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OS NÚCLEOS ARTÍSTICOS E AS IMAGENS EMBLEMÁTICAS Entendo que uma coreografia encarna e traça tempos e

espaços, também, socialmente implicados. Ao acompa- nhar diferentes artistas da dança da cidade de São Paulo, observei que, suas inserções nos espaços urbanos, os mobilizaram a perceber, identificar, dialogar, debater com coreografias sociais pré-existentes, traçadas por habitan- tes e transeuntes dos lugares escolhidos. Este movimento pareceu-me auspicioso quanto às reflexões sobre as di- mensões éticas e políticas de suas proposições poéticas e estéticas como artistas da dança.

A seguir, apresento os três núcleos artísticos focali- zados na pesquisa “Processos de criação e pedagogia da dança: configurações de um ideário relacional”. Meu pro- pósito, é que o texto de apresentação do grupo e da obra

e a imagem emblemática escolhida se apoiem para que eu possa compartilhar (mesmo que em um minúsculo recorte) alguns vestígios relacionais das intenções éticas e políticas – seus modos de transformar –, de cada um dos núcleos coreográficos estudados. Considerando que tais núcleos continuam ativos e realizando novos projetos e produções, nesta seção do texto, os dados e as reflexões se referem ao período e aos contextos daquela investigação.

A Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros inicia seus trabalhos em 2006, na cidade de São Paulo. Descende de uma geração que nos anos 1990 dedica-se a investi- gar a improvisação como dramaturgia para a dança. Em seus treze anos de existência desenvolve processos de criação, de modo colaborativo e coletivo, com ênfase na

improvisação em dança e na música, jogando com o diálogo entre essas linguagens para compor e dialo- gar com o público. Motivada pelo desejo de construir relações de maior proximidade com o público, outro interesse central da companhia são as relações entre as artes da cena, os espaços urbanos e seus habitantes e,

6 Concepção: Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros; Direção: Alex Ratton Sanchez; Intérpretes-criadores: Carolina Callegaro, Ciro Godoy, Clara Gouvêa, Laila Padovan e Larissa Salgado; Trilha Sonora: Gregory Slivar e Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros; Figurino: Fause Haten; Vídeos das intervenções: Filipe Augusto e Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros; Edição de vídeo e montagem: Vinícius Paulino e Alex Ratton Sanchez.

7 Neste caso, apoio-me na noção de empoderamento conforme discutida por Joice Berth (2019): como prática de transformação não apenas subjetiva, mas fundamen- talmente coletiva.

mais especificamente, sobre a qualidade dessas relações, sejam elas individuais ou coletivas.

Como imagem emblemática das relações coreográficas com o espaço e o público da cidade deste núcleo artís- tico, escolhi uma foto que registra uma das intervenções artísticas do projeto Sobre ruas e rios (Figura 1).

Figura 1. Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros. Projeto: Sobre ruas e rios. Local: Centro de São Paulo - SP - Brasil. 2014. (Foto: Clarissa Lambert).

O projeto Sobre ruas e rios6 (2013/2014) foi realizado

com o apoio do Fomento à Dança da Cidade de São Paulo e resultou na realização de intervenções cênicas por esta cidade e do videodança “Sobre ruas e rios”. Neste projeto, a Cia. Damas em Trânsito e os Bucaneiros partiu de algu- mas das intervenções anteriores realizadas nas ruas de São Paulo durante o processo de criação da peça “Espaços Invisíveis”, e propôs-se a investigá-las mais profundamen- te, quanto às relações entre o corpo, a dança e destes com a cidade e o público, neste caso “os transeuntes que se deparam com a intervenção em meio ao seu cotidiano” (Damas em Trânsito e os Bucaneiros, 2019).

Sobre o nome do projeto a companhia esclarece que havia como intenção:

falar sobre aquilo que está visível e também aquilo que está ‘submerso’ e invisível na imaginação da cidade, e no caso da cidade de São Paulo, os rios estão na sua maioria invisíveis, encanados, escondidos e contidos. A ideia de que existem coisas que estão prestes a transbordar, e que o corpo pode ser um meio para isto (Damas em Trânsito e os Bucaneiros, 2019, grifo dos autores).

