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ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

I. TRAJETÓRIA NO MAGISTÉRIO: IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO DA PROFISSÃO

2. A DIFICULDADE DE INICIAR NA PROFISSÃO

O início do desempenho em um campo de atuação profissional está intimamente ligado à formação, ao preparo pelo qual passou esse profissional. No caso do magistério essa formação pode ter sido patrocinada pelo estado, quando os futuros professores e professoras são formados em instituições públicas, ou pela família, quando estudam em instituições privadas. Houve um período em que o professor era protagonista da sua própria formação e aperfeiçoamento, embora as políticas públicas de então, já sinalizassem para a educação mantida pelo Estado. Para tal, vale retomar a primeira Lei Geral da Educação, da época do Brasil Império, promulgada em 15 de outubro de 1827. O artigo 4º dessa lei diz que os professores que não tiverem a necessária instrução irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados nas escolas das capitais. Naquela época os objetivos do ensino eram: o ensino das primeiras letras, das quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina católica, apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil.

O preparo para o exercício do magistério tem um aspecto que pode ser considerado de formação individual, enquanto preparação única dos indivíduos, e coletiva, quando esta se realiza nos espaços de reflexão da prática pedagógica e de trocas entre docentes. O uso da escola como espaço de aperfeiçoamento profissional é uma prática que só se consolidou nos últimos tempos com o estabelecimento dos horários de coordenação pedagógica dos professores, em que este ganha horas de trabalho para estar entre seus pares discutindo questões do ensino, preparando as tarefas de sala de aula. Os horários de coordenação de professores são frutos da luta dos sindicatos, embora as instituições reconheçam a sua necessidade, nem sempre fizeram parte do exercício da profissão. Nesse sentido, a coordenação dos professores pode ser considerada espaço de luta política, espaço em que os docentes se sentem apoiados em sua atuação. Enfim, espaço de encontro, que é uma das condições necessárias para que haja possibilidade de organização associativa e sindical.

A formação profissional é um tema que deve estar associado à categoria como um todo e conseqüentemente também à luta dos sindicatos dos professores. A fragilidade da formação faz-se presente, quando professores e professoras são indagados sobre o começo da trajetória profissional, a grande maioria dos docentes entrevistados respondeu que achou difícil esse começo.

A aprendizagem profissional docente tem-se constituído em um processo que se complementa ao longo da carreira. Tal fato, por si só justificaria a organização dos professores. A organização sindical assumiria, além das questões relativas a luta por melhores salários, a luta por melhores condições de trabalho, a luta pelo melhor desempenho profissional, evitando assim, que o docente se sinta penalizado no cumprimento do seu trabalho. O que poderia estar implícito na discussão da prática pedagógica, enquanto questão coletiva, da categoria.

Mas, esse aspecto da luta sindical só será registrado na historiografia educacional muito tardiamente, embora o nascimento do movimento associativo dos professores tenha um caráter predominantemente pedagógico e será marcado por dois aspectos: a estruturação do ensino em si e a estruturação da formação dos professores. Este tipo de atuação sindical torna- se mais significativo nos momentos em que os professores e professoras passam a ter uma prática de atuação coletiva mais combativa, a exemplo disso pode –se citar a luta em defesa da escola pública; o fórum mundial pela educação, entre outros.

Como a aprendizagem da profissão acontece também no seu exercício, foi possível observar pela fala dos docentes, o receio em relação ao fato de nunca haver lecionado.

“Foi difícil. Eu me lembro do primeiro dia que eu cheguei nessa escola... Eu nunca tinha lecionado. Quando eu vi os alunos pela primeira vez, eu levei um susto. Porque eram todos mais velhos que eu”. (Be, professora, 67 anos).

“Não tinha experiência, só adquiri com o tempo. Eu tive muita ansiedade, medo de não saber”.(Mar, professor, 74 anos).

“Eu peguei umas aulas à noite, mas no começo eu levei um susto porque ao adentrar numa sala eu avistei uma classe onde os alunos eram mais velhos que eu, muitos casados, e eu lá jovem.

