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O Ordenamento Patrimonial

2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS E DOGMÁTICOS

2.1. A Visão Estruturalista de Herbert Wiedemann sobre o Fenômeno Societário como

2.1.4. O Ordenamento Patrimonial

Esta disciplina será, sem dúvida, uma das mais importantes para nosso estudo. Como trataremos de expor abaixo, a proibição às negociações com as próprias ações fundamenta-se em grande parte nas regras que regulam a manutenção do capital social. Para conseguirmos visualizar com clareza a função deste instituto, precisaremos percorrer um caminho um pouco mais longo, analisando, de antemão, o regramento patrimonial da sociedade, considerando, em primeiro lugar, que o capital social não é conceito fundamental à existência de sociedades, ao menos não na função de garantia de credores.

Ao lado da disciplina do ordenamento societário propriamente dito, contêm as regras societárias, em grande parte, conteúdo que regulamenta a organização do patrimônio social, por meio do qual deverá ser perseguido o objeto da sociedade.

Estas normas visam a determinar o maior ou menor grau de separação entre o

patrimônio individual do sócio e o patrimônio social pertencente à coletividade e afeto à

perseguição do objeto social, constituindo (na falta de uma pessoa jurídica para ser o centro de imputação desses direitos) certa “massa especial” (Sondervermögensmasse), que precisa de regras próprias. Naturalmente, também, que o significado para a organização societária das normas que regulam seu patrimônio, ganha maior ou menor relevância a depender do tipo de fenômeno associativo de que se esteja tratando. Quando se fala de associações em sentido estrito, que não perseguem fins econômicos, então as regras que regulam seu patrimônio aparecem mais como regras de caráter secundário ou subsidiário na vida social, e, ao contrário, em uma sociedade empresária, as regras de formação e manutenção do patrimônio social emergem no centro da regulação da vida social.

Dentro deste quadro, despontam regras que visam a endereçar questões de (i)

competência para dispor do patrimônio social, (ii) transferência de patrimônio entre o sócio e a sociedade, além de (iii) responsabilidade nas relações internas e externas.

Neste ponto, diferentemente do que ocorre com as sociedades de pessoas, existem inúmeras regras nas sociedades de capitais que visam a regulamentar a constituição e manutenção do capital social, que é conceito afeito tão somente a elas28.

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Isto não quer significar que as sociedades para as quais não se aplique o conceito de capital social, estritamente falando, não possuam regras que disciplinem seu ordenamento patrimonial. Nelas (sociedades de

Em resumo, as regras que disciplinam o ordenamento patrimonial dos fenômenos associativos têm, em seu conjunto, a função de criar um direito real coletivo, diferente da mera comunhão de uma coisa entre indivíduos, como se um típico condomínio civil fosse. O Direito Societário precisa criar regras de imputação de uma coletividade de coisas, autonomizadas das esferas jurídicas das pessoas individuais que delas abriram mão em favor da coletividade (Vermögenseinheit), a uma coletividade de pessoas que passam a ser titulares desse patrimônio em comum. Wiedemann assim se expressa: “o Direito Societário deve, consequentemente, regular as suas próprias formas de imputação [em contraposição às tradicionais regras do condomínio civil, inaplicáveis ao patrimônio social], que determinarão quem será o titular do direito e quem poderá regularmente exercer as prerrogativas oriundas da propriedade, ou, em outras palavras, como as disciplinas do ordenamento societário interagem com a disciplina do ordenamento patrimonial”29.

Como necessário verso da mesma moeda, a disciplina do ordenamento patrimonial também cuida da legitimidade dos credores para exercerem seus direitos de crédito contra o patrimônio social, ou, vale dizer, contra quem os credores sociais devem exercer suas prerrogativas de crédito. É por isso que também correspondem às regras de disciplina do ordenamento patrimonial aquelas atinentes à responsabilidade pelas dívidas sociais. Obviamente, a sociedade responde, ela própria, pelas suas obrigações e pelos atos de seus órgãos (mesmo que ela não possua personalidade jurídica), mas a questão que permanece é como, e em que medida, os sócios devem responder por dívidas sociais e se essa responsabilidade é direta ou tão somente subsidiária. Caso a responsabilidade dos sócios seja, em regra, inexistente pela via normativa, então o ordenamento jurídico precisa conferir outras formas de assegurar os credores sociais, e aqui Wiedemann menciona as regras de constituição e manutenção do capital social (Kapitalaufbringung und

Kapitalsicherung). Gostaríamos de chamar a atenção para este ponto, sobre o qual

voltaremos a falar logo adiante.

pessoas), existem também várias regras que disciplinam a titularidade comum do patrimônio social pelos membros da associação, além das competências para administrá-lo e da responsabilidade dos sócios pelas obrigações contraídas em prol da coletividade. Para um refinamento terminológico entre sociedades de capitais e sociedades de pessoas, fazemos referencia ao item específico onde tratamos sobre o assunto.

