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Perspectivas ético-políticas para realização da pesquisa

A ideia de pensar em perspectivas ético-políticas no âmbito da proposta desta pesquisa está especialmente relacionada ao desafio e problema que esta pesquisa busca enfrentar, de explorar as possibilidades de que a singularidade daquilo que é produzido no contextos dos projetos coletivos envolvidos na pesquisa – patrimônios materiais e imateriais dos grupos e, de forma mais ampla, do campo das ações na interface arte, saúde e cultura – seja compartilhado e possa incidir em outros territórios, sem que esta divulgação fira os modos de existir desses grupos.

Se, por um lado, temos construído, a partir da expe- riência, a noção de que a chegada das populações com quem trabalhamos (em sua maioria marcada por expe- riências com deficiências, sofrimento psíquico e outras situações de ruptura das redes sociais e de suporte) dependeu de um movimento de um grupo populacio- nal com vidas distantes deste tipo de vulnerabilidade (trabalhadores da saúde, das artes, da cultura e da universidade) para construir possibilidades de circulação cultural, pertencimento social e agenciamento de lugares de criação/artísticos, de outro lado, temos uma zona de risco (entre a captura e a potência) que muitas vezes encerra a experiência em códigos/semiotizações estri- tas a um domínio do vivido e em outras dispõe forças a partir de conjunções vitalizadoras, que guardam relação com outras formas de experiência como a dos “guardiões da criação”, de Nise da Silveira (1981), e a das “presenças próximas”, de Fernand Deligny (2015), entre outras.

No caso desse projeto, em específico, esse risco está atrelado ao ponto de partida vinculado ao campo acadêmico/científico. Reflexões sobre a relação entre a academia, os processos de produção de conhecimen- to e a comunidade que deles participam nos trazem

importantes questões para a formulação de proposições e formas de composição instauradas pela pesquisa.

Enquanto uma pesquisa-intervenção, essa inves- tigação se caracteriza pela colocação em análise da posição que o pesquisador ocupa nos jogos de poder e sua implicação com a instituição do saber científico, o que irá indicar também, sua abertura para criar zonas de indagações, de desestabilização que possibilitem que o coletivo envolvido na pesquisa possa efetivamente participar. Para Lourau importa, sobretudo, a disposição do pesquisador para se deslocar do lugar de especialis- ta e incluir-se na análise dos jogos de saber-poder que compõem o campo e a realidade observada (Lourau, 1975,

apud Romagnoli, 2014).

Nesse sentido, começamos por nos perguntar: como nos relacionarmos com outras formas de vida indo em direção a elas e não puxando-as para nossas formas? Daí a necessidade de recorrer a um conjunto de “pensamen- tos já pensados”, em circunstâncias distintas, em torno ao impasse entre o poder e a potência do campo aca- dêmico/científico na relação com esses feitos e vidas de outros mundos para afinar um posicionamento ético-po- lítico que ofereça condições suficientes para a atenção e o manejo desses riscos no processo da pesquisa.

Num primeiro momento buscamos referências e conceitos que nos ajudassem a formular e elaborar essas questões, de forma a produzir uma pesquisa implicada e a noção de “agenciamento coletivo de enunciação” (Guattari, 1992) pareceu interessante para orientar o trabalho.

Uma sequência de encontros entre os pesquisadores para estudos teóricos realizada possibilitou a exploração de textos que contribuíssem com a problematização da relação da ciência com outras formas de conhecimento; a relação da ciência com a vida; a relação entre os pesqui- sadores e os participantes da pesquisa; e os processos de criação de visibilidades e produção de enunciados que

terão lugar nessa pesquisa. Assim, buscamos articular conhecimentos e localizar as linhas de investigação e estudos conceituais para construir as propostas de ação junto aos participantes e colaboradores que foram se constituindo como um campo vivo.

