O termo dispositivo emerge no âmbito do pensamento foucaultiano na História da
sexualidade – a vontade de saber (2014, [1976]), juntamente com suas primeiras análises sobre a
biopolítica. Na trajetória arqueogenealógica de Foucault não há uma definição explícita do
dispositivo. Porém, é possível compreendê-lo a partir de uma entrevista do ano de 1977, na qual
Foucault responde ao entrevistador o sentido e função “metodológica” atribuída ao dispositivo. Nesta
situação, ele caracterizou o dispositivo como a rede que se estabelece entre práticas discursivas e não-
discursivas, o tratando como um conjunto heterogêneo que engloba “[...] discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas.” (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 364).
De acordo com Deleuze (1988, p. 48), “Não é exagero dizer que todo dispositivo é um mingau
que mistura o visível e o enunciável.”; como é o caso do dispositivo do aprisionamento composto de
“[...] discursos, arquiteturas, programas e mecanismos.”. Entretanto, no dispositivo a multiplicidade
e não-relação do “visível” e do “enunciável” permanece (e durante toda arqueogenealogia). A
aparição desses componentes se dará dinamicamente, por exemplo: “como programa de uma
instituição”; “como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda”;
“como reinterpretação dessa prática” a fim de dar “um novo campo de acesso de racionalidade”; em
suma, há um jogo entre as visibilidades e as dizibilidades, na perspectiva de mudanças de forma e
funções (FOUCAULT, 2015 [1977], p. 364). Acrescenta-se a isso, o dispositivo é um tipo de
formação, de um determinado período histórico, que possui uma “função estratégica dominante”
(FOUCAULT, 2015 [1977], p. 365).
Para cumprir essa função estratégica cada dispositivo necessita de uma série de manipulações
das relações de poder, uma “[...] intervenção racional e organizada nessas relações de força, seja para
desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc...”
(FOUCAULT, 2015 [1977], p. 367). Então, a função estratégica do dispositivo é específica,
resultante das relações de poder e dos campos de saber. Foucault (2015 [1977], p. 367) é preciso: “É
isto o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentados por
eles.”.
A partir desta entrevista de Foucault, Agamben (2009, p. 29) sintetiza o dispositivo
foucaultiano em três pontos:
a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.” b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder.
c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e relações de saber.
Diante dessa caracterização, ainda, é necessário ressaltar que o termo dispositivo ocupa duas
funções imanentes no âmbito do pensamento de Foucault: é tanto um instrumento de análise, podendo
ser compreendido como uma “grade de inteligibilidade”; como também uma prática, atuando como
uma “ferramenta” na constituição de sujeitos (DREYFUS; RABINOW, 2013, p. 160-161). Estamos
diante do que Dreyfus e Rabinow (2013, p. 160) compreendem por “[...] uma palavra que convém à
sua noção pragmática de que os conceitos devem ser utilizados como ferramentas de análise, não
como fins em si mesmos.”. A “grade de inteligibilidade” pode ser pensada adotando a descrição de
Dreyfus e Rabinow (2013, p. 161 – grifos meus) que: “[...] A partir desses componentes díspares
[ditos e não-ditos], tentamos estabelecer um conjunto de relações flexíveis, reunindo-se em um único
aparelho, de modo a isolar um problema histórico específico.”. Porém, essa “máquina” possui efeitos
concretos na realidade, construindo sujeitos e objetos. Neste aspecto, Agamben (2009, p. 34-35 –
grifos meus) indica que o dispositivo “[...] parece remeter a um conjunto de práticas e mecanismos
(ao mesmo tempo linguísticos e não-linguísticos, jurídicos, técnicos e militares) que têm o objetivo
de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito mais ou menos imediato.”.
Seguindo com a análise do dispositivo como operador nevrálgico na arqueogenealogia
foucaultiana, Agamben (2009, p. 27) traça uma sumária genealogia do termo, verificando que
Foucault no período da Arqueologia do saber [1969] definia como objeto de suas pesquisas a
“positividade”. Esta nomenclatura na compreensão de Agamben (2009, p. 32) é apropriada por
Foucault do comentário que Hyppolite (“seu mestre”)
49faz da filosofia de Hegel que utiliza o nome
“positividade” para tratar do “[...] elemento histórico, com toda sua carga de regras, ritos e instituições
impostas aos indivíduos por um poder externo, mas que se torna, por assim dizer, interiorizada nos
sistemas das crenças e dos sentimentos.”. Porém, a utilização de “positividade” – que depois se
modifica para “dispositivo”
50– em Foucault difere de Hegel, pois as análises foucaultianas voltam-
se para a relação entre os sujeitos e o a priori histórico, passando a compreender o termo como “[...]
o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as
relações de poder” (AGAMBEN, 2009, p. 32 – grifo meu). A partir deste entendimento, Agamben
(2009, p. 33) indica que a análise foucaultiana pretende “[...] investigar os modos concretos em que
as positividades (ou os dispositivos) agem nas relações, nos mecanismos e nos ‘jogos’ de poder.”.
