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Do aspecto da política internacional, Olmo (1990) compreende que no final da década de

setenta, mas, sobretudo, na década de oitenta do século XX, é que emerge a “epidemia da cocaína”,

tendo em vista o aumento substancial do seu consumo dentre os norte-americanos. Hart (2014, p.

159) ressalta: “O tráfico da maconha sul-americana entrou em colapso, mas com o ônus da criação

do muito mais lucrativo comércio da cocaína”. Além da cocaína, a partir da metade da década de 80,

o crack começa a ser difundido internamente nos EUA, e como menciona Hart (2014, p. 183):

“Constantemente via nos jornais e na televisão matéria sobre a ‘epidemia do crack’ destruindo tudo

ao redor.”

Os enunciados raros da “epidemia das drogas”, amplamente difundida pela mídia desde a

emergência da “guerra às drogas” vêm a cumprir o seu papel como dispositivo, na produção de

sujeitos e objetivação das drogas. No caso do crack, Hart (2014, p. 184) menciona que: “[...] as

histórias assustadoras sobre uma droga que causava ‘vício imediato’ e provocava atos de violência

contribuíram para a disseminação do crack, e não para descrever de maneira fiel sua utilização na

maior parte do país”.

No Brasil, as três drogas ilícitas publicitadas frequentemente e contemporaneamente pela

mídia brasileira são a cannabis, a cocaína e o crack, embora como afirma Hart (2014, p. 159) “[...] a

cocaína em pó e o crack são qualitativamente a mesma droga”

76

. Essas três substâncias, também, são

as mais perseguidas no interior da guerra que pretende erradicá-las, inclusive, com o acréscimo do

“pânico” via discurso sanitário, sendo abordadas como “epidemias”. Porém, desde que o “modelo

bélico” emerge, o consumo dessas drogas está em ascendência. Hart (2014, p. 27) argumenta: “O

aumento de 3.500% nos gastos de combate às drogas entre 1970 e 2011 não teve o efeito no uso diário

de maconha, heroína ou qualquer tipo de cocaína.” É a visibilidade do dispositivo jurídico e midiático.

O que Foucault (2008 [1975]) mencionou sobre o fracasso da prisão como mecanismo do seu próprio

funcionamento, serve à “guerra às drogas”, do seu insucesso é realizada a “gestão diferencial dos

ilegalismos”. Os “delinquentes”, os ditos “traficantes”, são selecionados nas camadas mais pobres da

sociedade sendo aprisionados, quiçá assassinados: uma “delinquência útil e dominada”.

Outrossim, se Nixon foi quem declarou guerra às drogas, a sua consolidação se deu durante o

mandato de Reagan como presidente dos EUA, o qual adotou durante a década de oitenta inúmeras

posições de combate às drogas, aumentando drasticamente os investimentos financeiros nas polícias

e, por consequência, o aumento da repressão e dos encarceramentos (13

a

EMENDA, 2016). Isso

gerou, no âmbito interno dos EUA, o aprofundamento das desigualdades econômicas, que fez emergir

verdadeiro genocídio contra a comunidade negra e pobre, além do abuso das drogas ilícitas ter

76 Hart (2014, p. 159) explica que o crack é mais potente que a cocaína, mais pela forma de ingestão (fumada) do que pela substância em si: “A cocaína em pó é conhecida, do ponto de vista químico, como hidrocloreto de cocaína. Trata-se de um composto neutro (conhecido como sal), feito com a mistura de um ácido com uma base, no caso, a pasta-base de cocaína.

Essa forma de cocaína pode ser comida, cheirada ou dissolvida em água e injetada. O hidrocloreto de cocaína, contudo, não pode ser fumado, pois se decomporia no calor necessário para evaporá-lo. Para fumá-lo, é necessário remover quimicamente a parte de hidrocloreto, que de qualquer maneira não contribui para os efeitos da cocaína. O composto daí resultante é apenas a pasta-base de cocaína (também conhecida como crack), que pode ser fumada.”

intensificado (13

a

EMENDA, 2016). Por via reflexa, a política criminal de drogas dos EUA, cada vez

mais punitivista, passa a ser exportada para os países latino-americanos através da influência exercida

nas ditaduras de “segurança nacional”, e a criminalização se intensifica (13

a

EMENDA, 2016). De

acordo com Zaffaroni (2011, p. 51): “À medida que se aproximava a queda do muro de Berlim,

tornou-se necessário eleger outro inimigo para justificar a alucinação de uma nova guerra e manter

níveis repressivos elevados. Para isso, reforçou-se a guerra contra a droga”. Conforme menciona

Nilo Batista (1997, p. 143), “[...] os lucros da indústria do controle do crime são tributários da política

criminal adotada”, ao passo que, declarar a guerra às drogas possibilitou aos EUA o redirecionamento

das frustações orçamentarias decorrentes do fim da guerra fria.

