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Com a emergência desse discurso bélico de repressão às drogas há uma espécie de acúmulo

legislativo sobre a matéria (CARVALHO, 2013, p. 62-63). A Lei 4.451, de 04 de novembro de 1964,

acresce ao artigo 281, do Código Penal o verbo “plantar” e o Decreto-Lei 159, de 10 de fevereiro de

1965, adequando-se ao compromisso internacional de repressão às drogas, equipara as “substâncias

capazes de causar dependência física ou psíquica” às “substâncias entorpecentes”. Frisa-se que,

conjuntamente com a prática bélica, é “internalizado” no discurso jurídico-legal brasileiro o conceito

contemporâneo de droga como “toda substância capaz de causar dependência”. Conforme

mencionam Cabalero e Bisiou (2000, p. 6 apud GRECO FILHO, 2009, p. 7): “A busca de uma

definição suscetível de ser aplicada a todas as drogas ilícitas conduziu as autoridades sanitárias à

extensão de um conceito aplicável a todas as drogas lícitas”.

Em 13 de dezembro de 1968, o Brasil é tomado pelo momento de maior repressão da Ditadura

Militar, sendo editado o Ato Institucional n

o

05 (AI-5), que dentre outras permissividades arbitrárias,

possibilitava ao Presidente da República “decretar a intervenção nos estados e municípios”,

“suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos”, “cassar mandatos

eletivos federais, estaduais e municipais”, assim como “suspendia a garantia de habeas corpus, nos

casos de crimes políticos, de ordem econômica e social e a economia popular” e “excluía da

apreciação judicial os atos praticados de acordo com o ato institucional e seus atos complementares”

(BRASIL, 1968a). Alguns dias depois da publicação do AI-5, é publicado o Decreto-Lei 385, de 26

de dezembro de 1968: indo na contramão da “ideologia da diferenciação” e deslocando os discursos

sobre as substâncias ilegais e os sujeitos “criminosos”, alterando a redação do artigo 240, do Código

Penal de 1940, estabelecia a mesma punição para o tráfico e para o uso próprio de drogas, passando

a criminalizar a conduta do “uso próprio” no parágrafo único, inciso III: “[...] traz consigo, para uso

próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.” (BRASIL,

1968b).

Três anos depois, entra em vigor a Lei 5.726, de 29 de outubro de 1971, “realizando

definitivamente a descodificação da matéria”, adequando-se às orientações internacionais sobre a

proibição das drogas (CARVALHO, 2013, p. 67). Catão e Fragoso (1975, p. 18) afirmam no período

de vigência da nova lei que: “A legislação brasileira é considerada das mais repressivas.”. Para

justificar essa repressão, o dispositivo midiático ganha espaço, a partir da década de setenta do século

XX, passando a ser utilizado como estratégia de espalhar “[...] ‘o ‘pânico’ em torna da droga’ na

América Latina” (OLMO, 1990, p. 56). Da ótica da criminalização, o novo regramento mantém como

crime o uso, o comércio e a indução ao uso das drogas, aumentando a pena máxima para 06 anos,

acrescentando o verbo “oferecer” como conduta criminalizada. A lei também cria o “crime de

quadrilha ou bando de dois”. Observemos como ficou a criminalização da matéria presente no artigo

23 da nova legislação:

Art 23. O artigo 281 e seus parágrafos do Código Penal passam a vigorar com a seguinte redação:

COMÉRCIO, POSSE OU USO DE ENTORPECENTE OU SUBSTÂNCIA QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 6 anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:

MATÉRIAS-PRIMAS OU PLANTAS DESTINADAS à PREPARAÇÃO DE

ENTORPECENTES OU DE SUBSTÂNCIAS QUE DETERMINEM DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

I - importa ou exporta, vende ou expõe à venda ou oferece, fornece, ainda que a título gratuito, transporta, traz consigo ou tem em depósito, ou sob sua guarda, matérias-primas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determinem dependência física ou psíquica;

CULTIVO DE PLANTAS DESTINADAS à PREPARAÇÃO DE ENTORPECENTES OU DE SUBSTÂNCIAS QUE DETERMINEM DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA. II - faz ou mantém o cultivo de plantas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determinem dependência física ou psíquica;

PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE OU QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;

AQUISIÇÃO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE OU QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

IV - adquire substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.