Começou assim. Mas eu fui mordido pela chamada mosca azul, depois disso nunca mais larguei”. (Mom, professor, 70 anos).

Porém foi a incoerência entre a formação e a prática pedagógica o fator mais forte observado nas falas dos professores e professoras. Demonstra o quanto à preparação para o exercício da profissão é dissociada da realidade. Refere-se ao tema recorrente nos cursos de formação de professores, que se trata do distanciamento que existe entre teoria e prática.

“Foi difícil porque eu ia para os sítios, depois, quando eu ingressei aqui em São Paulo, ingressei aqui no pico do Jaraguá, foi uma decepção grande porque eu achava que o professor ia naquela escola bonita, e quando cheguei aqui fui lá numa escolinha de madeira, onde você pisava aqui, debaixo passava cobra, passava tudo. E a gente tinha muito medo”. (Gen, professora, 67 anos).

“Olha, no começo eu achei. Eu achei difícil. Difícil pelo seguinte, porque teoria é uma coisa e a prática é totalmente diferente. E mesmo que eu venha de um curso normal que a gente tinha prática. Mas a gente tinha uma prática assim, de ir para biblioteca, organizar uma aula, fazer uma aula maravilhosa. E a gente pensava quando saísse, eu pensava, que iam ficar todos de braços cruzados, te olhando explicar. Quando você pega uma classe, você vê que não é assim. Cada um é um. Enquanto você está explicando para um, o outro está se batendo lá atrás. Então foi difícil”.(Leo, professora, 72 anos).

Chama a atenção a falta de condições de trabalho. Aspecto que também seria definidor da organização e participação sindical dos professores e professoras, e que esteve presente em seus depoimentos. Essa carência vai desde a falta de orientação pedagógica, até as condições materiais da escola. Se por um lado, as condições de trabalho se mostravam bastante precárias, por outro lado, chama a atenção a paciência, a disposição para o enfrentamento individual dessas adversidades na rotina dos docentes (nota 1).

“Ah, pra mim foi difícil porque eu peguei aula de alfabetização. Eu achava difícil alfabetizar”. (Wa, professora, 74 anos).

“Aí sim, aí minhas tias me orientaram. Uma delas me indicou que eu tinha que comprar um programa de ensino. Então aí eu já tive um pouquinho de orientação. Mas, fui trabalhar em roça, meu primeiro estágio era em vilarejo e depois em roça”. (Ig, professora, 73 anos).

“Foi difícil no sentido da distância. Porque não havia trem até Irapuru. Você tinha que pegar, descer, pousar em Adamantina, e ir de jardineira, depois pegar aquelas charretes cobertas. Por causa do sol. E era uma fazenda. No meio do sertão. Era isso que eu queria, eu queria o desafio”. (Glo, professora, 69 anos).

Por fim, entre os poucos, apenas três que declararam não ter achado difícil o início da prática profissional está o depoimento de uma professora que se disse muito preparada e isso facilitou o seu começo.

“Não (foi difícil), porque teu tive uma professora, que me orientou em tudo. Eu aprendi bastante com ela. Então eu tenho uma admiração por ela”.

(Zen, professora, 72 anos).

Além da questão do início de uma carreira, que traz na sua essência a relação entre teoria e prática, a sondagem sobre o início da trajetória profissional retrata um tempo, uma disposição por parte dos docentes, uma forma de conceber a educação. Nesse sentido, as dificuldades apresentadas foram várias. Compreendem desde as dificuldades de natureza técnico-pedagógicas, que dizem respeito à formação dos professores, como as de natureza das condições objetivas do trabalho docente. Essas questões estão presentes na forma como a educação formal se estrutura, na organização do trabalho escolar, na fase inicial da sua prática e ainda hoje são recorrentes. Tais aspectos, porém não foram suficientes para que os professores atuassem de forma combativa em suas associações de classe e sindicatos.