Peço aos leitores que prestem atenção por alguns ins- tantes a imagem, observando as inúmeras linhas traçadas entre os olhares, atentos ou desatentos à intervenção dos

artistas. Onde estão os artistas? Quem dança com quem? Quem está (re)compondo as linhas de força e os espaços de intensidade que se evidenciam no registro fotográfico dessa dança que parece ter emergido do solo? Nestes vestígios relacionais chamo a atenção para a imaginação

poética como aspecto marcante nas intenções éticas e

políticas da Cia Damas em Trânsito e os Bucaneiros. A Cia Sansacroma foi criada há 17 anos pela artista e educadora Gal Martins, na zona sul da cidade de São Paulo, em uma região periférica. Ao longo deste tempo, na perspectiva da estética marginal, a companhia vem fincan- do raízes de resistência no cenário da dança paulistana, com inúmeras produções, colocando em questão a pre- tensa universalidade dos direitos civis e o racismo cordial presente no país. Destaca-se a pesquisa e metodologia de criação em dança desenvolvida por Gal Martins denomina- da de “Dança da Indignação”, cujo conceito pressupõe uma linguagem estética que pretende reverberar indignações coletivas numa abordagem política.

Escolhi a foto abaixo (Figura 2), como uma imagem emblemática do que entendo ser um aspecto pulsante das intenções ético-políticas deste núcleo artístico, em suas relações coreográficas com o espaço e o público da cidade: o empoderamento7. A foto escolhida é um regis-

tro de uma das apresentações públicas do espetáculo “Outras portas, outras pontes”.

Figura 2. Cia. Sansacroma. Obra: Outras portas, outras pontes. Local: Terminal Pq. D. Pedro II - São Paulo - SP - Brasil. 2015. (Foto: Raphael Poesia).

8 Direção artística de Gal Martins, direção coreográfica de Yaskara Manzini, e trilha sonora composta pelo multi-instrumentista Cláudio Miranda, da banda Poesia Samba Soul e os músicos Zinho Trindade e MC Gaspar.

9 Direção de Uxa Xavier. Intérpretes-criadoras Aline Bonamin, Bárbara Schil, Suzana Bayona, Thaís Ushirobira e Tatiana Cotrin.

Em 2012, o espetáculo Outras portas, outras pon-

tes8 foi criado para comemorar os dez anos da Cia

Sansacroma e os cem anos do bairro em que a compa- nhia nasceu, o Capão Redondo, situado em uma região periférica da cidade de São Paulo.

O resgate da ancestralidade africana e nordestina, das heranças e da identidade cultural do povo negro e pe- riférico demarcam a investigação dos trabalhos da Cia Sansacroma. Particularmente, esta obra lança um olhar sobre o apartheid mascarado – étnico-racial e social – ainda existente no Brasil. No processo de criação os próprios bailarinos, moradores de regiões periféricas da cidade, identificaram e manifestaram as indignações sociais, políticas e poéticas que caracterizam o cotidia- no dos bairros e comunidades em que vivem e por onde transitam. O espetáculo tornou-se itinerante sendo apre- sentado em outros bairros, em espaços públicos abertos, em terminais de ônibus, em estações de trem e de metro, dialogando com outros públicos potencialmente identifi- cados com as questões mobilizadoras da performance.

Na imagem emblemática escolhida, o espetáculo está sendo apresentado em um dos mais movimentados terminais de ônibus da cidade de São Paulo, por onde circulam mais de 150.000 pessoas, diariamente, que transitam entre diferentes regiões e bairros da capital. Neste fragmento coreográfico, os artistas, em sua maioria mulheres negras, apresentam-se como em um levante, agrupando-se em uma dança que desafia a apatia, o can- saço anestesiante dos usuários presentes no terminal.