PRESCRIÇÃO INDEVIDA DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE OU QUE

DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

§ 2º Prescrever o médico ou dentista substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, ou em dose evidentemente maior que a necessária ou com infração do preceito legal ou regulamentar:

Pena - detenção, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de 10 (dez) a 30 (trinta) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.

§ 3º Incorre nas penas de 1 (um) a 6 (seis) anos de reclusão e multa de 30 (trinta) a 60 (sessenta) vêzes o valor do maior salário-mínimo vigente no País, quem:

INDUZIMENTO AO USO DE ENTORPECENTE OU DE SUBSTÂNCIA QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

I - instiga ou induz alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica;

LOCAL DESTINADO AO USO DE ENTORPECENTE OU DE SUBSTÂNCIA QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

II - utiliza o local, de que tem a propriedade, posse, administração ou vigilância, ou consente que outrem dêle se utilize, ainda que a título gratuito para uso ilegal de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica;

INCENTIVO OU DIFUSÃO DO USO DE ENTORPECENTE OU SUBSTÂNCIA QUE DETERMINE DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

III - contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica.

FORMA QUALIFICADA.

§ 4º As penas aumentam-se de 1/3 (um têrço) se a substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica é vendida, ministrada, fornecida ou prescrita a menor de 21 (vinte um) anos ou a quem tenha, por qualquer causa, diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação. A mesma exasperação da pena se dará quando essas pessoas forem visadas pela instigação ou induzimento de que trata o inciso I do § 3º. BANDO OU QUADRILHA.

§ 5º Associarem-se duas ou mais pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer qualquer dos crimes previstos neste artigo e seus parágrafos.

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País.

§ 6º Nos crimes previstos neste artigo e seus parágrafos, salvo os referidos nos § 1º, inciso III, e 2º, a pena, se o agente é médico, dentista, farmacêutico, veterinário ou enfermeiro, será aumentada de 1/3 (um têrço).

FORMA QUALIFICADA.

§ 7º Nos crimes previstos neste artigo e seus parágrafos as penas aumentam-se de 1/3 (um têrço) se qualquer de suas fases de execução ocorrer nas imediações ou no interior de estabelecimento de ensino, sanatório, unidade hospitalar, sede de sociedade ou associação esportiva, cultural, estudantil, beneficente ou de recinto onde se realizem espetáculos ou diversões públicas, sem prejuízo da interdição do estabelecimento ou local, na forma da lei penal.

O excerto é extenso, mas importante. Embora criminalize a conduta do “uso pessoal”, no seu

artigo 9

o

, estabelece que para os “[...] viciados em substâncias entorpecentes ou que determinem

dependência física ou psíquica” que praticarem quaisquer das condutas previstas no artigo 281, e seus

parágrafos, do Código Penal, são aplicáveis medidas de recuperação, qual seja: tratamento

psiquiátrico pelo tempo necessário à sua recuperação (BRASIL, 1971, grifos meus). Para o usuário

eventual (não viciado) e o experimentador a criminalização é equiparada ao “traficante”, sendo

mantida a pena de prisão (ZACCONE, 2011, p. 91).