Em relação às questões técnico-pedagógicas, Guarnieri, (2000), enfatiza que uma parte da aprendizagem da profissão docente só ocorre e se inicia em exercício, ou seja, segundo essa autora, o exercício da profissão é condição para consolidar o processo de tornar-se professor. Isso significa dizer, que não basta ao professor e professora aplicar um conjunto de conhecimentos técnicos, previamente aprendidos. Bem como, que a realidade, na qual se dá à

prática docente, não é estática, linear. Um campo no qual se aplicam as normas e técnicas derivadas das teorias. Essa relação entre teoria e prática se enriquece à medida que o professor e a professora à luz das teorias fazem a crítica e tentam superar a sua prática. E essa prática passa a ser considerada “práxis”.

Nesse sentido, é que se faz necessário uma certa consciência da práxis. Em termo marxista, práxis é entendida como atitude material do homem, que transforma o mundo material e social para fazer dele um mundo humano. A práxis educativa é um processo que deveria acontecer no cotidiano dos professores e professoras. Encampar a luta pela práxis pedagógica seria motivo suficiente para a organização e atuação dos professores e professoras na luta no interior de suas entidades de classe.

Arroyo, (2000) refletindo sobre o aprendizado do ofício de mestre demonstra como os centros de formação atuais deixam a dever na formação dos futuros mestres e afirma: “A ocupação quase exclusiva dos futuros mestres nos espaços dos professores, na sala de aula, a passagem corrida pelos centros, apenas para assistir aulas, a necessidade de trabalhar para sobreviver, a falta de tempo livre de lazer e convívio leva a que o tempo de formação perca em densidade cultural, não apenas teórica. Não há tempo para ler, nem recursos para participar de espaços culturais na cidade, para praticar outras atividades culturais fora dos centros. Fora não tem condições de convívio e enriquecimento cultural e nos centros de formação não se cultiva um clima cultural. Essa lacuna é gravíssima na socialização dos futuros professores(as). Como ser agente de cultura, garantia da socialização da cultura acumulada e devida a todos os educandos, se os mestres não têm tempo, recursos para seu cultivo cultural? Se os centros de sua formação não propiciam esse cultivo?” (Arroyo, 2000: 131)”.

Nesse sentido, negar os espaços de formação e aperfeiçoamento dos docentes significa aumentar cada vez mais o empobrecimento profissional. Esses espaços têm que garantir aprendizagens individuais e coletivas. Embora os responsáveis pela educação formal assumam para si a educação continuada dos docentes, as próprias coordenações de ensino dos professores e professoras, não se caracterizam como espaços que contribuem para a consciência da práxis pedagógica. Os sindicatos e a luta sindical empreendida pela categoria poderiam contribuir para a melhoria dessa formação. Ao estar com seus pares os professores e professoras têm condições de analisar, avaliar e discutir sobre as condições de trabalho, sobre

como desempenham suas tarefas, entre outras possibilidades de trocas. Esse processo, com certeza, pode contribuir para o aprofundamento da consciência social e profissional.

Em relação a esse ponto é necessário ressaltar que para que aconteça a formação da consciência de classe dos professores e professoras é importante que os conteúdos e as metodologias adotadas nos cursos de formação e aperfeiçoamento conspirem para que esse objetivo seja alcançado. Professores e professoras deveriam entender mais da história dos homens, de suas relações sociais, entender os modos e as relações de produção, sobre o trabalho, a divisão social e técnica do trabalho, sobre as classes sociais, entender a luta de classe, sobre a forma como capital e trabalho estão estruturados, enfim, entender sobre o sistema no qual estão inseridos, sobre o capitalismo e sua atual configuração.

Esse tipo de conhecimento é trabalhado nas escolas quando os governos eleitos são progressistas e adotam políticas de educação histórico-críticas. Esses governos constroem e implementam propostas pedagógicas comprometidas com a transformação social e com a formação do senso crítico dos alunos, a exemplo disso tivemos recentemente no Brasil, a Escola Candanga no Distrito Federal, Escola Plural em Belo Horizonte, a Escola Cidadã, Rio Grande do Sul, a Escola sem Fronteiras em Santa Catarina e a Cabana em Belém do Pará. Nessas propostas pedagógicas se observam um esforço na formação e consolidação da consciência social e política dos professores e professoras. Tal preocupação deveria ser uma exigência dos docentes, em qualquer governo, desde sua fase de profissionalização, até no cotidiano do exercício da profissão.