Os corpos parecem exaltar a própria encarnação, em uma dança empoderada em cada um e coletivamente e, que assim, se propaga desafiando possíveis configurações culturais, sociais e políticas do espaço em que tem lugar.

Criado em 2010 pela artista e educadora em dança Uxa Xavier, o grupo Lagartixa na Janela desenvolve pes- quisa continuada “sobre as infâncias, na perspectiva de revelar o corpo da criança no espaço público. A questão original e que permanece até hoje é: onde e como as crianças ocupam a cidade?” (Lagartixa na Janela, 2019). Em quase uma década de trabalho, o grupo vem criando procedimentos e práticas de investigação das relações do corpo dançante e o espaço público, procurando criar um diálogo com o universo das infâncias, assim como, “com as memórias remotas dos adultos” (Ibid., 2019).

Em suas performances o grupo busca ativar estados de presença, estados de contemplação e encontros entre artistas, espaços e público. Rompendo com qualquer intenção de colonização, seja do espaço, seja do especta- dor, as artistas que compõe o grupo investem “nas topo- logias e paisagens que lhes são apresentadas/reveladas, e que se transformam em proposições de investigação e criação em dança”. (Lagartixa na Janela, 2019)

Escolhi a foto abaixo (Figura 3), como uma imagem emblemática do que entendo ser uma das características deste núcleo artístico em suas relações coreográficas com o espaço e o público da cidade: criar vínculos. A foto escolhida é um registro da performance “Poemas Cinéticos” 9.

10 “This kind of aesthetic action has been cultivated throughout history in different cultures as an avenue of jolting us out of our everydayness, as a process of opening spaces for us to examine what have been designated as socially acceptable ways of being, as a catalyst for challenging labels and restrictions, and as an experience that sensually educates us to think beyond and imagine what is not yet.” (Shapiro, 2017, p. 666)

11 Devido ao recorte proposto, não irei detalhar a respeito dos percursos formativos dos artistas pesquisados. Devo destacar que apesar da diversidade dos trabalhos técnicos e inventivos que seguem investigando - caso da Cia Sansacroma que prioriza fontes de pesquisa que questionam referenciais estéticos europeus e americanos ainda dominantes na dança no Brasil – os três núcleos pesquisados incluem-se na cena artística contemporânea.

Figura 3. Grupo Lagartixa na Janela. Obra: Poemas Cinéticos. Local: Praça Campo Limpo - São Paulo - SP - Brasil. 2014. (Foto: Uxa Xavier).

Segundo o grupo Lagartixa na Janela, a performance de dança “Poemas Cinéticos” (2011) foi criada a partir da relação do corpo com os espaços urbanos: praças, parques e espaços abertos. As artistas-dançarinas criam relações com a dimensão arquitetônica e simbólica dos lugares em que se apresentam, potencializando tais lugares “como um grande quintal de criação”. Neste suposto quintal, abre-se espaço para a contemplação, para a circulação de memó- rias e sentidos, para a “ludi-cidade”, que “se alternam nesta proposta onde o encontro da dança com os elemen- tos do espaço estimula o imaginário do espectador, sejam eles crianças ou adultos” (Lagartixa na Janela, 2019).

Em uma praça no bairro de Campo Limpo, na zona sul da cidade de São Paulo, vemos dois fragmentos de tecido vermelhos. Em um, estão deitadas uma dançarina e uma criança. E, no outro, estão também uma dançarina e uma outra criança, por debaixo, escondidas. Momento de quietude, de conversa silenciosa pelo olhar, pelo contato próximo do gesto dançado. Estão a se escutar? Estão a escutar a praça? A praça, um tanto singela, parece mais desperta com tais qualidades de presença, mesmo que por alguns instantes, deixa de ser um lugar qualquer, ou, para as artistas e para as crianças, deixa de ser apenas “um lugar após o outro”, como sugere Miwon Kwon (1997).

PRÁTICAS ARTÍSTICAS DA DANÇA E A BUSCA DO COMUM

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