Desta forma, é retomada na legislação pátria a “ideologia da diferenciação”, porém, como

afirma Carvalho (2013, p. 67) “[...] o fato de não mais considerar o dependente como criminoso

escondia faceta perversa da Lei, pois continuava a identificar o usuário ao traficante”. Logo, a “gestão

dos ilegalismos” e a existência dos estereótipos de “sujeito-dependente” e “sujeito-traficante” tinha

caráter decisivo nestes enquadramentos subjetivos da biopolítica presente no dispositivo da guerra ao

tráfico. O maniqueísmo e a prática divisora entre “traficante” e “dependente” aparecem na análise

realizada pelo juiz Cruz (1973, p. 6) ao introduzir seu escrito sobre a Lei 5.726, de 29 de outubro de

1971, alertando: “Os mais fracos tombam, sob o sacrifício das ilusões prometidas pelos mercadores

da desgraça e mergulham fundo no abismo do vício.”; mais adiante ele apresenta sua crítica: “Nesse

passo, os Juízes clamam pela modificação da lei, de modo a proporcionar ao primário, ao simples

experimentador, um tratamento mais brando”. Da perspectiva da construção dos estereótipos, Vera

Batista (2003, p. 88) ao analisar 39 processos do ano de 1973 do Juizado da Infância do Rio de Janeiro,

destaca que 17 eram jovens brancos de classe média, aos quais se aplicou a pena de acordo com o

discurso médico-psiquiátrico: “[...] o ‘estereótipo médico’ [dependente] através da estratégia dos

atestados médicos particulares que garantem a pena fora dos reformatórios”.

Além disso, no artigo primeiro da Lei 5.726/1971 há uma incitação panóptica generalizada,

numa estratégia nítida de governamentalidade, aparece implicando a população à guerra, já que é

“[...] dever de tôda pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias

entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica.” (BRASIL, 1971, grifos meus). De

acordo com Silva (1973, p. 96), o artigo primeiro “[...] veio bem a propósito: ou todos nós nos unimos

para combater a toxicomania, ou ela dará cabo de todas as nossas esperanças e das esperanças de

outras gerações futuras.”. Ao mesmo tempo, o artigo 24, é descrito da seguinte forma: “Considera-se

serviço relevante a colaboração prestada por pessoas físicas ou jurídicas no combate ao tráfico

e uso de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.” (BRASIL,

1971, grifos meus). Novamente, a guerra contra as drogas vai se constituindo como um conjunto de

estratégias policiais em que as práticas de visibilidade têm papel central – o que vai incluir, como

afirmamos, o dispositivo midiático.

É desse “campo subjetivo” presente nos artigos mencionados que Vera Batista (2003, p. 87-

88) afirma ser a principal modificação da Lei 5.726, de 25 de outubro de 1971, trazendo ao direito

penal “[...] as cores sombrias da Lei de Segurança Nacional e a repressão sem limites que era imposta

aos brasileiros, no período mais agudo da ditadura militar.”. A prática da época estava intimamente

relacionada com o saber médico: a “droga” era um vírus, uma “epidemia” a ser combatida (OLMO,

1990). Para Nilo Batista (1997, p. 139), o artigo primeiro, ao determinar o tratamento de dever de

“combate” a todos quanto às drogas representa tanto o olhar “bélico” assumido pela lei quanto à

conversão de “[...] qualquer opinião dissidente da política repressiva numa espécie de cumplicidade

moral com as drogas.”.

Outra disposição legal peculiar é a utilização dos estabelecimentos de ensino no “combate” às

drogas, na modalidade de uma pedagogia de vigilância, à Foucault. Alfredo Buzaid (1971 apud

CRUZ, 1973, p. 14), ministro da justiça do Brasil na época, na exposição dos motivos da nova

legislação afirmou: “Fundamental pareceu-nos, outrossim, a colaboração dos estabelecimentos de

ensino no esclarecimento da juventude sobre os males do consumo de tóxicos.”. Para isso, a lei dispôs

que no início de cada ano letivo seriam ministrados cursos para educadores com o objetivo do

