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Do Caráter Exemplificativo dos Negócios Permitidos

2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS E DOGMÁTICOS

2.4. Do Caráter Exemplificativo dos Negócios Permitidos

É inegável que existe uma vedação genérica para que a companhia realize negócios com ações de sua própria emissão. É igualmente inegável, no entanto, que a lei admite exceções a essa regra, cujo número foi sendo elevado com o passar do tempo, como se depreende da retrospectiva histórica feita acima. No passado, apenas a amortização era expressamente permitida no Brasil, mas, com a evolução do conhecimento jurídico, outras operações foram paulatinamente sendo acrescentadas ao rol dos negócios permitidos (o resgate e o reembolso, v.g., foram acolhidos posteriormente). O que se verifica é que a tendência histórica acerca do objeto deste estudo foi a de acrescentar exceções à regra: atualmente, convivemos com uma situação em que diversas estruturas e negócios jurídicos são desenvolvidos pelos agentes financeiros envolvendo as próprias ações, sem uma correspondente atualização do pensamento teórico sobre a sua disciplina.

A pergunta que se faz neste momento, portanto, é se a lista do artigo 30 da Lei das S.A. possui caráter taxativo ou meramente exemplificativo. Conquanto a doutrina nacional seja unânime em defender o caráter taxativo das exceções188,189, defendemos uma mudança de visão a respeito destas operações, que devem deixar de ser encaradas com o estigma da fraude, para finalmente serem pensadas de forma racional, sempre com vistas a proteger interesses legítimos que podem ser impactados, sempre que estejam efetivamente sendo ameaçados. Na nossa visão, precisam ser pensados os negócios jurídicos com as próprias ações sob o ponto de vista dos três principais grupos de referência tutelados, expostos ao longo deste trabalho: o dos credores, dos acionistas e do mercado. Estando atendidos os

188 Philomeno J. da Costa era adepto da teoria de que a lista de operações permitidas pela lei seria taxativa:

“[s]e numa proibição se declara que esta não abrange as hipóteses indicadas logo a seguir, todas as demais que não foram referidas, estão compreensivamente vedadas”. In op. cit., p. 50, opinião com a qual não concordamos. O próprio autor, no entanto, reconhece que a norma (DL 2.627/40) não excepcionava, já naquela época e bem assim hoje, outras operações com ações próprias permitidas em outros artigos, o que, para ele, seria apenas uma imperfeição legislativa.

189 Defendendo o caráter taxativo cf. Modesto Carvalhosa, Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, Vol.

1, 5ª ed., Saraiva, São Paulo, 2007, p. 309; Darcy Arruda Miranda Jr., Breves Comentários à Lei de Sociedade por Ações, Saraiva, São Paulo, 1977, p. 46.

requisitos delineados legalmente e se não houver claro intuito de fraude à lei, qualquer

operação deveria ser permitida.

Afinal, é evidente que os requisitos de observância obrigatória criados pela Lei das S.A. e pela CVM têm o intuito de proteger justamente os interesses desses grupos: (i) a utilização do saldo de lucros e reservas salvaguarda o interesse dos credores, ao não possibilitar prejuízos ao capital social real, (ii) o princípio do tratamento igualitário entre acionistas (tópico espinhoso e a respeito do qual discorreremos à frente) visa a resguardar os acionistas, minoritários em sua maioria, de abusos perpretados pela companhia, seus administradores e controlador(es), e (iii) as normas de repressão ao insider trading, à manipulação de mercado e às práticas fraudulentas (inclusive com a criminalização de várias dessas condutas) são mecanismos eficazes de tutela dos investidores e do mercado de capitais.

Observadas essas condições de validade (e, aqui, a referência em Direito Comparado é com o Direito Italiano), defende-se veementemente que qualquer operação deveria ser permitida, dando um caráter exemplificativo à lista do artigo 30 da Lei das S.A. A cumulação dessas ferramentas jurídicas de cuidado deveria ser suficiente para que qualquer operação fosse considerada, a priori, lícita, e não o contrário. Hoje, mesmo que um negócio jurídico atendesse a todos esses princípio e limites, mas não estivesse listado expressamente na lei, seria, segundo a doutrina unânime, ilegal.

Ocorre que existem inúmeros negócios, sobre os quais refletiremos adiante, que não se encontram arrolados no art. 30 da Lei das S.A. Em primeiro lugar, esse artigo não arrola sequer todas as modalidades de negócios com as próprias ações previstas na própria lei. Veja-se, ad esempio, que não está inserida a possibilidade de a companhia alienar as ações de acionista remisso, estabelecida expressamente no artigo 107, II, do mesmo diploma, o que extrapola um mero erro legislativo: deve-se entender que o legislador apenas não cuidou de enumerar todas as opções em um único artigo. Outro argumento a favor desta tese, este de caráter mais político190, refere-se ao fato de que a adoção da interpretação segundo a qual as modalidades elencadas no art. 30 são taxativas engessaria sobremaneira o âmbito de atuação das companhias. Os tempos modernos impõem a necessidade de interpretações que, garantida a lógica protetiva do instituto, permitam o maior número possível de operações, tendo por objetivo fomentar o desenvolvimento de operações financeiras e de estruturas flexíveis que impulsionem a economia. Argumentar em favor do

caráter taxativo das exceções significa proibir o recebimento das próprias ações em legado ou herança, por falta de previsão legal expressa, que menciona apenas a doação, o que visivelmente não se justifica, quando se recordam os três grupos de referência, cujos interesses são tutelados pelo regime: credores, acionistas e mercado. Veja-se um exemplo claro da incoerência com relação ao recebimento de ações pela companhia por legado: o negócio não é listado expressamente no artigo 30, mas a doutrina enxerga com bons olhos o negócio, por ser gratuito e não causar prejuízos aos credores ou aos acionistas. Qual o raciocínio aqui? Ora, certamente não é o de defesa do caráter taxativo da relação, já que se está admitindo outra hipótese além daquelas efetivamente contempladas. Parece-nos patente que a ratio interpretativa deve sempre considerar o risco de efetiva lesão aos interesses dos grupos de referência escudados: se nenhum deles é atingido ou afrontado, qual seria o fundamento jurídico da existência da proibição? Nenhum.

À vista disso, a lista de operações com ações próprias do art. 30 da Lei das S.A., cuja prática é autorizada para a companhia, deve ser encarada como meramente

exemplificativa. Com isto, vale o reforço, não se defende que qualquer negócio pela

anônima com ações de sua emissão seja admitido, mas, apenas, que é necessário avaliar sempre a existência efetiva de prejuízo para algum dos grupos de referência tutelados para que um negócio seja vedado.