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ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

I. TRAJETÓRIA NO MAGISTÉRIO: IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA PROFISSÃO

9. COMO SE COMPORTAVAM

As referências feitas aos comportamentos dos professores e professoras no início de suas carreiras remetem a questões fortemente presentes ainda hoje no imaginário dos docentes. A primeira, e já trabalhada em itens anteriores, seria de que os professores e professoras mantêm valores de uma classe social determinante no contexto de então. No caso, valores “burgueses” ou ligados à elite brasileira que sempre determinou as relações sociais no nosso país. Outro aspecto se refere à origem social dos professores e professoras. Essa questão tem sofrido mudanças ao longo do processo histórico. Por fim, um aspecto que merece ser abordado refere-se a proletarização da profissão, ou seja, o processo pelo qual a profissão docente vai atravessando ao longo dos tempos, sendo empobrecida, desprestigiada. Atualmente, uma das grandes preocupações em relação à profissão diz respeito ao fato dela ter-se tornado sem atrativos. O salário, o desprestígio social, as péssimas condições de trabalho, a falta de perspectivas de crescimento profissional faz com que hoje, a profissão deixe de ser buscada e já se fala em “apagão” no magistério; a ausência de professores em determinadas aéreas de conhecimento já se faz sentida, tanto nos cursos de formação das universidades públicas, quanto no sistema de ensino.

Quando os professores e professoras foram solicitados a falar sobre o comportamento dos docentes, quando do início de suas carreiras, mais uma vez o parâmetro comparativo foi a

atitude dos mesmos na atualidade. Fica evidente a mudança no modo de se comportar dos professores e professoras.

Para um professor entrevistado a mudança nos comportamentos dos docentes seria conseqüência da expansão da rede de ensino. Essa expansão deveria ter sido acompanhada de uma política de formação dos docentes, de uma política de expansão da rede física das escolas, enfim, das condições para que a qualidade de ensino se mantivesse em relação ao tempo em que a classe média era maioria da clientela nas escolas da rede pública. Houve um tempo em que a formação para o magistério era bem limitada. Com a criação e expansão das escolas normais a formação de professores e professoras cresce numericamente. Aquela formação que era contida e de um grupo considerado de “elite” passa a ser de uma massa de docentes. Essa questão relaciona-se também com a questão da origem social do professor.

Quando perguntados se possuíam casa própria à época do ingresso no magistério, observou-se que dos 16 que responderam, exatamente 8 (50%) afirmaram possuir casa própria e a outra metade afirmaram não possuir. O que pode indicar uma diversidade na origem social do professor, que ingressou no magistério, predominantemente nas década de 1950 (nota 6).

“Houve uma mudança muito grande. Houve uma mudança muito grande e pela própria expansão da rede. E também pela questão principal, de uma profissionalização mais rápida. Então, houve uma mudança sim. Houve um processo aí pela desvalorização, uma pauperização do professor”. (Car, professor, 58 anos).

Mudou, e eu acredito que foi para pior. (Lor, professora, 80 anos).

Na fala dos professores e professoras percebe-se que existe a compreensão de que os docentes devem ter um jeito diferenciado de se comportar.

“Olha. Eles cobravam muito comportamento da gente. A gente tinha que ter postura. A gente tinha uma postura de professor. Para começar não era chamada de tia. Era professora, era respeitada. Mesmo os funcionários da escola nos respeitavam. Porque você tinha um status, agora...” (Leo, professora, 72 anos).

“Ah sim, postura. Aliás, eu acho que até hoje o professor tem que ter”. (Be, professora, 67 anos).

E esse comportamento é confrontado com o da atualidade.

“Muitos perderam a postura em sala de aula. Outro dia uma aluna me disse: professor sentou na carteira e disse: ‘ah, não vou escrever na lousa não. Eu ganho tão pouco, eu não vou escrever’”.(Be, professora, 67 anos).

“Hoje o professor senta em cima da mesa, põe o pé aqui. Como é que pode? Cadê o respeito? Por isso que as crianças não têm mais limite. Professor não tem mais autoridade, aluno não tem mais limite, não tem disciplina, não tem nada. Deus me livre entrar numa sala de aula hoje”. (Zen, professora, 72 anos).

Certos comportamentos não eram permitidos, principalmente às professoras.

“Tinha certas regras. O professor tinha normas a serem seguidas. Sendo que não somente em sala de aula como fora. Isso era muitíssimo importante. Era uma característica do magistério”. (Jan, professora, 76 anos).

“Quando eu entrei com aquela saia godê, aquele vestido, aquele penteado de laquê, toda de jóia dentro de um bar na mesma hora a Teresa, a esposa do dono do bar, porque a mulher não vinha servir os homens. Mulher não saía pra servir homem, ela fazia as frituras lá e fez assim pra mim, que não era pra eu ficar ali na beirada”.(Glo, professora, 69 anos).

“Todo mundo pensava igual. Salvo casos pontuais. Muito poucos. A maioria era aquele comportamento de casar virgem, de não ser falada. Naquele tempo dizia-se não pode ficar falada. Porque a gente trabalhava numa cidade onde os costumes eram muito rígidos. Os costumes morais. Então a gente tinha que corresponder. A que fizesse uma coisinha fora já era criticadissima. A gente não dava mais pensão para ela nas fazendas...”.

As atitudes dos docentes eram naturalizadas, e para alguns professores e professoras, essas atitudes além de serem impregnadas de valores morais, se confundiam com valores de caráter cívico.