Nesses encontros discutimos noções como visualida- des, invisibilidades, interação, encontros, interferência, produção poética, trocas, expressão, contato, sensibilida- de, linguagens, reconhecimento, entre outras, que foram delineando conversas, autores, leituras e discussões para exercitar nossa perspectiva ético-política no ato de pesquisar e no trabalho coletivo. Nesses encontros cada pesquisador propôs referências que problematizam a produção de conhecimento e dialogam com o momen- to, criando um plano conceitual, definido por debates e tensões, presentes na formação da dimensão transdisci- plinar da pesquisa.

Operações da análise institucional, da psicanálise e da esquizoanálise, da filosofia, da estética, da epistemo- logia, das artes e da antropologia nos ajudaram iniciar o traçado de uma rede de conceitos, compondo elemen- tos que colaboram para pensar esse posicionamento. Assim, percorremos leituras de Félix Guattari (1992), Gilles Deleuze (1998), Michel Foucault (2014), Isabelle Stengers (2018), Eduardo Viveiros de Castro (2008), David Lapoujade (2017) e Luis Fuganti (2016).

Em um dos encontros convidamos um pesquisador externo à equipe, do campo da filosofia, Filipe Ferreira, de forma a propiciar um espaço de apresentação das ques- tões vivas e desenvolver, a partir de uma escuta atenta a alguns conceitos, caminhos para as propostas de ação junto ao campo vivo com os participantes. A partir desse diálogo foi possível perceber a importância de afirmar uma linguagem própria para formular os problemas e estratégias de criação que já vem sendo experimentadas pelo próprio Pacto, assim como pelos projetos coletivos parceiros. Elaborar as próprias formulações, deixar brotar conceitos e imagens a partir de espaços de encontro e criação conjunta de forma comum. Nesse percurso, dese- nhamos uma proposta de Seminário de Pesquisa que pu- desse instaurar espaços de encontro e produção conjunta com os parceiros daquele momento, mas aberta a quem pudesse se interessar por essa composição. Com esse movimento, buscamos propor formatos que promovessem aberturas entre universidade e comunidade de modo a experimentar outras formas de implicação nessa relação.

Seminários Deslocamentos Sensíveis – Encontro de cole- tivos na interface arte e saúde: aparições, existências e explorações

Inicialmente pensados como seminários de pes- quisa, foram realizados dois encontros abertos, para os quais foram convidando os parceiros do Pacto que atualmente constituem o grupo da pesquisa, a partici- par desse processo.

O primeiro Seminário, realizado no Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional – FMUSP, teve o objetivo de criar um plano comum para uma aproximação sensível dos coletivos, projetos e

propostas na interface arte, saúde e cultura com a pro- posta da pesquisa. Para sua realização foi necessário nos abrirmos para outras formas de comunicação e relação com a comunidade, de modo a gerar espaços de troca e conexão dos participantes com as questões sobre as quais a pesquisa busca se debruçar. Os coletivos foram convidados a trazer questões, imagens e materiais que pudessem compartilhar com os demais, demandando de cada envolvido uma participação ativa no processo. Essa forma de trabalhar exigiu da equipe de pesquisa uma atenção às relações e às diferentes formas de contato, expressão e diálogo, demandando uma escuta sensível para diferenças e possibilidades de composição.

O seminário operou por agrupamentos menores, em pequenas rodas de interação entre os participantes buscando formar espaços de troca entre os diferentes co- letivos, nos quais convidamos os presentes a contribuir para a instauração de um plano de produção, vinculado às temáticas focais da pesquisa, definidas em estações com descrições e questões disparadoras:

• aparições: modos de surgir, emergir. Como os projetos

se veem sendo vistos? Como e onde aparecem?

• existências: modos coletivos de existir, como o projeto

se sustenta nesse plano comum o desafio de fazer coisas juntos por tanto tempo?

