São

Paulo, Brasil: USP. Disponível em: < https://www.revistas. usp.br/salapreta/article/view/84740>

Haesbaert, R. (2009) Território e região numa “constela- ção” de conceitos. In: Mendonça, F.; Sahr, C. L. L.; Silva, M. (org.). Espaço e tempo: complexidade e desafios do pensar

e do fazer geográfico. Curitiba, Brasil: Ademadan.

Nogueira, M. P. (2017). Um olhar sobre o teatro em comu- nidades no Brasil. In H. Cruz (org.), Arte e Comunidade (2ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

BIOGRAFIA

SHORT BIO

Ator, produtor e um dos fundadores do Grupo Código na cidade de Japeri. É um dos articuladores da Rede Baixada Em Cena, movimento que reúne grupos de teatro da Baixada Fluminense. Doutorando em Artes Cênicas do

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO, é professor do Curso Técnico em Eventos da FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica).

Actor, producer and member of Grupo Código from Brazil. One of the main articulators of Baixada Em Cena Network, PhD student on Performing Arts at UNIRIO and teaching

Events Production at FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica), a technical school in Rio de Janeiro.

EJES PARA LA BÚSQUEDA DE PRÁCTICAS

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