• Nenhum resultado encontrado

ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

I. TRAJETÓRIA NO MAGISTÉRIO: IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA PROFISSÃO

1. ESCOLHA DA PROFISSÃO

Ao se reportar às origens da educação formal no Brasil e ao processo de como esta vai se estruturando, faz-se necessário que se retorne a educação ministrada pelos padres jesuítas, na época do colonialismo. A prática educativa de então, tinha como principal objetivo recrutar fiéis e servidores para as missões da Igreja Católica. A educação que se inicia com a missão de catequese dos índios, acaba se estendendo aos demais segmentos da população brasileira, embora com objetivos diferentes. Ao se indagar sobre o porquê da educação no Brasil ser considerada como um sacerdócio, como uma missão, talvez, a herança do caráter missionário da educação jesuíta possa ser uma das explicações para esse fenômeno. Tal concepção seria constitutiva da formação educacional brasileira. Faria parte das raízes da nossa educação, embora esse caráter, não tenha sido apenas privilégio da educação do nosso país. A questão da profissão como vocação, sacerdócio, missão, povoa o imaginário dos professores e professoras do Brasil, ainda hoje, fato demonstrado quando esses profissionais falam da opção pela profissão, conforme demonstram os seus discursos.

“É sacerdócio, é vocação. Missão (...) Ser professor para nós é uma coisa sagrada”. (Ame, professora).

“É dom de Deus”. (Mal, professora, 89 anos).

“Eu acho que para ser professora tem que ter vocação. O que não acontece muito nos dias de hoje. Muitos fazem magistério como quebra-galho. O magistério é uma coisa séria. Ser educador não é fácil”. (Ge, professora 67 anos).

Nesse sentido, as mazelas da profissão, consideradas fruto da escolha vocacional, passam a ser de responsabilidade de quem escolhe ou de quem “nasce” contemplado por essa vocação, de quem existe com o dom para ser professora ou professor. Assim, nessa perspectiva os espaços para a análise crítica da situação da educação são reduzidos, bem

como, os espaços para se reunir e organizar ações sindicais entre os docentes. Nesse caso, não cabe a luta, cabe a resignação pela predestinação que a vocação pressupõe.

Ainda em relação à vocação, sacerdócio, também se comprova essa forma de conceber a prática educativa na queixa apresentada por um professor que, no momento da entrevista, ocupava um cargo de liderança sindical.

“Inclusive a organização dos professores nos sindicatos, a dificuldade que nós tivemos era justamente fazer o professor entender que ele era um trabalhador também. Ele se considerava como sendo da classe diferente da dos trabalhadores. E quando você passava, discutia com os colegas a organização mesmo da Apeoesp, ou de movimento, de paralisação, ‘ah, mas isso é para os metalúrgicos, pros eletricitários, para os bancários’. Quer dizer, houve uma dificuldade muito grande de você, em termos, conscientizar o professor de que ele era um trabalhador, que conseqüentemente era extremamente explorado. Principalmente por essa idéia que ele tinha que se dedicar como se fosse um sacerdócio e não uma profissão”. (Car, professor, 58 anos).

Por outro lado, uma professora confirma tal queixa. Ao se abordar a questão da filiação dos sindicatos dos professores às centrais de trabalhadores, a exemplo da filiação da Apeoesp à Central Única dos Trabalhadores, CUT, ocorrida em 1983, essa professora, associada à Liga do Professorado Católico de São Paulo e ao Centro do Professorado Paulista simultaneamente, foi categórica, uma vez que, na sua avaliação essas duas entidades seriam apolíticas e apartidárias.

“Porque aqui a gente exerceu a profissão, ou exerce como uma coisa que faz parte da gente. É um sacerdócio mesmo. Então nós nunca nos filiamos a nada disso. Se ganha pouco, sabemos que o Alckmin não dá nada para a gente, mas a gente o respeita como governador”.(Ame, professora).

A questão da identidade profissional é muito delicada e interfere na luta sindical. Essa identidade que é constitutiva da subjetividade do professor e da professora, conseqüentemente determinará sua ação. Em certos momentos da luta, se os professores e professoras tivessem

internalizado na sua identidade profissional, que também são trabalhadores, que estão inseridos em um sistema capitalista, talvez a luta sindical fosse fortalecida.

Em relação a essa questão, tem-se a compreensão de que o professor é um trabalhador, porém tratá-lo como um operário significa desconhecer as especificidades da profissão. Como trabalhadores, os professores e professoras, vendem diuturnamente seu trabalho, são explorados e contribuem direta ou indiretamente para a reprodução da mais-valia. Entretanto, os professores e professoras possuem formações diferenciadas, práticas distintas, vivenciam situações específicas no processo pedagógico, além de que, fazem parte de uma categoria que não é uniformizada.

Nesse sentido a comparação mecânica com os trabalhadores que atuam diretamente na produção de mercadorias pode se constituir em reducionismo. Pode-se afirmar que o trabalho docente possui características mais relacionadas ao trabalho imaterial, ou seja, não está circunscrito à produção direta de mercadorias.Todavia, pode-se concluir que as falas dos entrevistados contribuem para a negação da sua condição de trabalhadores, enquanto profissionais da educação.

