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3. ASPECTOS PATRIMONIAIS: O INTERESSE DOS CREDORES

3.3. Análise Crítica do Artigo 30 da Lei das S.A

3.3.1. Resgate

O resgate de ações representa uma das mais traumáticas operações da vida societária, apesar dos poucos artigos que a lei a ele dedica. De outra parte, é um dos poucos negócios que tem sua definição dada por lei, conforme redação do artigo 44, §1°, da Lei das S.A.232, e é também uma das exceções expressamente previstas para um negócio da companhia com as ações de sua emissão.

O resgate consiste, pela expressa definição legal, no pagamento ao acionista do valor de suas ações (ordinárias ou preferenciais, sem distinção), de modo a retirá-las definitivamente de circulação, com a redução ou da cifra nominal do capital social ou apenas do valor nominal de cada ação, se houver (mantida a cifra do capital social inalterada). A teor do que dispõe o caput do artigo 44 da mesma lei, esse pagamento deve se dar à custa do saldo de lucros ou reservas da sociedade, sendo a competência para a regulação do resgate outorgada aos estatutos ou à assembleia geral; o §6° do mesmo artigo, por sua vez, dispõe que, salvo previsão diversa no estatuto social, a deliberação da assembleia geral dispondo sobre o resgate de uma classe ou espécie de ações tem sua eficácia condicionada à aprovação, em assembleia especial, de ao menos metade dos titulares das ações atingidas233,234.

Pois bem, o resgate de ações foi introduzido no nosso direito pelo Decreto n.° 21.536/1932, que passou a permitir ações preferenciais no Brasil e que dispunha expressamente que o estatuto social deveria prever as vantagens e restrições a que as ações preferenciais estariam sujeitas, incluindo, entre as restrições, a possibilidade de seu

232 Três das operações que a companhia pode praticar com ações de sua própria emissão vêm definidas na lei.

É bem verdade que, desde os romanos, a definição de conceitos ou institutos jurídicos era reservada à doutrina, sendo temerária a inclusão de definições na lei, já que a sua interpretação, com o passar dos anos, poderia mudar a natureza dos institutos. Até hoje são poucos os que são definidos pela norma; assim se pronunciou Valverde em 1939, em sua justificativa ao Anteprojeto do DL 2.627/40: “[d]efinem-se, para evitar confusões, as operações de resgate, amortização e reembolso”. Cf. Trajano de Miranda Valverde, Sociedades..., cit., Vol. 3, p. 281.

233

Cf. Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, Sociedades…, Vol. 1, cit., p. 181.

234 Marcelo Vieira von Adamek entende ser admissível a inserção, no estatuto social da companhia fechada,

de uma disposição inspirada no art. 1.085 do Código Civil “prevendo que a totalidade das ações de cada uma das classes poderá ser resgatada pela companhia, quando acionistas, representando a maioria do capital social (ou do capital votante), entenderem que o titular das ações da classe a resgatar incorreu em falta grave dos seus deveres sociais (...)”. O resgate, nesses termos e observadas certas condições expostas pelo autor, independeria de deliberação dos acionistas da classe atingida (art. 44, §6°, da Lei das S.A.) e operaria como uma forma de exclusão de sócio nessas companhias. Cf. Marcelo Vieira von Adamek, Abuso de Minoria em Direito Societário (Abuso das Posições Subjetivas Minoritárias), Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 325.

resgate235. A legislação anterior sobre as sociedades anônimas era omissa quanto à operação, tendo sido ela introduzida formalmente no diploma regulamentador das companhias com o DL 2.627/40, que, no seu artigo 16 e respectivo parágrafo único, dispunha, de maneira muito semelhante ao que a atual lei o faz, sobre o resgate.

Na sua essência, a operação se destinava a possibilitar à companhia um programa de financiamento flexível, de acordo com o qual ela poderia admitir acionistas preferencialistas que, em troca das preferências recebidas (usualmente na forma de dividendos mais altos ou mesmo fixos), eram considerados acionistas claramente temporários. Isso porque, depois de certo tempo – quando a companhia estivesse em período de prosperidade, por exemplo, que não mais justificasse o pagamento dos dividendos mais altos -, poderia cessar a simbiose por opção da companhia, sujeitando os acionistas atingidos ao poder que ela detinha de resgatar as ações nos termos do previsto no estatuto social ou na deliberação de assembleia geral de acionistas.