“Olha, não havia tanta proibição. A gente sabia até onde era, qual era o limite da gente. Quando começava o limite do diretor, ou do supervisor. Até aquele limite a gente sabe que a gente podia fazer o que a gente quisesse. Organizar festas, jogos. Bater papo com os alunos. A gente tinha mais liberdade porque a confiança no professor era tão grande, que o que era dado na mão do professor sabia que só podia sair coisa boa”. (Lor, professora, 80 anos).

“Também era uma atitude muito mais saudável. Eu acho que estava impregnada em nós essa responsabilidade de formar, não é só passar informação, mas formar cidadãos. Porque a gente levava muito a sério as datas cívicas. Levava muito a sério o país”. (Ro, professora, 72 anos).

“No interior os professores tinham que acompanhar os alunos até em desfiles”. (Mar, professor, 74 anos).

Algumas vezes, pelos depoimentos dos docentes, confunde-se a origem social dos professores com o seu despreparo. Principalmente, quando se fala dos comportamentos dos professores e professoras hoje.

“Elas não têm aquele gabarito, aquela fundamentação, aquela vontade de estudar, de aprender, aquela base de conhecimentos que nós tínhamos. Então por isso que o fundamento não está muito bom, né”. (Jan, professora, 76 anos).

“Porque hoje em dia, vou dizer uma coisa, eu tenho várias amigas que foram empregadas domésticas, as filhas atualmente são todas professoras. Então, você vê, mudou completamente a origem social dos professores”. (Jan, professora, 76 anos).

“Mas eu acho que o fato de ter um grupo menor, era um grupo mais elitizado, que se preparava mais. Talvez tivesse um suporte. Não eram pessoas que precisavam tanto lutar pela vida. Como eu vejo hoje que é uma questão de sobrevivência”. (Lu, professora, 68 anos).

Sobre a proletarização da profissão, Novaes (1991: 45) faz referência a questão tendo como parâmetro os salários dos professores em contraposição aos salários dos especialistas de educação (supervisores, diretores, inspetores de ensino e orientadores educacionais) no Estado de Minas Gerais. E constata que no período de 1966 a 1980, enquanto o salário real do professor sofre uma tendência decrescente, para os especialistas registra-se exatamente o contrário.

Sobre a questão essa autora afirma: “É interessante observar que até 1973 o salário de professores e especialistas vinha se comprimindo e que, a partir de 1974, os salários dos especialistas recomeçam a crescer, ultrapassando o piso do ano-base. O mesmo fato não ocorre com o professor, cujo salário, ao final da série, ainda é inferior ao do ano-base”. E afirma também que até 1973 os professores recebiam um salário 30% inferior aos especialistas e essa diferença chega a ser, a partir de então, de aproximadamente 50%.

Outro aspecto analisado por essa autora refere-se às condições de trabalho, como um indicador da proletarização do magistério. Constata então que, “além de assumir o encargo da manutenção da escola, a professora se vê obrigada a enfrentar prédios escolares sem o menor conforto: faltam vidros nas janelas, e o frio, o vento e a chuva inundam a sala; muitas vezes a janela é tão pequena que não cumpre as funções de iluminação e areação do ambiente; as goteiras atravessam os forros envelhecidos ou lajes sem cobertura; o piso costuma ser de cimento e no inverno as crianças chegam a ter os lábios arroxeados de frio. Os alunos se acotovelam e amontoam-se nos bancos, caixotes e nas poucas carteiras existentes; a cantina muitas vezes resume-se a um cubículo onde fica o fogão e onde as crianças passam para receber a merenda; o recreio é feito em terrenos baldios ou o aluno tem que permanecer dentro da sala de aula. A lousa tem uma cor indefinida que não permite identificar se ela já foi verde ou negra; os banheiros – escuros, louças velhas, esgotos enguiçados, falta de água corrente – mais parecem uma masmorra que uma instalação sanitária. O quadro não pode ser mais

desanimador: muitas das escolas existentes de escolas só têm o nome, as professoras e os alunos” (Novaes, 1991: 52).

Quanto à questão de que professores e professoras mantêm valores da classe dominante, vale lembrar que nossa educação contribui para que tenhamos uma visão com fortes conotações ideológicas da realidade. Por exemplo, é comum que na escola sejam veiculadas idéias que se distanciam da realidade. A escola, nos textos didáticos analisados por Nosella (1981:178), é retratada como um segundo lar. “A descrição desta instituição social é exatamente o contrário da realidade: ela é um lugar onde as condições sociais e econômicas dos alunos não têm a menor importância; onde a discriminação social é o maior delito e nunca acontece. Como na Família, a Escola não reflete as contradições sociais. Na Escola, os problemas e as desigualdades sociais são ignorados e, quando lembrados, a abordagem visa minimizar, privatizar e fatalizar esses fenômenos”. A proletarização profissional, os conflitos sociais, passam distantes dos debates escolares.

E quanto à origem social dos professores e professoras, é fato que essa sofreu modificações através dos tempos. Esse é um tema que merece ser mais aprofundado, pois se observa controvérsia, uma vez que não existe uma única origem social durante toda a trajetória da educação brasileira. Desde os padres-professores jesuítas até a grande massa de trabalhadores em educação que temos hoje, os professores e as professoras foram sendo recrutados conforme as necessidades e nesse percurso tiveram momentos em que existiam docentes de origem social simples, mal pagos, improvisados, até professores de formação consolidada, oriundos de famílias tradicionais e bem pagos.