“combate”, no âmbito escolar, ao tráfico e uso de drogas (art. 5

o

); também durante o ano letivo

deveriam ser organizadas conferências de frequência obrigatória para alunos e facultativa para os

pais, sobre os malefícios causados pelas drogas (art. 6

o

); os diretores dos estabelecimentos de ensino

adotariam todas as medidas que fossem necessárias à prevenção do tráfico e uso no âmbito escolar, e

ficariam obrigados a comunicar às autoridades sanitárias os casos de uso e tráfico no âmbito escolar,

sob pena de perda do cargo (art. 7

o

, par. único); e o aluno que fosse encontrado trazendo consigo

qualquer tipo de droga (para tráfico, para uso ou para induzir outrem) teria sua matrícula trancada no

ano letivo (art. 8

o

) (BRASIL, 1971).

A leitura deste discurso jurídico-legal à luz das disciplinas e da governamentalização de

Foucault torna perceptível a utilização da instituição escolar no intuito da fabricação dos “corpos

dóceis e úteis”, por um lado, e de táticas de segurança do corpo da população, segundo os regramentos

e o governo da vida. O “combate” às drogas estava, ainda, no compasso dos princípios da Ditadura

Militar, justamente pelo consumo na época estar intimamente relacionado aos movimentos

contraculturais contrários às políticas bélicas que tinham papel central na política estatal do Ocidente.

Da perspectiva do espraiamento das disciplinas via microfísica de poder no corpo social, Vera

Batista (2013, p. 90) menciona que a nova legislação passa a ser assunto da esfera da segurança

nacional, aumentando a repressão e também o número de processos iniciados por delação: “O número

de evolvidos por denúncia anônima é grande, bem como o número de detidos em blitze, o que se

coaduna com o Estado policial e o autoritarismo daqueles dias.”. Ela chama a atenção para um dos

processos que analisou do Juizado dos Menores do Rio de Janeiro. Trata-se de um pai que “leva ao

pé da letra” os artigos 1

o

e 24, da Lei 5.726, de 29 de outubro de 1971, denunciando o próprio filho à

polícia, tendo declarado ao Juiz de Menores o seguinte:

[...] é pai de oito filhos, que suspeitou que seu filho estivesse envolvido em alguma coisa desagradável, no entanto não suspeitava ser o que era, que há alguns dias, quando seu filho saiu, o declarante revistou a roupa do mesmo e encontrou certa quantidade de maconha; compareceu ao 5º Setor de vigilância e solicitou uma providência; é sujeito honesto, cumpridor de seus deveres e lamenta o fato de ter um de seus filho envolvido em tal fato, no entanto tomou a melhor providência que achou plausível. (Processo no 189 – caixa 170-200 – ano 1973 – Arquivo da 2ª Vara J.M.R.J.). (V. BATISTA, 2003, p. 90)

As alterações no discurso jurídico-legal realizadas pela Lei 5.726, de 29 de outubro de 1971,

na criminalização do tráfico, do uso, e da instigação ao uso de drogas, estavam em consonância com

as diretrizes propostas pela Ditadura Militar, sobretudo, pelas justificativas apresentadas no AI-5:

[...] se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária. (BRASIL, 1968A)

Essas medidas são contra o “inimigo interno”, espécie de racismo foucaultiano dessa luta. O

inimigo passa a ser concebido tanto pela estratégia comunista quanto pela questão das drogas: é uma

confusão de crimes político-comuns. Carvalho (2013, p. 74) expõe essa relação na criação de

subjetividades perigosas e na manutenção dos discursos da segurança e do risco: “A estrutura da

política de drogas requeria, portanto, reformulação: ao inimigo interno político (subversivo) é

acrescido o inimigo interno político-criminal (traficante).”. Por sua vez, Zaccone (2011, p. 98)

acrescenta: “Um ‘comunista’, um ‘traficante’ e um ‘maconheiro’ representavam o mesmo perigo para

os valores estabelecidos pela ditadura militar, período em que a heresia se expressava na

insubordinação.”. Como gostaria Foucault (2010 [1976]), as estratégias de racialização e exclusão

são adensadas e requerem práticas de esquadrinhamento, vigilância e reclusão para os sujeitos, além

da produção de saberes médicos, jurídicos e midiáticos acerca desses novos objetos.