Segundo Philomeno J. da Costa, com apoio em Trajano de Miranda Valverde, o resgate tem natureza jurídica de uma compra compulsória das ações, para retirá-las de vez de circulação236. Waldemar Ferreira, igualmente, diz que, ao pagar o valor das ações com dinheiro oriundo dos “fundos disponíveis” da sociedade, ela, iniludivelmente, “mais não faz do que, em verdade, comprá-las”237. Haveria, segundo esses autores, uma compra e venda, irremediavelmente seguida do cancelamento das ações compradas. Existiriam, de acordo com esta visão, dois momentos distintos na operação de resgate: (i) paga-se o acionista e entram as ações para a conta de ações em tesouraria, para, ato contínuo, (ii) serem elas extintas com a respectiva anotação no livro ou registro próprio.

Segundo José Luiz Bulhões Pedreira, por outro lado, o resgate é negócio jurídico unilateral, no qual apenas uma manifestação de vontade existe: a da companhia. A eficácia dessa manifestação de vontade não depende do consenso de outra (Alfredo Lamy Filho diria que há exclusão de sócio, com a ruptura unilateral do contrato de sociedade238). Assim se manifesta o autor: “O efeito da deliberação de resgate adotada pela assembleia geral [tendo sido previstas as condições de resgate pelo estatuto] é a extinção da ação, e esse efeito decorre da deliberação, independentemente de sua comunicação ao acionista, ou

235 “O resgate é, na sua pureza, a operação para extinguir classes de ações preferenciais”. Philomeno J. da

Costa, op. cit., p. 83. De fato, o é apenas na sua pureza, uma vez que, atualmente, não há limitação no sentido de que apenas ações preferenciais podem ser objeto de resgate, pois qualquer classe ou espécie está sujeita ao procedimento.

236 Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 105.

237 Cf. Waldemar Ferreira, Tratado…, cit., Vol. 4, p. 1055. No mesmo sentido, de caracterizar a operação

como uma compra e venda, cf. Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, Sociedades..., Vol. 1, cit., p. 188.

de qualquer condição ou termo; mas como a deliberação que resgata ações implica alteração do estatuto social, seus efeitos dependem de arquivamento da ata da assembleia no Registro de Comércio. (...) Satisfeito esse requisito legal para a eficácia da deliberação da Assembleia Geral, a ação resgatada extingue-se e, por conseguinte, seu titular perde a qualidade de acionista e passa a ser credor da companhia pelo preço de resgate”239. A opinião tem consequências jurídicas importantes: a partir do arquivamento da ata deliberando o resgate, os acionistas, mesmo que não comunicados, não poderão mais participar de assembleias da companhia, nem mesmo receber dividendos – não possuem mais status socii. Alfredo Lamy Filho, em parecer, segue a mesma linha de raciocínio: “[o] resgate importa, pois, sempre, no cancelamento das ações resgatadas, com ou sem redução de capital – o que significa, para o detentor das ações resgatadas, a exclusão da sociedade. Trata-se de manifestação unilateral da companhia, contra a qual a lei não assegura recurso: todas as companhias têm, em princípio, o direito [quiçá o poder, pensaríamos nós] de proceder ao resgate de suas ações, e ao instituto (observadas, obviamente, as demais regras legais) estão sujeitos todos os acionistas”240.

Não nos restam dúvidas de que a razão está com os autores do anteprojeto de lei: o resgate é negócio jurídico unilateral241, no qual a única manifestação de vontade necessária é a da companhia, sendo a extinção das ações, juridicamente, operada ipso iure após o arquivamento da deliberação que a tenha aprovado ou após a ocorrência dos eventos de resgate previstos no estatuto social242. A obrigação de dar, consubstanciada no ato de pagar o valor de resgate, pela companhia, e a correspondente pretensão de cobrar do ex-acionista, advêm não de um contrato de compra e venda, mas, sim, de um negócio jurídico unilateral, o que é plenamente possível.

239

Cf. Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., cit., p. 392.