Retornando, a questão da escolha da profissão, como vocação, observa-se que esse aspecto, porém, não apareceu como posição unânime entre os entrevistados. Fato constatado na fala de uma professora que respondeu a pergunta da seguinte maneira:

“Não tinha vontade ou vocação para o magistério. Mas no fim eu acabei me dando bem. Eu dei aulas durante 36 anos, não precisa falar mais nada, né?”. (Jan, professora, 76 anos).

Assim, a escolha profissional determinada pelo gosto, que foi apresentada nas entrevistas, de forma contundente, pode ser considerada como determinante e se refere à questão do interesse.

“Com a educação, foi paixão (...) e tinha vontade de ser professora”. (Glo, professora, 69 anos).

“Como eu gosto muito de gente, sou muito comunicativa. Então acho que foi a área que eu escolhi. Eu sempre fui assim de fazer amizade, de gostar de ensinar. (...) Antes de me formar eu

sempre dei aula. Aula particular, aula de piano. Eu sempre gostei de dar aula. Por gosto mesmo”. (Leo, professora, 72 anos).

“Eu quis ser professora porque é uma profissão que eu gostava muito. Eu amava isso daí, eu doei a minha vida quase que inteira na minha profissão”. (Ge, professora, 67 anos).

O gostar do magistério aparece nas entrevistas como decorrência da história de vida desses professores e professoras. Essa relação aparece de forma tão enfática que fica difícil estabelecer o limite entre o vivido e a motivação pela escolha profissional. Isso talvez se deva ao fato de que a vocação, também, tem seu aspecto de algo socialmente construído.

“Eu acompanhava minha mãe quando ia dar aula. A minha mãe me levava para a escola cantando. Sempre cantando”.(Glo, professora, 69 anos).

“Talvez seja pela influência direta de meu pai. Ele gostava muito de contabilidade” (Mom, professor, 70 anos).

“É uma coisa que está no sangue. Eu tinha paixão por ser professora. Minha avó dizia, que eu ia ser professora porque as minhas brincadeiras eram dando aula. (...) Eu adorava criança, adorava dar aula. Eu vibrava com isso. Tinha umas amigas da minha tia, que elas contavam”.(Lu, professora, 68 anos).

O interesse profissional, o gostar da profissão poderia ter sido um forte fator a determinar a adesão à organização e à luta sindical se outros fatores presentes na subjetividade dos professores e professoras não fossem tão determinantes, como por exemplo, a ideologia de que “a profissão é apenas uma questão vocacional”. Isso porque se a paixão pela profissão é tão intensa, isso por si só, deveria ter sido motivo suficiente para aderir à sua defesa.

Continuando a análise, percebe-se que entre os motivos apresentados pelos entrevistados para a escolha profissional, os que demonstram serem mais incisivos referem-se às questões de circunstâncias de vida. Por sua vez, eles aparecem imbricados com outras

questões como, a falta de opção profissional e com a necessidade de ingresso imediato no mercado de trabalho.

“Porque era a única escola que tinha na minha cidade. Era de normalista”. (Ig, professora, 73 anos).

“Assim que minha mãe faleceu, eu tinha que fazer um curso que me desse condições de trabalhar”.(Glo, professora, 69 anos).

“Fazendo faculdade de geografia, logo no primeiro ano, eu acabei, na busca de uma atividade profissional, digamos assim, apartada da família, saindo do pequeno comércio, aí eu fui ser professor”.(Gum, professor, 58 anos).

Entende-se como “circunstâncias de vida” aqueles determinantes que extrapolam a vontade pessoal. Nesse caso, são as condições objetivas que influenciam as decisões dos indivíduos. O curso do magistério, até então, proporcionava aos futuros professores e professoras o ingresso mais rápido no mercado de trabalho. Era uma forma de se obter uma profissionalização imediata e de se conseguir a possibilidade de empregabilidade.

Outro aspecto observado em relação às circunstâncias de vida e que interfere na decisão profissional relaciona-se com a feminização da profissão. O magistério foi se transformando em uma profissão predominantemente feminina, principalmente em relação ao exercício nas séries iniciais.

“... eu não resolvi, era obrigada. Porque eu queria trabalhar. Quando eu tinha 15 anos mulher não podia trabalhar em escritório. Classe média era assim. Não! Imagina, trabalhar no meio de homens. Não! Você tem que fazer o magistério!”.(Jan, professora, 76 anos).

“E também uma das causas de fazer o normal foi que o papai falou que se eu não tivesse o diploma eu não casava. Naquele tempo, se não estudar não casa”. (Leo, professora, 72 anos).

Porém um dos depoimentos que mais chama a atenção refere-se à decisão de escolha da profissão por opção de militância política. Pode-se afirmar que, para esse professor a militância passa a ser opção de vida, e que as escolhas são decorrências dessa decisão.

“Mas o que me levou ao magistério foi justamente fazer o normal, né. E relacionando com o científico, na época. Normal era um curso que dava uma formação humana muito grande e aí eu também já era presidente de grêmio, participação no movimento estudantil me levou a fazer a opção pelo magistério. (...) A identificação com o movimento, a formação que eu tive no normal também, né, que levou a isso. E acho que eu fiz a opção correta”.(Car, professor, 58 anos).

