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Compra e Venda com Pacto de Retrovenda ou Reporte

3. ASPECTOS PATRIMONIAIS: O INTERESSE DOS CREDORES

3.3. Análise Crítica do Artigo 30 da Lei das S.A

3.3.10. Compra e Venda com Pacto de Retrovenda ou Reporte

Outro negócio jurídico de que se cogita quando se debatem os negócios com as próprias ações é aquele por meio da qual uma pessoa compra determinado bem, assumindo, concomitantemente, a obrigação de revendê-lo no futuro à mesma pessoa que originalmente lho vendeu, por preço predeterminado. Neste tipo de operação, assumem as partes o compromisso recíproco de revender e recomprar o mesmo bem (ou bens de quantidade e qualidade iguais, se fungíveis) no futuro, a um preço previamente estabelecido por elas (ou ao menos com parâmetros objetivos para sua quantificação). A doutrina mais antiga, espelhando-se no nome que este contrato recebe nos países europeus, denomina-o de “contrato de reporte”.

Philomeno J. da Costa assim o define: “pelo reporte ativo o reportador fica com os títulos ou a mercadoria adquiridos à vista e ao mesmo tempo vende outros ou outra da mesma espécie a prazo ao reportado”296. Segundo este autor, no ordenamento jurídico brasileiro, estaria o “reporte” de ações, tendo como reportadora a própria companhia, proscrito, em virtude da vedação genérica a que a companhia negocie com as próprias ações.

Não defendemos que a eventual vedação decorra simplesmente da regra geral proibitiva, carecendo o contrato de análise mais profunda do ponto de vista dos interesses resguardados, para assim chegarmos a uma conclusão aceitável. Em primeiro lugar, é preciso dizer que, no Brasil, o Código Civil não reconhece a estrutura europeia conhecida como “contrato de reporte” (veja-se, por exemplo, que ele é um contrato definido no Código Comercial Português, no artigo 477) como um tipo contratual autônomo. Aqui, a única estrutura contratual que poderíamos visualizar seria o de um contrato de compra e

venda com pacto de retrovenda, nos termos do artigo 505 do Código Civil, muito embora esse artigo faça menção apenas à retrovenda de coisa imóvel.

Temos, com isso, uma situação peculiar, pois, de um lado, não há tipificação civil da estrutura de “reporte” e, de outro, não prevê o Código Civil a possibilidade expressa de retrovenda de coisas móveis, como as ações. Naturalmente, isto não impede que os participantes de um negócio de compra e venda de coisa móvel pactuem, no momento da conclusão do contrato original, outra compra e venda, esta a preço pré-ajustado e de cumprimento diferido (o adimplemento das obrigações de entregar a coisa e pagar o preço são diferidos no tempo). Esta última possibilidade nos aventa ser a estrutura típica de contratos coligados, em que cada um dos contratos tem tipificação e existência autônomas, mas onde o segundo é logicamente dependente da conclusão do primeiro.

Não é isto o que acontece no “contrato de reporte”, devido à sua função econômica peculiar, que lhe situa em uma posição de encontro entre o mercado de capitais e o mercado de crédito297.

Explicamos, trazendo à tona uma breve descrição dos “repurchase agreements” (conhecidos pela abreviação “repo”), extremamente utilizados no mercado financeiro internacional298 (e nacional, como veremos). Nessa estrutura, o titular de determinados valores mobiliários (ações, por exemplo) os venderá para um banco ou outro intermediário financeiro por um preço de US$X (o preço de venda) e, no mesmo ato, assumirá a obrigação de recomprar dessa mesma pessoa os mesmos valores mobiliários ou títulos (ou instrumentos equivalentes, se fungíveis) em uma data especificada no futuro por um preço de US$Y (o preço de recompra)299. Este valor de recompra (US$Y) será equivalente ao preço de venda acrescido de uma taxa de juros acordada entre as partes, que servirá como remuneração do comprador original.

A estrutura assemelha-se, em termos econômicos (mas nunca jurídicos), à realização de um empréstimo, pelo comprador original ao vendedor original, com garantia dos títulos adquiridos, pois: (i) o vendedor original recebe uma quantia em dinheiro, que ele se obriga a repagar ao comprador original no futuro, (ii) o comprador original pode

297 Maria Victória Rodrigues, op. cit., p. 28 e 29.

298 Em junho de 2012, a International Capital Markets Association estimava, apenas na Europa, que

houvesse EUR5.6 trilhões em contratos de reporte (repo) em vigor e, no mundo todo, o tamanho desse mercado poderia chegar a US$15 trilhões. Ver European Repo Market Survey – Number 24, December 2012, disponível em www.icma-group.org.