240 Cf. Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., cit., p. 399. 241 Afirmativamente, Pontes de Miranda, cf. Tratado de Direito Privado, op. cit., p. 90.

242 Vale detalhar o ponto. Existem três formas de legitimar o resgate: (i) a primeira se configura quando o

estatuto tenha, na constituição da sociedade, estabelecido as condições de resgate de determinada classe de ações, (ii) a segunda se dá, quando, posteriormente à constituição da sociedade, delibera-se, em assembleia, a modificação do estatuto para incluir nova classe de ações, estas com cláusula de resgate, e (iii) na última, o resgate de ações já em circulação depende de deliberação da assembleia geral. Nos casos (i) e (ii), a compulsoriedade do resgate é evidente, considerando que não há necessidade de qualquer aprovação pelos acionistas atingidos, uma vez que as modificações e a fixação das condições do resgate se deram previamente à subscrição das ações (pacta sunt servanda). Já na situação (iii), a reforma de 1997 (seguindo entendimento anterior de Alfredo Lamy Filho) veio a acrescentar a necessidade de aprovação do resgate pelos acionistas atingidos, por maioria e em assembleia especial – o que de certa forma lhes garante veto sobre a deliberação. Ver também Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., cit., pp. 400 e ss.

Temos que um dos elementos principais do resgate é o de que a companhia paga ao acionista o valor das suas ações243, para retirá-las definitivamente de circulação: trata-se de um negócio jurídico da companhia emissora com o seu acionista, eis que é ela que deve efetuar o pagamento, com os seus próprios recursos. Significa dizer que as ações resgatadas são necessariamente extintas do quadro de ações emitidas pela sociedade, com a correspondente anotação no livro de Registro de Ações Nominativas, ou nos extratos da instituição custodiante das ações, da diminuição do número das ações (artigo 31 da Lei das S.A.). Não há qualquer possibilidade de que essas ações retornem à circulação: pelo menos

o número das ações deve necessariamente diminuir244.

Dizemos que “pelo menos” o número de ações deve diminuir, por conta da redação inequívoca do artigo 44, §1°, que prevê expressamente a possibilidade de não redução da cifra do capital social e, neste caso, o resgate alteraria o número e o valor nominal das ações remanescentes, o que é óbvio245. Da maneira como for, seja com ou sem redução da cifra formal do capital social, será necessária sempre uma modificação estatutária deliberada em assembleia (seja para reduzir o número de ações, apenas – na hipótese em que elas não possuam valor nominal -, para reduzir esse número e aumentar seu valor nominal – para ações com valor nominal - ou para reduzir a cifra do capital social).

A redução da cifra nominal do capital social, portanto (ou, simplificadamente, a redução do capital), não constitui elemento essencial ao resgate. Muito pelo contrário, essa cifra deveria, via de regra, manter-se inalterada, dado que a lei determina o pagamento do valor dessas ações com “lucros ou reservas” da sociedade. Ora, se o pagamento se dá com lucros ou reservas246 da companhia, necessariamente faz-se o resgate sem que se atinja a massa de ativos reais e concretos que serve de lastro para a cifra nominal do capital social,

243 Dessa redação já se pode abstrair um conceito e uma dúvida importantes: o conceito é o de que esse

pagamento deve necessariamente ser pelo valor total das ações (se fosse parcial, seria amortização, e não resgate, nos termos do artigo 44, §3° da Lei das S.A., sobre o qual dissertaremos adiante) e a dúvida, igualmente relevante, consiste em saber como se define o valor dessas ações. Para mais, ver Philomeno J. da Costa, op. cit., pp. 80 – 83.

244 Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 83. “O objetivo do resgate é, sem dúvida, diminuir o número de ações”,

cf. Waldemar Ferreira, Tratado…, cit., vol. 4, p. 1062.

245 Aritmeticamente, se mantido idêntico o produto da multiplicação (número de ações x valor nominal =

capital social formal) e reduzido um de seus fatores (número de ações) o outro fator (valor nominal) necessariamente deve aumentar para manter a identidade do resultado.