No âmbito interno brasileiro, há deslocamentos operados no discurso jurídico-legal sobre as

drogas na passagem do período ditatorial para a redemocratização do país. As disposições legais com

caráter de censura são revogadas com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988,

estabelecendo no artigo 5

o

, inciso IX que: “[...] é livre a expressão da atividade intelectual, artística,

científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (BRASIL, 1988). Sem

embargo do banimento da censura pela nova constituição, a população brasileira permaneceu

sofrendo arbitrariedades em marchas de oposição à criminalização das drogas, devido às

interpretações autoritárias dadas ao tipo penal de “apologia ao crime”, previsto no artigo 287, do

Código Penal (BRASIL, 1940). O direito de manifestar-se e debater livremente a respeito da

descriminalização e da legalização das drogas só foi efetivado pela via judicial após o Supremo

Tribunal Federal enfrentar o tema das “marchas da maconha” no ano de 2011, julgando procedente a

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n

o

187:

[...] para dar, ao art. 287 do Código Penal, com efeito vinculante, interpretação conforme à Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos”.

Como se percebe, a discussão sobre as drogas, mesmo em tempos democráticos, ainda é

objeto do dispositivo jurídico, via repressão, do dispositivo médico, via cura e cuidado em relação ao

vício e, ainda, de um dispositivo midiático de prevenção panóptica generalizada as práticas punitivas

e disciplinares contra os novos subversivos, os “sujeitos-traficantes”. De acordo com Karam (2014,

p. 165), a guerra contra as drogas não é, portanto, uma guerra contra substâncias, mas contra sujeitos.

No caso brasileiro, os inimigos desta guerra são “[...] os produtores, comerciantes e consumidores

pobres, não brancos, marginalizados, desprovidos de poder”. Esse controle e vigília via repressão-

violência aos anormais mais vulneráveis da população brasileira recorrem, como tentamos mostrar

até aqui, ao “ubuesco”. Assim, o título constitucional “direitos e garantias fundamentais” (que deveria

ocupar o papel de proteção individual) potencializa a repressão aos sujeitos que praticarem o crime

de tráfico, conforme disposição do inciso XLIII, do artigo 5

o

:

[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como

crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo

evitá-los, se omitirem. (BRASIL, 1988, grifos meus)

Nesta perspectiva, o discurso jurídico-legal passa a considerar o crime de tráfico de drogas

equiparado aos crimes hediondos, produzindo diversos efeitos de vigília e punição nos sujeitos

capturados pelo dispositivo jurídico, especificamente no campo do direito penal, do processual penal

e da execução penal, aos moldes descritos por Foucault. A Constituição Federal como linha discursiva

do dispositivo jurídico não modificou a estratégia do poder sobre a questão das drogas, como era

esperado por “[...] movimentos político-criminais e criminológicos críticos que viam a Constituição

como freio” (CARVALHO, 2013, p. 104); ao contrário, manteve o discurso de combate dos tempos

ditatoriais, potencializando o viés repressivo, consequentemente, ratificou o “modelo bélico” que

Nilo Batista (1997) também denominou de “política criminal com derramamento de sangue”.

Rapidamente

77

, em menos de dois anos, emerge a lei complementar prevista no artigo 5

o

,

XLIII, da Constituição Federal, excedendo os seus termos, sendo promulgada a Lei 8.072, de 25 de

julho de 1990, denominada Lei dos crimes hediondos, passando a proibir a fiança, a graça e a anistia

aos crimes hediondos

78

ou a eles equiparados (como é o caso do tráfico de drogas). Também

77 Se a Lei dos crimes hediondos como lei complementar à Constituição Federal (Art. 5o, XLIII, CF) foi ligeiramente aprovada pelo legislativo nacional, tema constante na Constituição Federal que envolve a distribuição de renda como é o caso da taxação das grandes riquezas (art. 153, VII, CF), ainda não foram objeto de lei complementar pelo legislativo, não produzindo quaisquer efeitos (BRASIL, 1988). Esse exemplo mostra minimamente a estratégia de governo adotada após Constituição Federal, no qual, em tempos democráticos ainda se dá preferência pelo discurso de repressão e vigília da população, ao invés de priorizar o discurso de distribuição das riquezas e a diminuição da desigualdade social. 78 No artigo 1o, da Lei 8.072/1990, encontra-se o rol dos crimes hediondos:

“Art. 1º São considerados hediondos os crimes de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine ), extorsão qualificada pela morte, (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270, combinado com o art. 285), todos do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), e de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentados ou consumados” (BRASIL, 1990).