299 É importante notar que o preço de venda (US$X) não equivale exatamente ao preço de mercado dos

títulos vendidos, mas, sim, a um valor inferior a ele: ou seja, os títulos ou valores mobiliários adquiridos pelo comprador têm valor superior ao que ele paga ao vendedor, sendo a diferença usada como margem de garantia para ele, no caso de o vendedor não adimplir sua obrigação de recompra na data futura.

vender os títulos comprados no mercado caso o vendedor não cumpra a obrigação de recompra, e (iii) o preço de recompra (US$Y) equivale ao preço de venda original, US$X, acrescido de juros sobre US$X.

Por que existe esta estrutura? De maneira muito simplificada, pode-se dizer que as partes nesse tipo de operação não têm por escopo final a troca de bens por dinheiro, de modo definitivo. Muito pelo contrário, a estrutura do repo, ou reporte, tem finalidades subjacentes que, muitas vezes, não são percebidas. Para o vendedor original, a utilidade de realizar um negócio desta natureza é a de arrecadar, pela venda de ativos seus de longo prazo, recursos em dinheiro de curto prazo e, para o comprador original, a vantagem é receber os juros da operação. A função econômica do repo ou reporte, portanto, está longe de ser a de uma troca definitiva de bens por dinheiro, o que levou certos autores a defender que se trata, de fato, de um contrato de mútuo garantido300,301.

Tudo visto, há ao menos três correntes jurídicas que versam sobre a natureza do contrato de reporte: (i) a primeira o classifica como uma espécie de mútuo garantido, negando a existência de efeitos transalativos da propriedade em decorrência da compra e venda, (ii) outra enxerga no reporte tão-somente duas compras e vendas simultâneas e coligadas, e (iii) uma última, mais atual, que o descreve como um todo indissociável, uma única estrutura contratual típica, e não como um somatório de vários contratos. Hoje, é pacífica na doutrina portuguesa, por exemplo, a adoção da última posição: “enfatizando a estrutura unitária do reporte, o considera como um todo orgânico e, portanto, negócio autônomo, típico, ou sui generis, com regras específicas e objetivos financeiros”302.

O Conselho Monetário Nacional (“CMN”), por meio da Resolução n.° 3.339, de 26 de janeiro de 2006, regulamentou o que aqui se denominou de “Operações Compromissadas”, que equivalem, pode-se dizer, ao contrato de reporte português, ou ao

repo inglês, e cuja utilização pelas instituições financeiras é, inclusive, bem frequente

(disponível como forma de investimento até para pessoas físicas). Contudo, se no mercado

300 “(…), as partes que recorrem ao reporte não pretendem, por definição, uma transferência de títulos: tudo

se passa de modo diverso, uma vez que a titularidade do reportador é efêmera. E, pela mesma ordem de ideia, tão-pouco está em causa uma transferência definitiva de fundos. Tudo visto, joga-se no reporte um mútuo especialmente garantido”. Cf. Antônio Menezes Cordeiro, Do Reporte: subsídios para o regime jurídico do mercado de capitais e da concessão de crédito apud Maria Victória Rodrigues, op. cit., p. 29.

301 “Although assets are sold outright at the start of a repo, the commitment of the seller to buy back the assets in the future means that the buyer has only temporary use of those assets, while the seller has only temporary use of the cash proceeds of the sale. Thus, although repo is structured legally as a sale and

repurchase of securities, it behaves economically like a secured deposit (and the principal use of repo is in fact the borrowing and lending of cash)” – grifos nossos. Cf. International Capital Markets Association in

http://www.icma-group.org/Regulatory-Policy-and-Market-Practice/short-term-markets/Repo- Markets/frequently-asked-questions-on-repo/1-what-is-a-repo/.

internacional não há limitação para a utilização de ações neste tipo de estrutura contratual, no Brasil, o CMN proscreve a utilização de quaisquer instrumentos de renda variável como objeto do negócio e, em assim sendo, não será possível às instituições financeiras a realização de reportes com as próprias ações (ou, esclareça-se, com qualquer ação). Mesmo tendo o CMN regulado a estrutura no âmbito de sua competência, entendemos que, na ausência de tipificação civil, seria esta um clássico exemplo de coligação contratual de dois contratos de compra e venda – estes, por sua vez, típicos. Ou seja, a “operação compromissada” consiste na coligação de dois contratos de compra e venda entre as mesmas partes, que assumirão polos opostos (comprador ou vendedor) em cada um deles303.

À vista do exposto, podem sociedades não financeiras adquirir suas próprias ações, com o compromisso simultâneo de revendê-las no futuro a preço pré-determinado e ao acionista vendedor original? Em caso positivo, em que condições? Ao revés, poderia uma companhia vender suas ações em tesouraria, assumindo o simultâneo compromisso de recomprá-las no futuro a preço certo? Em que termos?