29 No original: “[d]as Gesellschaftsrecht muβ folglich seine eigenen Zuordnungsformen finden, die angeben, wer als Rechtsträger anzusehen ist und wer die sachenrechtlichen Herrschaftsrechte verbindlich ausüben darf, das heiβt wie Vermögens- und Verbandsorganisation ineinandergreifen sollen”. Cf. Herbert Wiedemann, op. cit., p. 19.

Na concretização desta disciplina do patrimônio comum, fornece o ordenamento jurídico duas grandes soluções: a pessoa jurídica e a Gesamthand30. “Como forma de organização do patrimônio coletivo, o direito vigente acaba colocando à disposição dois institutos jurídicos: a Gesamthand e a pessoa jurídica. (…) Ambos os institutos desenvolvem a mesma função no direito vigente, qual seja, a de criar um ‘direito real coletivo’. Eles tomam, na concretização desse objetivo, no entanto, diferentes rumos: a autonomização do patrimônio social em contraposição ao patrimônio dos sócios aparece em diversos graus de força”31. A pessoa (personalidade) jurídica serve apenas como

método de análise da disciplina do patrimônio coletivo32 da sociedade. Como no direito

brasileiro inexiste a figura da Gesamthand e, ademais, como por aqui quase todas as sociedades são personificadas (exceto a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação), detalharemos um pouco mais apenas o ordenamento patrimonial da pessoa jurídica que servirá, posteriormente, para o estudo dos aspectos patrimoniais da nossa matéria.

É no final do século XVII que se iniciam as teorizações33 sobre o conceito de pessoa jurídica, em conexão com a criação do conceito de sujeito de direito. Como salienta

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O termo “Gesamthand”, que literalmente se traduz como “mão comum ou coletiva” é um instituto de direito alemão desconhecido em outros Direitos (como reconhece o próprio Herbert Wiedemann: “a Gesamthand – um instituto de Direito Alemão desconhecido, nesta forma, fora dos limites dos países germânicos – já era, na Idade Média, uma forma difundida de organização de patrimônios coletivos pertencentes a comunhões de bens dos casados, comunhões entre herdeiros (Erbverbrüderungen) e co- residentes” ou, no original, “die Gesamthand – ein deutschrechtliches Institut und auβerhalb der deutschen Sprachgrenzen in dieser Art unbekannt – war bereits im Mittelalter eine verbreitete Form mehrheitlicher Vermögenzuordnung für eheliche Gütergemeinschaften, Erbverbrüderungen und Lehensgemeinschaften”) e que constitui espécie de condomínio. Diz Erasmo Valladão A.N. França que “pode-se fazer, com todas as reservas, um ligeiro paralelo, no Direito Brasileiro, com o patrimônio especial dos sócios na sociedade em comum (art. 988 do CC)” in Temas de Direito Societário, Falimentar e Teoria da Empresa, Malheiros, São Paulo, 2009, p. 631.

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No original: “Als Sondervermögensordnung stellt das geltende Recht zwei Rechtsinstitute zur Verfügung: die Gesamthand und die juristische Person. (…) Beide Rechtsinstitute erfüllen im geltenden Recht dieselbe Aufgabe, nämlich ein ‘Kollektivesachenrecht’ zu gestalten, sie schlagen bei der Verwirklichung jedoch getrennte Wege ein: der Grad der Verselbstständigung des Sondervermögens gegenüber den einzelnen Mitgliedern ist verschieden stark ausgeprägt”. Cf. Herbert Wiedemann, op. cit., p. 19.

32 “Veremos, mais de uma vez, que personalidade jurídica e patrimônio separado constituem, afinal,

instrumentos de técnica jurídica para a disciplina do comércio com responsabilidade limitada” – grifos nossos. A singeleza e polidez do pensamento impressiona. Cf. Tullio Ascarelli, Problemas..., cit., p. 460, à nota de rodapé 956, in fine. Quanto à terminologia, é importante, também, não confundirmos alguns conceitos. A personalidade jurídica nada tem a ver com a existência da sociedade, como a letra do próprio Código Civil deixa incontroverso (artigos 986 a 996 do Código Civil), pois ela serve como forma de organização (autonomização) de patrimônio, não como requisito de existência da organização societária. Mais abaixo no texto tratamos da diferença fundamental entre personalidade jurídica e limitação da responsabilidade.