Observe-se uma confusão conceitual que produz as estratégias de “vigilância hierárquica” das

disciplinas e as regulações do governo biopolítico. Coblin (uma alta patente militar da época)

discursava que: “[...] o ‘uso de tóxicos’ – ao lado, claro está, do ‘amor livre’ – constitui tática da

guerra revolucionária contra a ‘civilização cristã’.” (COMBLIN, 1978, p. 48 apud N. BATISTA,

1997, p. 138). Por este excerto, podemos observar os discursos supostamente propagados para a

regulação biopolítica da população. As linhas de visibilidade e dizibilidade do dispositivo midiático,

neste período, eram estrategicamente formuladas pelo próprio governo autoritário e militar que

detinha o monopólio da informação via censura, possuindo forte influência da governamentalidade

norte-americana, sendo que a produção legislativa brasileria, conforme afirma Nilo Batista (1997, p.

140) “[...] absorveu a ideia de que a generalização do contato de jovens com drogas deveria ser

compreendida, no quadro da guerra fria, como uma estratégia do bloco comunista, para solapar as

bases morais da civilização cristão ocidental”.

Nesta perspectiva, Vera Batista (2003, p. 88) acrescenta que a Lei 5.726, de 1971 “[...]

sintetiza o espírito das primeiras campanhas de ‘lei e ordem’ em que a droga era tratada como inimigo

interno.”. Deste modo, as medidas de governo ao não separar os movimentos subversivos e de guerra

revolucionária (comunistas) e todos os sujeitos envolvidos com as drogas (sejam “traficantes”, sejam

“usuários”), se coaduna com a estratégia de poder adotada, especialmente do tratamento como

“inimigo interno”, a raça a que se deve atentar para purificar a população normal.

Vera Batista (2003, p. 84-85) ao analisar os arquivos do DOPS (Departamento de Ordem

Política e Social do Brasil), menciona um deles que foi intitulado “Tóxicos e Subversão”, um “[...]

documento oficial, um artigo sobre a toxicomania como arma dos comunistas. Citando Lênin, Mao e

Ho Chi Min, atribui-se a disseminação do uso de drogas a uma estratégia comunista para a destruição

do mundo ocidental.”. Trata-se da “teoria” do Pacto de Pequim que afirmava que “[...] a China estaria

envenenando estrategicamente o Ocidente com heroína.” (CARVALHO, 2013, p. 70). A tentativa do

Brasil em “importar” modelos repressivos norte-americanos é de tamanha incongruência, porém

positiva em seus efeitos: sequer existiu no Brasil uma onda de consumo de heroína (diferente do que

aconteceu nos EUA). No período, era quase unanimidade as apreensões de cannabis, tanto que Catão

e Fragoso (1975) ao analisarem todos os processos com apreensão de drogas no Rio de Janeiro do

ano de 1974 verificaram que 92,4% dos casos a apreensão era exclusivamente de cannabis.

Interessava, todavia, produzir e fazer funcionar uma tecnologia “ubuesca” de estigmatização e de

produção de “delinquência”.

75

75 Vera Batista (2003, p. 85) cita outro arquivo do DOPS, um “bloco de documentos com relatórios e recortes de jornal” sob o título “Comando Vermelho”, no qual tenta-se “[...] difundir a idéia de que a esquerda se infiltra no crime, que passa a se organizar mais.”. De acordo com Carvalho (2013, p. 70), a utilização destas “teorias” do “inimigo interno”

Em tempos ditatoriais, o proibicionismo das drogas no Brasil passa a ser concebido como um

“modelo bélico”, servindo para a vigília e reclusão dos seus inimigos. É este dispositivo que parece

ainda marcar os discursos sobre o tráfico, as drogas e o “sujeito-traficante”.