No primeiro caso (compra, pela companhia, com compromisso de revenda), tendo em vista os efeitos translativos inegáveis da estrutura, não podemos afastar o fato de que a companhia adquire suas próprias ações, o que conduz a uma situação de autoparticipação não permitida de forma incondicional pela Lei das S.A.: esse negócio deve ser submetido, em sua inteireza, ao regime das ações próprias. A aquisição de suas próprias ações, mesmo que efetivada com compromisso de revenda a preço certo (inclusive com potenciais ganhos para o patrimônio social decorrentes dos juros cobrados da contraparte), deve ser feita com o saldo de lucros ou reservas da companhia e as ações, enquanto não revendidas,

devem ser tratadas como em tesouraria.

Poder-se-ia argumentar que a operação, no fim e ao cabo, não acarretaria riscos ao patrimônio social (nem ao capital social) já que existiria o compromisso firme e irrevogável de revenda/recompra após certo prazo. O argumento não convence devido ao risco de inadimplemento do vendedor original - e comprador a termo – de sua obrigação de recomprar as ações. Em uma situação limite, poderia restar desfalcado efetivamente o patrimônio social pelo valor da aquisição original, em que pese a possibilidade de a companhia vir a aliená-las para cobrir o valor originalmente desembolsado (o que só seria

303

No âmbito das sociedades reguladas pelo CMN e pelo Banco Central do Brasil, poder-se-ia cogitar de um tipo contratual regulatoriamente estabelecido.

rápido e eficaz em um contexto de companhias abertas e, mesmo neste caso, não haveria garantia de que o seu valor seria suficiente para tal reposição).

Na segunda situação (venda, pela companhia, com compromisso de recompra), entendemos plenamente possível a operação. De fato, se a Lei das S.A. permite que a companhia aliene suas ações que estejam em tesouraria (cf. redação irrefragável do artigo 30, §1°, “d”), também precisa permitir que elas sejam alienadas com compromisso de recompra a preço certo, situação que apenas restabeleceria a companhia ao status quo ante. Desde que seja útil e do interesse da companhia a realização da operação (ex.: necessidade premente de caixa ou liquidez), entendemos que a operação seria permitida. O preço de recompra, contudo, deverá necessariamente ser oriundo do saldo de lucros e reservas

livres da companhia, com um único, e relevantíssimo, detalhe: a existência ou não desse

saldo de lucros deverá ser apurada uma única vez, qual seja, no momento da efetiva

recompra e não no momento da celebração dos contratos coligados. Esta visão baseia-se

no seguinte pensamento: se fosse obrigatória a verificação da existência de lucros apenas na data de celebração dos contratos coligados (e não na data estipulada para a recompra), então existiria a clara possibilidade de a companhia descumprir uma direta obrigação legal a ela imposta pela Lei das S.A., que é a manutenção da integridade do capital social a

qualquer tempo durante a sua existência. Ainda que se possa argumentar que essa

interpretação gera insegurança jurídica na contratação desses negócios (uma vez que a contraparte da companhia não terá como garantir a existência de lucros suficientes na data de recompra futura para permitir o adimplemento da obrigação desta), não conseguimos defender a possibilidade de um descumprimento direto da Lei das S.A. – a ilegalidade será manifesta caso a companhia adquira as ações sem possuir saldo de lucros suficiente para tanto.

Se, no entanto, houvesse a participação de uma contraparte central garantidora da operação, como a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia, administrada pela BVMF, por exemplo, que retirasse da operação praticamente todo o risco de crédito da contraparte (i.e., a contraparte central torna-se garantidora da liquidação da operação), entendemos que a compra, pela companhia, com compromisso de revenda, poderia ser feita mesmo à custa do capital social. Isso porque: (i) não há risco (ou há risco ínfimo) de a companhia não vir a receber os recursos de volta, com os juros, pois a estrutura financeira de salvaguardas da bolsa de valores e/ou da contraparte central garantirá a liquidação,

mesmo que a contraparte esteja inadimplente304, e (ii) a operação é vantajosa ao patrimônio social, considerando o recebimento de juros pelos recursos entregues ao vendedor original. Para maior segurança jurídica, neste caso, seria útil, de lege ferenda, que se visse na estrutura do reporte (ou operação compromissada, como a chama o CMN) um contrato típico e sujeito a regras particulares. Obviamente, seria igualmente aconselhável que a bolsa de valores previsse em seus regulamentos a garantia de contraparte central das operações. As considerações sobre a venda, pela companhia, com compromisso de recompra não seriam alteradas.