33 Há autores que defendem a presença, no direito privado romano, de um caráter de personalidade da

sociedade (societas) distinto da personalidade das pessoas físicas que as compunham (körperschaftlichen

Struktur), apontando-se, como exemplo, o caso das grandes societates publicanorum, destinadas ao exercício

Herbert Wiedemann: “No final do século XVII, é Domat quem insere, ao lado das pessoas físicas, as Corporações como objeto do direito das pessoas; aproximadamente na mesma época, Pufendorf cria o conceito da persona moralis – contido na personnalité morale – e desenvolve, por meio da expressão conjunta das pessoas jurídicas e físicas, o conceito central de sujeitos de direito” – os itálicos são do original. No entanto, a grande discussão doutrinária sobre este conceito é filha do século XIX e inícios do século XX34.

A concessão de personalidade jurídica a um patrimônio especial, destinado a uma finalidade específica, tem por função permitir que tal patrimônio organizado e finalístico possa ser, ele próprio, titular de direitos e obrigações (passa de objeto para sujeito de direito) – sendo de se acentuar o caráter finalístico e instrumental da concessão da personalidade: ela é atribuída não em decorrência de uma autodeterminação, como a das pessoas físicas, mas apenas para a consecução de uma finalidade própria, daí a sua instrumentalidade. “A pessoa jurídica é, portanto, uma unidade de imputação de direitos e deveres autonomizada pela lei”35. Pela atribuição de personalidade, o ordenamento jurídico separa, formalmente, uma parcela do patrimônio das pessoas físicas componentes da pessoa jurídica para o patrimônio que passa a ser próprio desta última (princípio da

exército (heereslieferung) e a exploração de minas de ouro, prata e sal. Ignorando seus aspectos organizacionais (mais atinentes, nas nossas premissas estruturalistas, à disciplina do ordenamento societário), salienta Waldemar Ferreira que elas tendiam a se apresentar como um todo único, adquirindo caráter “corporativo”. Cf. Waldemar Ferreira, Tratado de Sociedades..., cit., pp. 130 e ss. No entanto, mesmo que se admita algum resquício do que hoje seria a teoria de uma “pessoa jurídica” já nos entes públicos romanos ou em algumas formas privadas de associação, verdade é que os romanos, em si, não eram afeitos a teorizações abstratas ou metafísicas, de modo que qualquer um desses fenômenos teria sido apenas intuído, muito mais do que teorizado. Seguimos a opinião de Calixto Salomão Filho neste assunto, que afirma categoricamente que “primeiramente devem-se ainda fazer duas observações sobre o direito romano. Em primeiro lugar, ressaltar a total inexistência de um conceito de pessoa dissociável da noção de homo.” – grifos nossos (Cf. Calixto Salomão Filho, “Societas” com Relevância Externa e Personalidade Jurídica, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 81, 1991, p. 66 e ss.). No entanto, não faltam discussões e doutrina respeitável afirmando a existência de determinados resquícios históricos do que veio a ser conhecido com Pufendorf como “persona moralis”. A. Santos Justo, citando D’Ors, afirma que “es totalmente contrario a la mentalidad jurídica romana que fines estrictamente comerciales puedan justificar el reconocimiento de la personalidad jurídica, como ocurre en el mundo moderno” in op. cit., p. 77, nota de rodapé 32. Waldemar Ferreira também reconhece que pessoas eram apenas os homens, mas dá mérito aos romanos por terem feito “brotar no espírito humano essa noção jurídica”. In Tratado de Sociedades..., cit., p. 122.

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“Am Ende des 17. Jahrhunderts stellt Domat erstmals neben der physischen Personen die Korporationen als Gegenstand des Personenrechts; etwa gleichzetig prägt Pufendorf den Begriff der persona moralis – erhalten in der personnalité morale – und entwickelt mit diesem natürliche und juristische Personen zusammenfassenden Ausdruck den zentralen Begriff des Rechtsubjekts”. As grandes teorizações são atribuídas à Savigny (System des heutigen Römischen Rechts, de 1840), pai da Teoria da Ficção, à Otto von Gierke (Deutsches Privat Recht, de 1902), pai da Teoria da Realidade e à Bekker (System des heutigen Pandektenrechts, de 1886) e Brinz (Pandekten, de 1884), que cunharam a Teoria do Patrimônio Especial (Sondervermögen). Para mais, Herbet Wiedemann, op. cit., p. 191.