Embora vários sejam os motivos que levam os professores e as professoras a fazerem a escolha pela profissão do magistério, a sua compreensão contribui para que sejam explicitadas as concepções, os valores, as idéias que se tem acerca da ação educativa e conseqüentemente da luta sindical.

O gráfico 5 indica a quantidade de depoimentos relacionados a cada um dos motivos citados. Observa-se uma predominância de uma escolha circunstancial da profissão, ou seja, acontecimentos que favoreceram a escolha, mas que o indivíduo não possuía um controle sobre elas. Em seguida observa-se que a vocação foi o relato mais freqüente, o que indica uma certa contradição, pois apesar da escolha não ter acontecido de forma deliberada, os professores relatam também ter optado pela profissão devido à vocação.

Levantou-se também o dado de que 86,67% dos participantes afirmaram haver outros professores na família, antes deles. E apenas 13,33% foram os primeiros na família a optar pelo magistério. Esse dado também pode estar relacionado com a escolha profissional, quando se considera que pode ter havido influência de pessoas significativas na família na opção profissional. Esse dado também pode ser revelador da origem social dos professores e professoras. A maioria dos entrevistados fez a opção pelo magistério, na década de 1950. Nesse período, a profissão de magistério ainda era exercida pelas camadas médias da população.

Gráfico 5: Quantidade dos relatos de motivos associados à escolha profissional.

Escolha pelo magistério

0 2 4 6 8 10 12 14

Gosto Vocação História de

Vida Circunstâncias Política Q u a n ti d a d e

Esses motivos para a escolha profissional estão presentes na literatura que aborda questões pedagógicas. Freire ao escrever suas cartas a quem ousa ensinar dedica-se à reflexão dos motivos pelos quais levariam professores e professoras a escolher a profissão do magistério. Seu foco privilegia a escolha das professoras das séries iniciais da educação básica. Nesse sentido, nos convoca a pensar sobre a importância da profissão, enquanto fundamental e indispensável à vida social. “Eu não posso, apenas, formar-me para a docência apenas porque não houve outra chance para mim, menos ainda, somente porque enquanto me ‘preparo’, espero um casamento. Com estas motivações, que sugerem mais ou menos o perfil que faço da prática educativa, fico nela como quem passa uma chuva. Daí que, na maioria dos casos, possivelmente, não veja por que deva lutar. Daí que não me sinta mal com o esvaziamento de minha profissionalidade e aceite ser avô, como muitas companheiras e companheiros aceitam ser tias e tios”. (Freire, 2003: 48). E esse autor diz mais, “Quanto mais aceitamos ser tias e tios, tanto mais a sociedade estranha que façamos greve e exige que sejamos bem comportados” (Freire, 2003: 49).

Souza, (1996) ao analisar a questão da vocação e do prazer na prática do magistério, a coloca como uma conseqüência de um comportamento de resistência frente às adversidades as

quais os professores e professoras estão expostos quando se defrontam com as condições de trabalho impostas pelo sistema público de ensino. Assim, reconhece “que embora o estado, como empregador da força de trabalho docente, determine as condições e a organização desse trabalho, os professores e professoras buscam significados simbólicos para a docência, por meio de movimentos de resistência. Esses movimentos são portadores de ambigüidades. De um lado, o professor e a professora assumem a responsabilidade individual pela qualidade do seu trabalho, atribuindo à vocação e ao prazer as possibilidades de realização da formação de novas gerações; por outro lado, consideram-se portadores da não-qualificação para a realização do mesmo trabalho, conseqüência das condições e da organização do mesmo, por parte do estado. Esse jogo conflituoso, na busca de reconhecimento social pelo seu trabalho, move-se entre as respostas individuais - do professor com vocação e que sente prazer nas realizações da docência – e as coletivas, no espaço político, da práxis” (Souza, 1996, p.133 ). A vocação, embora um aspecto altamente polêmico, tem servido de justificativa tanto para a escolha da profissão quanto para a permanência nela.

O que se conclui das respostas dos entrevistados é que várias razões embasaram a decisão pela profissão de professor. A uniformização das respostas torna-se delicada, pois o magistério é um trabalho que possui especificidades diferenciadas e complexas, e, portanto, os motivos para sua opção também são diferenciados. Contudo, as respostas dos entrevistados já se tornam comuns e passam a fazer parte do imaginário de professoras e professoras.

Em relação a essa questão, alguns aspectos merecem ainda um melhor aprofundamento. Por exemplo, é comum que os jovens e as jovens encarem o ingresso e a formação do magistério, como uma opção que conseguem realizá-la sem precisar de muita dedicação e muitos estudos. Esta situação pode ser considerada altamente contraditória, pois se está diante de uma profissão que exige muito preparo, responsabilidade e dedicação. Portanto, enquanto os professores e professoras não internalizarem a idéia de profissionalização e do magistério também como um trabalho assalariado, fica difícil que esses e essas assumam a luta e a organização sindical no seu cotidiano.