246

A redação do DL 2.627/40 falava em “fundos disponíveis”. Philomeno J. da Costa entendia que eram aquelas reservas que, pela lei, não teriam destinação ou finalidade específicas (e ficariam, portanto, contabilmente classificadas na extinta conta de “lucros acumulados”). Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 84. Ver também, sobre fundos disponíveis, tratando com maestria os conceitos de capital social nominal e capital social real, Trajano de Miranda Valverde, Sociedades por..., cit., Vol I., p. 161 e 162. Ver também Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, Sociedades..., Vol. 1, cit., p. 180.

pois, caso contrário, não haveria nenhum lucro ou reserva. Não se pode efetuar o resgate “à custa do capital social”, na já consagrada expressão.

Perguntamo-nos por qual razão, então, a lei veda, de um lado, a utilização de ativos “lastro” da cifra nominal do capital social para a realização do pagamento do valor do resgate, quando permite, de outro lado, a redução do capital social depois de realizada a operação. Não seria mais simples que tivesse permitido também o resgate à custa do capital social (como permite no reembolso) e, nesse caso, necessariamente seguido da redução da sua cifra nominal?247

Waldemar Ferreira diria que a inadvertência do legislador na redação do dispositivo é manifesta (neste ponto, o texto do artigo 16, parágrafo único, do DL 2.627/40 é teleologicamente idêntico ao da Lei das S.A.): “No capital se não toca. Há de êle manter- se, sempre e necessáriamente. O texto somente permite o resgate ‘por meio de fundos disponíveis’. O capital, portanto, fica intacto. Intacto, por ser possível a operação sòmente à custa de fundos disponíveis”248. Philomeno J. da Costa obtemperava que há uma parte exata e uma imprecisa no pensamento do mestre. Para ele: “[s]e o resgate se opera com fundos disponíveis, utilisam-se bens que permanecem no patrimônio social em relação a outros acima do valor nominal do capital; nunca se poderão transformar em dinheiro aquêles que desçam aquém do capital, pagando-se as ações resgatadas com êsse produto. Isto quer significar que sempre restam bens, cujos valôres de registro contábil equivalem ao montante do capital social; o resgate realisa-se com aquêles bens que se situam acima do capital e que não tenham destinação diversa como já vimos atrás (n. 22). O capital de

fato não diminui; baixam os fundos disponíveis. Mas de direito, o capital pode ser

diminuído. O legislador não atuou inadvertidamente.”249 – os itálicos são do original. Concordamos com Waldemar Ferreira e Cunha Peixoto250. Ou bem se estipula que o resgate não permite a redução do capital social, mesmo com a extinção de ações (que

247 Esta curiosa característica do resgate já estava estipulada, em semelhantes termos, no DL 2.627/40. 248 Waldemar Ferreira, Tratado de Sociedades…, cit., p. 1062.

249 In Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 94, nota de rodapé 105. Nessa nota de rodapé o autor ilustra um

exemplo, em que a diminuição da cifra do capital social seria aconselhável: delibera-se a emissão de ações resgatáveis em parcelas, mediante sorteio, depois de certo período de tempo, pelo seu valor nominal. Acontece que, após cada resgate, o valor nominal das ações remanescentes aumentava, tornando a operação de resgate cada vez mais custosa para a sociedade. Neste caso, seria mais útil e aconselhável que se deliberasse também a redução do capital social, evitando o problema matemático. Isto, no entanto, não afasta, a nosso ver, a incongruência da norma: permita-se desde logo o resgate à custa do capital social, desde que, nesse caso, obrigatoriamente se reduza a sua cifra formal correspondentemente.

250 Mencione-se também que o entendimento da CVM é o de que a redação é aparentemente contraditória (a

utilização de lucros ou reservas vis-à-vis a possibilidade ou não de redução da cifra formal do capital social). Cf. Parecer/CVM/SJU/n.° 91, de 28 de dezembro de 1982, especificamente no seu item 4. A argumentação

representam, formalmente, “frações” dele), e, portanto, o valor a ser pago aos acionistas atingidos necessariamente deve ser oriundo de lucros ou reservas, ou bem se faculta o resgate com redução de capital, mas também se permite que os valores sejam pagos aos acionistas ainda que a companhia não tenha saldo de lucros ou reservas. Neste último caso, necessariamente deve-se reduzir a cifra do capital social251. A redação do dispositivo peca, não por facultar a redução do capital social, mas por não permitir que o resgate se efetue à custa dele.