Atualmente o rol de crimes hediondos foi aumentado significativamente, ocorrendo várias alterações no transcurso do tempo, passando a vigorar o artigo 1o da seguinte forma:

“Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 1994) (Vide Lei nº 7.210, de 1984) I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI); (Redação dada pela Lei nº 13.104, de 2015)

inviabilizou o direito de liberdade provisória (art. 2

o

, II), o indulto (art. 2

o

, I), a progressão de regime

(art. 2

o

, §2

o

), bem como ampliou os prazos da prisão temporária (art. 2

o

, §3

o

) e o tempo para desfrutar

do livramento condicional (art. 5

o

) (BRASIL, 1990). Dito de outro modo, o discurso jurídico-legal

aumentou significativamente a permanência no interior do cárcere do “sujeito-traficante”. O

enrijecimento da pena aparece, sobretudo, no âmbito do que Foucault (2008 [1975]) denominou

“carcerário”, pois, as alterações da Constituição Federal e da Lei dos crimes hediondos encontram-se

na contramão do sistema progressivo de cumprimento de pena adotado no Brasil pela Lei 7.210/1984,

denominada Lei das execuções penais (BRASIL, 1984). Nesse sentido, os condenados por crimes

hediondos ou equiparados foram obrigados a cumprir integralmente a pena no regime fechado. Isso

significava que, para o “sujeito-traficante” (um comerciante de drogas ilícitas) o cumprimento da

pena de prisão deveria se dar integralmente no regime fechado, enquanto que outros presos,

condenados por crimes comuns, como, por exemplo, o roubo e o homicídio simples, que envolvem

violência e/ou grave ameaça a outros seres humanos, teriam direito a progredir de regime (fechado,

semi-aberto e aberto) - desde que cumprissem o lapso temporal de 1/6 da pena em cada regime e

possuíssem conduta satisfatória (art. 112, da Lei 7.210/1984).

Além disso, outra previsão constitucional “ubuesca” chama atenção, no mesmo título,

“Direitos e garantias fundamentais”. E, especificamente no artigo 5

o

, inciso LI, é disposto que: “[...]

nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII); (Redação dada pela Lei nº 13.142, de 2015)

I-A – lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição; (Incluído pela Lei nº 13.142, de 2015) II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o); (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o); (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o). (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

VII-A – (VETADO) (Inciso incluído pela Lei nº 9.695, de 1998)

VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998). (Inciso incluído pela Lei nº 9.695, de 1998)” (BRASIL, 1990).

VIII - favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º). (Incluído pela Lei nº 12.978, de 2014)

Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, tentado ou consumado. (Parágrafo incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,

na forma da lei”. A exceção constitucional que remete à soberania do país em relação aos seus

cidadãos demonstra a diferenciação de tratamento político dado ao crime de tráfico de drogas, já que

a prática do tráfico de drogas durante a naturalização é o único crime que possibilita extradição de

brasileiro naturalizado.

Como tentamos descrever, o discurso jurídico-legal descreve uma curva em ascendente quanto

à repressão ao tráfico de drogas, seja em nível local ou mundial. Para essa repressão, a estrutura da

prisão tornou-se indispensável e obrigatória, naqueles moldes descritos por Foucault (2008 [1975]).

Desde que emerge a criminalização do tráfico de drogas, a legislação brasileira permanece utilizando-

se do tempo carcerário (cada vez maior) como instrumento punitivo, mas, também, para a “gestão

dos ilegalismos” e formação dos “delinquentes” via dispositivo carcerário – o que aqui temos descrito

como “sujeitos-traficantes” (CARVALHO, 2013, p. 250-255).

As disposições repressivas advindas com a Constituição Federal de 1988 no Brasil se

harmonizam com o discurso global, especialmente da Convenção das Nações Unidas (ONU) contra

o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena),

promulgado no Brasil através do Decreto 154, de 26 de junho de 1991. Trata-se de nova convenção

internacional que dispõe de regras repressivas e proibicionistas contra o tráfico de drogas,

complementando as outras convenções internacionais de 1961, 1971 e 1972 já mencionadas sobre o

tema, e consolidando definitivamente a política criminal de combate às drogas globalmente. Os

enunciados da convenção abordam a questão das drogas em termos de repressão, combate e

extermínio, e o “pânico moral” é espalhado logo no preâmbulo:

Profundamente preocupadas com a magnitude e a crescente tendência da produção, da demanda e do tráfico ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, que representam uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar dos seres humanos e que têm efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade,

Profundamente preocupadas também com a sustentada e crescente expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela exploração de crianças em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condição de instrumentos utilizados na produção, na distribuição e no comércio ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, o que constitui um perigo de gravidade incalculável. (BRASIL, 1991)

Como tentamos descrever, o dispositivo jurídico no Brasil quanto à repressão do tráfico de

drogas é composto do discurso da Organização das Nações Unidas através de vários de seus tratados

internacionais (1961, 1971, 1972 e 1988), os quais possuíram papel importante na globalização da

“guerra contra as drogas”. Em 1998, conforme lembra Karam (2014, p. 162), esta organização em

Seção Especial da Assembleia-Geral (UN-GASS) “[...] tomada por delirante euforia, [prometeu] um

mundo sem drogas em dez anos”, lançando uma campanha com o slogan A Drug-Free World – We

Can Do It

79

, cuja pretensão era a extinção das drogas ilícitas em todo território mundial até 2008.

Parece desnecessário afirmar o fracasso desta campanha, assim como tantas outras que insistem em

aparecer focadas na extinção das drogas via repressão, como no caso que mencionamos no início do

presente trabalho do Ministro da Justiça brasileiro, que em pleno ano 2016 anuncia campanha de

segurança pública para erradicar a cannabis do território nacional. Neste aspecto, Hart (2014, p. 205)

é explícito: “Até onde sabemos, os seres humanos tentam alterar seu estado de consciência com

agentes psicoativos (não raro extraído de plantas) desde que habitam o planeta, e é provável que essas

tentativas não tenham fim”.

O modelo bélico de governamentalidade das drogas permanece, mesmo em tempos

democráticos, utilizando o dispositivo jurídico, e as estratégias do poder via repressão e erradicação

das drogas para a “gestão dos ilegalismos”. Neste sentido, o caminho percorrido pela guerra,

conforme menciona Zaffaroni (2011, p. 52) e que complementamos com Foucault, é a docialidade,

reclusão e construção de uma “delinquência” traduzida na anormalidade dos “traficantes” e na

ameaça social das drogas, o que, acarretou na criação de economias complementares em termos de

comércio e distribuição em torna das drogas e dos modos para sua repressão, que se traduzem em

valores monetários estratosféricos.

Nessa luta discursiva, no entanto, o discurso que o dispositivo midiático faz funcionar é de

“traficantes” ricos, milionários, ostentando mansões, carros de luxo e joias raras, colocando em voga

figuras como Pablo Escobar, Fernandinho Beira-Mar, Marcola, e mais uma meia dúzia de sujeitos.

Quanto às estratégias estatais de controle do crime, há inúmeras medidas de

governamentalidade: os altos orçamentos do judiciário, das polícias, dos centros de tratamento, dos

hospitais psiquiátricos, do penitenciário, dentre inúmeros outros. Essa “gestão dos ilegalismos” via

criação de uma “delinquência” aos moldes propostos por Foucault é descrita por Zaccone (2011, p.

129) no dispositivo das drogas ilícitas:

[...] o negócio ilícito das drogas concentra o capital junto às atividades legais (mercado financeiro, empresas de lavagem de dinheiro etc.), ao passo que a repressão estatal se concentra na parte mais débil do mercado ilícito, ou seja, naquelas pessoas que não podem oferecer resistência aos comandos de prisão.

Neste arquivo legal, novas duas leis emergem, influenciando a política criminal de drogas,

sobretudo, a despenalização do “sujeito-dependente”. Na Lei 9.099, de 1995, são estabelecidos

benefícios processuais (transação penal – art. 76 – e suspensão condicional do processo – art. 89) que

freiam o processo penal e uma possível punição carcerária (BRASIL, 1995); enquanto que a Lei

9.714, de 1998, modifica o Código Penal no artigo 43 e seguintes, possibilitando em caso de

condenação a conversão da prisão em penas restritivas de direitos (BRASIL, 1998). Essas novas

medidas quase sempre são aplicáveis aos sujeitos processados criminalmente pelo delito de consumo

próprio (art. 16, Lei 6.368/1976), acarretando a prisão do “sujeito-dependente” tornar-se uma

exceção.

Destarte, olhar o arquivo do discurso jurídico-legal no Brasil ratifica a hipótese afirmada por

Zaffaroni (2011), Carvalho (2013), Olmo (1990), N. Batista (1997) e Zaccone (2011), a saber: no

final do século XX, o “sujeito-traficante” passa a ocupar o papel de inimigo a ser combatido.