Em sua genealogia do dispositivo, Agamben (2009, p. 33) ratifica que o termo é um conceito técnico
essencial de Foucault, pois não se refere a alguma estratégia de poder, mas como um conceito
operativo de caráter geral: “Os dispositivos são precisamente o que na estratégia foucaltiana toma o
lugar dos universais.”
51.
No entanto, é necessária uma ressalva quanto a este “caráter geral” e esse “lugar dos
universais” atribuído ao dispositivo na arqueogenealogia. De acordo com Deleuze (1990, p. 158)
52, a
crítica foucaultiana a totalização da razão e das categorias universais deve ser pensada à luz do
dispositivo no âmbito da sua heterogeneidade – o próprio Agamben (2009) passa a analisar o
dispositivo por conta própria atribuindo a função “dessubjetivante”. Neste sentido, é a resposta dada
por Deleuze (1990, p. 162, grifo meu) ao filósofo Manfred Frank que atribuiu o papel de universal ao
termo dispositivo: “As linhas que compõem os dispositivos afirmam variações contínuas. Não há
mais universais, isto quer dizer que não há nada mais do que linhas de variação. Os termos gerais são
coordenadas cujo sentido é tão somente o de tornar possível a avaliação de uma variação contínua.”.
49 Foucault foi o sucessor de Hyppolite no Collège de France. Na aula inaugural intitulada A ordem do discurso (2012 [1970]) ele faz uma homenagem ao seu antigo professor mencionando como a produção intelectual dele, operando diversos deslocamentos na filosofia hegeliana, influenciou interrogações fundamentais aos problemas contemporâneos, para Foucault (2012 [1970], p. 73): “Somos numerosos os infinitamente devedores para com ele [Hyppolite].”.
50 De forma diferente Judith Revel (2011, p. 44) compreende “[...] a noção de dispositivo substitui pouco a pouco a noção de epistema”. Neste sentido, embora não afirme essa substituição (seja por positividade, seja por epistémê), Foucault (2015 [1977], p. 367) mencionou: “[...] o que chamo de dispositivo é algo muito mais geral que compreende a épistémè. Ou melhor, que a épistémè é um dispositivo especificamente discursivo, diferentemente do dispositivo, que é discursivo e não discursivo, seus elementos sendo muito mais heterogêneos.”.
51Chignola (2014, p. 10) critica essa passagem, mencionando: “[...] quando Agamben, no decorrer de sua palestra, qualifica o termo ‘dispositivo’ como o último universal presente em Foucault, isto não se justifica, pois, [...] passará a pensar por conta própria.”.
52 As citações diretas da conferência de Deleuze (1990) nominada ¿Qué es um dispositivo? [1985] são traduções livres do texto em espanhol.
Ante o apresentado é perceptível a importância assumida para o termo dispositivo na filosofia
de Foucault. Tanto que Deleuze (1990, p. 155) alicerçou nos três eixos interpretativos da ontologia
histórica de Foucault - o saber, o poder, e a subjetivação - à composição heterogênea do dispositivo,
mais especificamente em quatro dimensões: a dizibilidade (as práticas discursivas), a visibilidade (as
práticas não-discursivas), a invisibilidade e a indizibilidade (as relações de poder) e a subjetividade
(modos de ser sujeito). Para ele, o dispositivo é “[...] um conjunto multilinear, composto por linhas
de natureza diferente.”; linhas de visibilidade, enunciação, força, subjetivação, brecha, fissura,
fratura, “[...] que se entrecruzam e se misturam, acabando por dar uma nas outras, ou suscitar outras,
por meio de variações ou mesmo mutações de agenciamento.” (DELEUZE, 1990, p. 157-158).
Portanto, há variabilidade e ausência de constantes no dispositivo, sendo que “O uno, o todo, o
verdadeiro, o objeto, o sujeito não são universais, mas processos singulares, de unificação, de
totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação, imanentes a dado dispositivo.”
(DELEUZE, 1990, p. 158 – grifos meus).
Nesta perspectiva, o próprio sujeito para Foucault deve ser historicizado, ou seja, o
entendimento foucaultiano que o sujeito é construído, constituído, fabricado, é justamente pela sua
oposição à origem e suas categorias relacionadas a um sujeito fundante, pré-existente, constituinte ou
transcendental. Foucault (2015 [1977], p. 43) enfatiza: “É preciso se livrar do sujeito constituinte,
livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito
na trama histórica.”. Assim, da articulação saber-poder dos dispositivos e de sua função na produção
de sujeitos específicos, Butturi Junior (2016, p. 509) assevera:
O que chama atenção no conceito de dispositivo é, portanto, a centralidade que o conceito dá à produção da tríade poder-saber-sujeito no percurso da arqueogenealogia. Isso corresponde a dizer que o pertencimento ao dispositivo é a condição da ação e a possibilidade de deslocamento deste solo sobre o qual nos produzimos e que é a possibilidade de qualquer produção de si – mais ou menos livre.