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3. ASPECTOS PATRIMONIAIS: O INTERESSE DOS CREDORES

3.3. Análise Crítica do Artigo 30 da Lei das S.A

3.3.2. Reembolso

O instituto do reembolso, de origem italiana (rimborso delle proprie azioni252), está situado entre aqueles que a lei define. Reza o artigo 45 da Lei das S.A. que o reembolso é a operação pela qual a própria companhia, nos casos previstos em lei, paga aos acionistas dissidentes de deliberação da assembleia geral o valor (total, sempre) de suas ações (o direito de recesso mediante reembolso é, inclusive, listado entre os direitos essenciais do acionista no artigo 109, V, da Lei das S.A.). Os “casos previstos em lei” mencionados pelo artigo 45 são aqueles listados no artigo 136, I a VI e IX c/c artigo 137 da Lei das S.A., que enumeram diversas situações. O artigo 137 dispõe sobre as condicionantes e os termos, verdadeiras regras complementares, de acordo com os quais será efetivado o resgate, além de detalhar o seu procedimento específico253.

da CVM, no entanto, decepciona: limita-se a afirmar que a redação é possivelmente contraditória, não argumentando a favor ou contra a disposição.

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Já na situação onde a companhia tenha saldo de lucros ou reservas para efetuar o pagamento, mas ainda assim deseje reduzir o capital, isso também poderá ser feito, mas será apenas uma faculdade da companhia, e não uma obrigação.

252 “De fato, enquanto quase todas as legislações então vigentes reduziam o número de modificações

estatutárias, o art. 158 do Código Comercial italiano de 1882 permitiu amplas alterações e, para temperar esta concessão à maioria, outorgou-se ao acionista ausente ou dissidente o direito de retirada. O Código Unitário Italiano de 1942 conservou o princípio, embora reduzindo seu campo de aplicação”. Cf. Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, Sociedades..., Vol. 1, cit., p. 189.

253

Existem cinco outras hipóteses de direito de recesso, mediante reembolso do valor das ações, previstos na lei, e que não estão disciplinadas nos artigos 136 e 137, que são as seguintes: (1) a Lei das S.A., assim como o fez o DL 2.627/40, não previu na redação do artigo 136 c/c 137, o direito de retirada no caso de transformação. Isso porque o artigo 136 determina casos de quórum qualificado de deliberação, por maioria absoluta das ações ordinárias, e a transformação exige unanimidade, nos termos do artigo 221 da Lei das S.A. (2) tampouco previu a lei o caso da incorporação de ações, nos termos do artigo 252 da Lei das S.A., que não se confunde com a incorporação do artigo 136, IV. (3) em terceiro lugar, foi deixada de fora da relação a hipótese de reembolso para acionistas dissidentes de deliberação de uma companhia adquirente do controle de outra, caso o preço deliberado de aquisição supere determinados valores que a lei estipula no artigo 256 e seus parágrafos. (4) menciona-se, igualmente, a situação na qual o poder público adquire ações de uma companhia por desapropriação, nos termos do art. 236, parágrafo único. (5) Por fim, não previu o caso de acionistas que discordem da vinculação da sociedade a uma convenção grupal, nos termos do artigo 270, parágrafo único. De qualquer forma, são outros casos de reembolso do valor das ações, previstos em lei. E são apenas esses, o caráter continua sendo taxativo. Cf. Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 115.

Novamente, assim como no resgate, a operação de reembolso foi admitida no mundo das sociedades anônimas com o Decreto n.° 21.536/32254, que o estabeleceu nos seus artigos 9° (com seus três parágrafos) e 10°, que se limitavam, até pelo objeto do decreto, aos casos de acionistas preferenciais prejudicados por alteração nas regras de hierarquia ou nas vantagens entre classes de ações preferenciais. O Anteprojeto Miranda Valverde alargou o campo de sua aplicação255, no que foi seguido pela Lei das S.A., que acolheu outras importantes mudanças no seu regime jurídico256.

Pela leitura das normas, nota-se que esta é uma operação também de pagamento aos acionistas, inconformados com alguma deliberação social tomada, do valor de suas ações; mas, diferentemente do resgate, a finalidade da operação não é retirar essas ações definitivamente de circulação (mediante seu cancelamento compulsório). Pelo contrário, a lei prevê claramente que essas ações continuam existentes, podendo a companhia até mesmo buscar novos acionistas para comprá-las.

Uma vez tomada uma deliberação pela assembleia geral envolvendo uma das matérias elegíveis, e com a qual o acionista não concorde (mesmo que ausente da assembleia ou que tenha se abstido de votar, o que é uma inovação muito bem-vinda da Lei das S.A.257), tem ele o prazo de 30 dias, conforme artigo 137, IV, da Lei das S.A., contados da publicação da ata da deliberação, para comunicar à companhia que deseja exercer o seu direito de recesso258, mediante reembolso de suas ações. Já o artigo 45, §6°, prevê o prazo, para a companhia, de 120 dias a contar dessa mesma publicação, para encontrar novos acionistas para as ações que tenham sido reembolsadas à custa do capital social.