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“Die juristische Person ist also eine vom Gesetz verselbständigte Zuordnungs- und Zurechnungseinheit”. Herbert Wiedemann, op. cit., p. 196.

separação ou Trennungsprinzip)36. Consequentemente, este patrimônio autonomizado e afetado à consecução do objeto social é destinado a garantir os credores da sociedade (que não são, por via reversa, credores dos sócios e nem podem acessar, via de regra, o patrimônio destes – ao menos não diretamente)37.

Em outras palavras, o prius na teorização da pessoa jurídica é o patrimônio especial destinado pelos sócios à perseguição de um fim comum, que fica afetado a essa finalidade (Zweckvermögen)38. Os métodos de gerenciamento desse patrimônio, formação da vontade coletiva, etc. são consequência, e não pressuposto, da sua autonomia. Em outras palavras, a organização societária não é pressuposto, mas consequência da atribuição de personalidade jurídica à sociedade, já que, concomitantemente com essa atribuição de personalidade, devem ser previstas as regras de atuação e formação da vontade coletiva, agora unificada pela pessoa jurídica. De uma coletividade de pessoas passa-se, então, a uma pessoa coletiva.

Outro ponto de fundamental importância diz respeito à inexistência de correlação lógica entre a atribuição de personalidade jurídica (que é, no fundo, uma opção do legislador) a uma determinada sociedade e a limitação da responsabilidade dos seus sócios pelas obrigações sociais: “a exclusão da responsabilidade dos sócios de uma associação

36 Os sócios, originalmente detentores dos bens individualmente considerados, passam a deter apenas direito

de participação (Mitgliedschaftsrechte, quotas ou ações) na pessoa jurídica criada, que detém o patrimônio vertido. O direito que essas pessoas possuíam sobre os bens individualmente considerados, passam a ser um direito proporcional (“quotal”, por assim dizer) sobre o patrimônio total da pessoa jurídica no momento de sua liquidação, ou seja, ele não terá mais a prerrogativa de requerer de volta o bem específico originalmente coletivizado. Herbert Wiedemann, op. cit., p. 198.

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No fenômeno de criação dos grupos societários, a pessoa jurídica exerce fundamental importância, como se percebe quando uma empresa organiza parte de sua atividade por meio de subsidiárias integrais: a empresa é uma, a sua organização patrimonial é atomizada. Sobre o assunto, Lamy Filho e Bulhões Pedreira esclarecem: “na subsidiária integral o modelo de companhia serve de instrumento para personificar um patrimônio especial e definir suas relações com outras pessoas, mas as relações jurídicas internas próprias da sociedade somente passam a existir no momento em que há admissão de ao menos outro acionista”. Aqui, data venia, entendemos que não é unicamente o tipo societário da companhia que serve ao propósito apontado, mas a personalização jurídica de um patrimônio como forma de organização da empresa. Coincidentemente, a subsidiária integral vem regulada apenas na Lei das S.A. In Lamy Filho e Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., cit., p. 79.

38 O acento tônico dado à função patrimonial da pessoa jurídica em nada é prejudicado pelos demais direitos

que a ela são conferidos. De fato, de forma a possibilitar a individualização e a identificação, no trânsito jurídico, dessa organização patrimonial e societária é que o ordenamento estende à pessoa jurídica, também, alguns outros direitos inerentes à personalidade que sejam necessários para garantir a sua proteção e permitir que ela interaja economicamente com outros participantes do mercado (limitada igualdade de situação – “begrenzte Gleichstellung”), como direitos processuais (legitimação ativa e passiva da sociedade em juízo), direitos reais, como a propriedade, e certos direitos pessoais, como nacionalidade e nome. Pelo mesmo fundamento, não são estendidos direitos inerentes à personalidade humana e que sejam absolutamente incompatíveis com esta função (proteção do patrimônio autonomizado e sua organização societária), como os direitos de família e determinadas direitos civis (como o voto). A dimensão de quais direitos devem ser classificados como inerentes exclusivamente à pessoa humana e quais podem ser atribuídos à pessoa jurídica depende do direito positivo vigente. Para mais, Herbert Wiedemann, p. 200 e também 208 a 210.