• explorações: que dimensão de pesquisa o trabalho do

projeto tem, em que medida a relação com a univer- sidade potencializa o trabalho? Como a pesquisa se relaciona com o trabalho?

Foram compartilhadas impressões, memórias, expe- riências e desejos em relação a esta rede, alguns registros de imagem, e cartografias, foram produzidos, além das discussões acompanhadas por cada um dos membros da equipe da pesquisa, distribuídos em cada estação. No en- contro pudemos experimentar métodos de criação conjun- ta em outras formas de interação para além da produção do discurso verbal, buscando facilitar a participação de todos, criando condições para serem percebidas outras formas de expressão. Traçamos também cartografias a partir de uma escuta atenta e do registro em diferentes suportes da participação dos envolvidos. Realizamos vídeos que foram exibidos ao final do próprio encontro e mapas desenhados coletivamente de forma a sistemati- zar as questões trazidas pelos presentes. Estes materiais, gradualmente, estão sendo tratados em convergência com as ações das etapas seguintes da pesquisa.

O segundo Seminário foi realizado no Centro Universitário Maria Antônia (CEUMA-USP) e deu continui- dade ao ciclo de interlocuções relacionadas ao desen- volvimento da pesquisa, buscando aprofundar o tema das aparições, intensificando as trocas sobre os modos dos projetos de surgir e aparecer no espaço público, de modo a fortalecer um plano comum instaurado na rede de coletivos e projetos ligados à pesquisa. Cada projeto foi convidado a organizar presenças e imagens, fazendo uma aparição no Seminário e criando visualidades para o trabalho que desenvolve.

Muitas foram as formas de divulgação do encontro, tantas quantas foram possíveis no agenciamento da rede: imagens em cartaz, impressos, contágios de uns para

outros presencialmente (boca a boca), por redes sociais, contatos telefônicos, visitas aos projetos parceiros e mensagens por e-mail.

Os Seminários instauraram um campo comum para a realização da pesquisa, a partir do qual começamos a realizar Oficinas com participação de integrantes dos coletivos envolvidos na pesquisa. As primeiras Oficinas

– Oficinas de registro e produção de imagens: instrumen- tos para a captação de aparições sensíveis – exploraram, a partir de processos participativos e colaborativos, ações e instrumentos de captação e registro sensíveis que podem tornar visíveis as singularidades da vida cole- tiva que se engendra ali.

CONSIDERAÇÕES

Questões atualmente vivas

A perspectiva de tornar público modos de operar e as produções nos coletivos implicados com a pesquisa pode favorecer a criação de pistas para a multiplicação de metodologias de resistência e enfrentamento de proces- sos de institucionalização, hegemonização dos modos de fazer, e padronização, que insistem nas especialidades e rejeitam a dimensão múltipla e paradoxal no tratamento à vida.

Em sua fase inicial, a constituição da equipe e os debates buscaram explorar perspectivas ético-políticas afinadas com as questões e o campo da pesquisa, e indi- caram os primeiros passos para a investigação conceitual que atravessa toda a intervenção proposta. De modo exploratório, conceitos e referenciais bibliográficos foram trazidos, instaurando um plano de embate e compartilha- mento, indicando subsídios para realizar o acolhimento e fomentar o envolvimento dos projetos coletivos parcei- ros, no processo de pesquisa. A disposição de pesquisar com os grupos e para eles instaura uma relação rara nos processos de pesquisa, invoca um cuidado singular nas interações e sustentação dos encontros com expressões poéticas que mobilizam sensibilidades e emancipam as trocas entre todos.

Desses encontros podem decorrer, conforme intencio- na a pesquisa, dispositivos de uso do comum (Agamben, 2015). Mas como experimentar e construir essas regiões compartilhadas no processo de pesquisa? Que regimes de sensibilidade e de linguagem podem instaurar trocas

significativas? Como selecionar os modos de dizer e de mostrar os fazeres artísticos e culturais de cada grupo?