254 Dizemos mundo das anônimas, pois o direito de recesso foi introduzido pelo Decreto n.° 3.708/19, que

regulou por muitos anos as sociedades limitadas no Brasil e facultava, no seu artigo 15, o reembolso dos sócios que divergissem da alteração do contrato social.

255 Cf. Trajano de Miranda Valverde, Sociedades..., cit., Vol. 3, p. 286.

256 Cf. Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., cit., p. 222 e, mais adiante, pp. 548

a 550.

257 Cf. artigo 137, §2° da Lei das S.A. No direito anterior, o entendimento majoritário era não só o de que o

acionista deveria comparecer à assembleia, como o de que ele deveria fazer constar sua opinião contrária, pois, na ausência de previsão expressa da lei, um acionista “dissidente” não podia ser confundido com um acionista “ausente” ou “abstinente”: o acionista precisava comparecer, votar e ser vencido na deliberação. Ver Philomeno J. da Costa, op. cit., pp. 134 e 135. No mesmo sentido era a opinião de Trajano de Miranda Valverde, cf. Sociedades..., cit., Vol. 2, p. 242. Waldemar Ferreira entendia possível ao acionista ausente exercer direito de recesso, mas não tratou do acionista abstinente, cf. Tratado..., cit., Vol. 4, p. 1067. A Lei das S.A. alterou, conscientemente, este regime, cf. Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., cit., p. 232.

258 A redação, tanto do artigo 45, quanto dos artigos 109, 136 e 137, mencionam o direito do acionista de

“retirar-se” da sociedade, mas a doutrina usa frequentemente a denominação “direito de recesso”. Cf. Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 134. Ver também Trajano de Miranda Valverde, Sociedades..., cit., Vol. 2, p. 42 e Waldemar Ferreira, Tratado..., cit., Vol. 4, pp. 1066, 1381 e 1382.

Duas observações decorrem desse mecanismo: (i) a primeira é a de que as ações reembolsadas passam a ser propriedade da companhia emissora, e não são extintas automaticamente. Tanto isso é verdade, que o artigo 45, §5°, dispõe que as ações reembolsadas à custa de saldo de lucros ou reservas (exceto a legal) permanecerão em tesouraria, e sujeitar-se-ão, portanto, ao seu regime jurídico específico; e (ii) a segunda é a de que é permitido expressamente o pagamento do reembolso à custa do capital social, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com o resgate (situação que já criticamos quando dissertamos sobre ele). Neste último caso (pagamento do reembolso à custa do capital), haverá redução do capital social depois de transcorridos os 120 dias de prazo após a publicação da ata da deliberação contra a qual tenha se insurgido o acionista, caso não tenham sido recolocadas as ações259.

A leitura desses dois parágrafos do art. 45 pode parecer confusa: as ações reembolsadas à custa do capital não permanecem também em tesouraria, até o decurso do prazo permitido para serem recolocadas no mercado (a redação do artigo 45, §5°, menciona apenas o caso de reembolso com recursos oriundos do saldo de lucros ou reservas)? A resposta é positiva: também no caso de reembolso à custa do capital social, considerando que as ações não são extintas (ao menos não antes de transcorrido o prazo de 120 dias), devem elas também ser submetidas ao regime das ações em tesouraria260.

Por outro lado, pergunta-se: as ações reembolsadas com recursos oriundos do saldo de lucros ou reservas elegíveis devem ser extintas (e/ou o capital social reduzido) caso não sejam encontrados novos acionistas após o prazo de 120 dias acima mencionado? A resposta deve ser negativa: neste caso, as ações podem permanecer por tempo indeterminado em tesouraria, mantido inalterado o capital social, considerando que o pagamento do reembolso foi realizado com “fundos disponíveis” que não possuem nenhum vinculo de indisponibilidade e podem ser distribuídos aos acionistas261. O reembolso, neste

259

A explicação para que o reembolso possa ser feito também à custa do capital social está no fato de que ele é um direito do acionista, e não uma prerrogativa da companhia. Daí a impossibilidade de frustrar-se o exercício do direito pelo acionista sob o argumento de falta de saldo de lucros e reservas para seu exercício. Cf. Fran Martins, Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, 3ª Ed., Forense, Rio de Janeiro, 1989, p.184 e Modesto Carvalhosa, Comentários..., cit., pp. 321 e 322.