personificada não é uma consequência lógica ou necessária do instituto jurídico [da pessoa jurídica]” – itálico do original39. Mesmo em situações onde o ordenamento jurídico garanta a personalidade jurídica de uma sociedade, é possível que ele também atribua, direta ou subsidiariamente, solidariamente ou não, a um (ou a uma categoria de) sócio ou a todos eles a responsabilidade pelas obrigações da pessoa jurídica. No ordenamento jurídico brasileiro, existem fáceis exemplos disto: (i) as sociedades em nome coletivo são personificadas e, ainda assim, determina a lei responsabilidade solidária e ilimitada dos sócios pelas obrigações sociais (artigos 1.039 e seguintes do Código Civil), (ii) as sociedades cooperativas também são personificadas, mas, nelas, a matéria é dispositiva, havendo a possibilidade de previsão de responsabilidade solidária e ilimitada (artigo 1.095, §2° do Código Civil), e (iii) nas sociedades em comandita simples (personificadas), o sócio comanditado é solidária e ilimitadamente responsável pelas obrigações sociais (artigo 1.045 do Código Civil). O conceito de limitação da responsabilidade dos (de todos os) sócios - pois que na comandita os comanditários têm responsabilidade limitada - é relativamente recente e apenas na segunda metade do século XVIII40 é que se desenvolveu como característica das sociedades anônimas e das sociedades de capitais em geral.

Ademais, o princípio da limitação da responsabilidade dos sócios não pressupõe o da livre circulação das participações sociais – i.e. a limitação da responsabilidade não pressupõe uma organização independente da pessoa de seus sócios – , como o demonstra a sociedade limitada, onde, conforme artigo 1057 do Código Civil, existem fortes restrições à saída e admissão de novos sócios. O mesmo não se pode afirmar, no entanto, quanto à relação inversa: a livre circulação das participações sociais pressupõe uma organização independente da qualidade individual de seus membros que, por sua vez, pressupõe a limitação da sua responsabilidade, pois a irrelevância da pessoa do sócio em relação à sociedade (estrutura de Körperschaft) só é possível em virtude de sua responsabilidade limitada, já que os credores sociais não negociam com a sociedade tendo em vista o patrimônio particular dos sócios, que responderão subsidiariamente: os credores sociais negociam com o patrimônio autonomizado e afetado à atividade social (independentemente

39 “[d]er Ausschluβ der Haftung der Mitglieder eines rechtsfähigen Verbandes ist keine logische oder notwendige Konsequenz des Rechtsinstitus”. Cf. Herbert Wiedemann, op. cit., p. 202.

dos seus sócios) que, por isso mesmo, merece (o patrimônio assim autonomizado) proteção diferenciada41.

Por outro lado, se é possível, como afirmamos, a existência de uma pessoa jurídica com sócios responsáveis, em maior ou menor medida, pelas obrigações sociais, então, ao revés, é impossível a completa limitação da responsabilidade destes sem o reconhecimento da pessoa jurídica e de regras de preservação do patrimônio destarte autonomizado: “a separação teórica do patrimônio especial vinculado ao exercício da atividade e a constituição de um capital apropriado constitui pré-condição para a completa desvinculação dos sócios quanto à sua responsabilidade”42. Em outras palavras, a pessoa jurídica (com o consequente patrimônio separado e juridicamente tutelado) é apenas um “meio técnico” para que os sócios possam exercitar o comércio com responsabilidade limitada43, pois ela permite a separação formal e definitiva entre as esferas patrimoniais44. É exatamente por essa razão, também, que, em termos técnicos, não se deve confundir a existência de personalidade jurídica com a obrigatoriedade de manutenção de um capital

social: este conceito apenas é aplicável naquelas sociedades onde inexiste, por via de lei,

responsabilidade dos sócios (em maior ou menor grau) pelas obrigações sociais, pois ele serve, em teoria, como contrabalanceamento legal à inexistência dessa responsabilidade45.

Em outras palavras, o capital social é conceito logicamente decorrente da limitação de responsabilidade dos sócios e não da personalidade jurídica - daí também ser ele (e seu

41 Cf. Tullio Ascarelli, Problemas..., cit., p. 461. De fato, como conciliar a ideia de que a organização social

dependa das características e qualidades individuais de seus membros com a noção de que eles podem mudar incessantemente e sem qualquer formalidade?

42 No original: “die gedankliche Abgrenzung des unternehmensgebundenes Sondervermögens und die

Aufbringung eines angemessenen Kapitals ist Voraussetzung der vollständigen Entlassung der Mitglieder aus ihrer Verantwortung”. Cf. Herbert Wiedemann, op. cit., p. 203. O mesmo autor, na página 536, menciona que a limitação da responsabilidade dos sócios cria uma muralha da China entre o patrimônio social e particular.

43 Cf. Tullio Ascarelli, Problemas..., cit., p. 465. Afirmativamente também Philomeno J. da Costa, op. cit., p.

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“O problema da limitação da responsabilidade, nas sociedades comerciais, tem a ver com a constituição de um patrimônio separado ou autônomo, que passará a suportar com exclusividade a ação dos credores, nos limites de sua constituição, de acordo com a disciplina legalmente estabelecida para preservar sua