Trata-se, sobretudo, de inventar conjuntamente estratégias para que os modos de criação e vida coletiva experimentados nos projetos possam ser compartilhados e ganhar visibilidades que considerem suas singulari- dades, potencializando a inserção artístico-cultural das obras e de seus autores e construindo formas de divulgar os projetos.

A pesquisa vai se constituindo em um encadeamento de momentos cheios de significados construídos coletiva- mente. A análise da implicação de cada um com o projeto em curso, seu envolvimento com a realidade pesquisada, as interferências da pesquisa na vida de cada um, promo- veu o andamento das atividades da pesquisa no decor- rer de 2019, a partir de estratégias de coletivização que incluíam documentação dos trabalhos e análise das expe- riências, na construção de pistas sobre modos de funcio- namento que possam reverberar em outros territórios, e funcionar como intercessores na produção de tecnologias socioculturais e de conhecimento compartilhado.

No momento atual, a equipe, os grupos e participan- tes vem tecendo juntos um novo ponto de intersecção dessa rede, adensando possibilidades de participação e troca, instaurando uma política de cuidado com as expe- riências, construindo um conhecimento intervencionista e incorporando em suas análises seus principais efeitos. O andamento da pesquisa ganha força no reconhecimen- to dos movimentos dessa rede, ativa modos de existência e mobiliza suas durações.

REFERÊNCIAS

Agamben, G. (2015). Meios sem fim: notas sobre a política. (Davi Pessoa, trans.). Belo Horizonte: Autêntica.

Deleuze, G. (1998). Michel Tournier e o mundo sem ou- trem. In: ______. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. (pp. 311-330). São Paulo: Perspectiva. Deligny, F. (2015) O aracniano e outros textos. (Lara de Malimpesa, trans.). São Paulo: N-1 edições.

Guattari, F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético (Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, trans). São Paulo: Ed. 34.

Foucault, M. (2014). Aulas sobre a vontade de saber: Curso no collège de France (1970-1971). (Rosemary Costhek Abílio, trans.). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. Fuganti, L. (2016). Escola Nômade – Agenciamento. Disponível em: http://escolanomade.org/2016/02/24/ agenciamento/

Lapoujade, D. (2017) As existências mínimas. (Hortência Santos Lencastre, trans). São Paulo: N-1 edições.

Romagnoli, R. C. (2014) O conceito de implicação e a pesquisa-intervenção institucionalista. Psicologia &

Sociedade, 26(1), (pp. 44-52).

Silveira, N. (1981). Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra.

Stengers, I. (2018) A proposição cosmopolítica. Revista do

Instituto de Estudos Brasileiros, 69 (1), (pp. 442-464).

Viveiros de Castro, E. (2008) Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.

BIOGRAFIAS

SHORT BIOS

Isabela Umbuzeiro Valent. Doutoranda. PGEHA-USP. Brasil. Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima. Professora e orientadora. Curso de TO, FMUSP; PGEHA-USP; Mestrado Profissional em TO, FMUSP. Brasil.

Erika Alvarez Inforsato. Professora. Curso de TO, FMUSP.

Brasil.

Renata Monteiro Buelau. Terapeuta ocupacional. Curso de TO, FMUSP. Brasil.

Eliane Dias de Castro. Professora e orientadora. PGEHA- USP; Mestrado Profissional em TO, FMUSP. Brasil. Isabela Umbuzeiro Valent. PhD student. PGEHA-USP. Brasil.

Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima. Full Professor. OT Course, FMUSP; PGEHA-USP; OT Mater, FMUSP. Brasil. Erika Alvarez Inforsato Professor. OT Course, FMUSP. Brasil.

Renata Monteiro Buelau. Occupational therapist. OT Course, FMUSP. Brasil.

Eliane Dias de Castro. Professor. PGEHA-USP; OT Mater, FMUSP. Brasil.

INTERRUMORES: NOVAS IDENTIDADES

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