260 Cf. Trajano de Miranda Valverde, Sociedades…, cit., Vol. 1, n. 104-bis, pp. 161 e 162.

261 Esta diferenciação, entre reembolso feito à custa de saldo de lucros ou reservas ou do capital social, não

era conhecida do DL 2.627/40. Sob a vigência desse diploma, entendiam os doutrinadores que a redução do capital social era obrigatória caso não fossem encontrados novos acionistas para substituir os retirantes, independentemente da existência ou não de lucros e reservas elegíveis – os “fundos disponíveis” na linguagem do direito anterior. “Não se poderia, por exemplo, imaginar que o vácuo, não preenchido no capital, fosse preenchido diretamente com a mobilização de eventuais reservas acumuladas da sociedade, sob a aparência sugestiva de que elas se destinam bem a recompô-lo. Admitido o princípio de que, em algumas circunstâncias, pode o acionista minoritário retirar-se, resulta disto o desfalque correspondente do capital; é a

caso, assemelha-se muito a uma compra e venda para permanência em tesouraria262, com uma diferença de causalidade263: a entrega de recursos, pela companhia ao acionista, tão-só se revestirá como “reembolso” – e não como compra e venda – se houver uma deliberação sobre uma das matérias previstas na lei, a inconformidade do acionista e a realização de um minucioso processo jurídico. Na sua essência econômica, no entanto, são equivalentes.

Outro ponto interessante da estrutura, sob a ótica de proteção dos interesses dos credores em negócios com ações onde a companhia emitente seja parte, é o tratamento previsto para o caso de falência superveniente da companhia emissora. O artigo 45, §8°, da Lei das S.A. estipula que o pagamento do reembolso aos acionistas que seja feito à custa do capital social (e apenas por esta modalidade) entende-se feito com condição resolutiva: ocorrendo a convergência de três circunstâncias, operar-se-á a restituição do dinheiro, voluntariamente ou mediante ação. São elas: (i) superveniência da falência da companhia, após terem sido reembolsados acionistas à custa do capital social; (ii) a não concretização da recolocação das ações no mercado para novos acionistas; e (iii) a insuficiência dos ativos sociais para pagamento das dívidas existentes anteriormente à data da publicação da ata da assembleia que resolveu a matéria sobre a qual se rebelaram os acionistas dissidentes (é o que se entende por “créditos mais antigos” na redação da lei)264. A solução adotada pela lei, aqui, claramente se destina à satisfação do princípio da integridade do capital social e encontra um paralelo na situação das ações não integralizadas no caso de liquidação da sociedade, nos termos do artigo 210, V, segundo o qual o liquidante deve exigir dos acionistas titulares destas ações, caso o ativo social não baste para saldar o passivo, a integralização dos valores por eles devidos à companhia.

Tem a operação a natureza de um negócio jurídico unilateral receptício, vez que o acionista tem o direito potestativo de requerer à companhia, obedecidos os termos da lei e se for de seu interesse, o reembolso de suas ações, para que ele possa retirar-se da sua diminuição”. Cf. Philomeno J. da Costa, op. cit., p. 148. Data venia, razão não assiste ao autor: se há saldo contábil de patrimônio líquido superior à cifra do capital social, não há desfalque algum, há utilização de recursos de disponibilidade plena da companhia e, teleologicamente, de titularidade dos próprios acionistas. Bem andou a Lei das S.A. em alterar esta mecânica no reembolso.

262

Afirmativamente, José Edwaldo Tavares Borba, Direito Societário, 6a ed., Renovar, Rio de Janeiro, 2001, p. 238.

263 A discussão sobre a causalidade nos negócios jurídicos não é pacífica. Explica-se a causa final do negócio

jurídico como o fim perseguido pelos que se vinculam. Por exemplo: a entrega de um bem qualquer de uma pessoa a outra poderá ter causas diversas, o que identificará o negócio jurídico desejado pelos contratantes, seja uma compra e venda, uma doação, um mútuo ou uma permuta. É a causa final que o caracteriza; assim também nos casos de negócios da companhia com ações de sua emissão. Cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, Teoria Geral das Obrigações, São Paulo, Saraiva, 2005, pp. 30 a 32.

264

Cf. Philomeno J. da Costa, op. cit., pp. 143 a 145. Trajano de Miranda Valverde, Sociedades…, cit., Vol. 2, pp. 244 e 245.

sociedade, sendo absolutamente desnecessária a concordância da companhia sobre essa manifestação de vontade. A retirada dos acionistas dissidentes efetiva-se, portanto, por atos unilaterais de suas vontades265. Diz-se que é um negócio jurídico unilateral de caráter receptício, pois o direito dos acionistas transforma-se, pela força da lei, de direito de sócio para um direito de crédito pelo valor do reembolso no momento em que a companhia recebe a notificação do exercício, pelo acionista, desse direito – surte o recebimento da notificação de pleno direito esse resultado266.

3.3.3. Amortização: Ações de Fruição Sujeitas ao Regime do art. 30 da Lei das S.A.