No prefácio de As palavras e as coisas Foucault (2007 [1966], p. IX) cita uma certa
enciclopédia chinesa de um conto do Borges, na qual:
[...] os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c)
domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na
presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um
pincel muito fino de pêlo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de
longe parecem moscas.
A leitura desta taxonomia causa desordem ao pensamento, justamente pela limitação
ocasionada quando se torna impossível estabelecer o lugar-comum nos animais listados, a não ser na
própria classificação que os enuncia. O que compartilham, por exemplo, as “sereias” e os
“embalsamados” para serem colocados na mesma classificação animal? O “atlas do impossível” de
Borges retira a superfície, o lugar-comum, no qual as coisas efetivamente poderiam ser colocadas
lado a lado. Isso possibilita refletir em quantas outras desordens e quantos outros entes estão dispostos
em pontos tão distintos que se torna impossível encontrar o seu espaço comum.
No entanto, para toda classificação refletida há necessidade de um “caráter prévio”, de uma
ordem, que emergirá critérios de diferença e semelhança. O conceito de epistémê é utilizado por
Foucault como um espaço desta ordem, “uma experiência nua da ordem”, que manifesta “os modos
de ser da ordem”, ou seja, o lugar-comum dos saberes de cada época (FOUCAULT, 2007 [1966],
XVII e XVIII). Para Esther Díaz (2012, p. 10) Foucault preocupa-se com a “[...] disposição das coisas
tratando de descobrir segundo que parâmetro, a partir de que ponto de vista – afinal, mediante que
‘grade’ – se olha, em uma época determinada, para que sejam encontradas semelhanças ou afinidades
entre certas coisas.”. A epistémê, portanto, são as características comuns que os saberes de
determinada época compartilham, um a priori histórico (FOUCAULT, 2007 [1966], XVIII).
A criação do conceito de epistémê
38 em As palavras e as coisas desloca o pensamento de
Foucault para o âmbito do saber, o qual é tematizado em A arqueologia do Saber e não se confunde
com uma disciplina, uma ciência, um esboço de ciência ou alguma forma que exclua desde o início a
cientificidade. Para Foucault (2014 [1969], p. 221), o saber “[...] não está contido apenas em
demonstrações; pode estar também em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais,
decisões políticas.”; ou como referido por Butturi Junior (2008, p. 91): “[...] tanto formas literárias
quanto formalismo científico, tanto as frases cotidianas quanto a ausência de obra da loucura
adquiririam o mesmo valor enquanto enunciados”. Deste modo, a análise de Foucault dos saberes não
está ligada ao âmbito de uma racionalidade específica e estática, ou na configuração dos fundamentos
de determinada teoria. Nesta perspectiva, Machado (2007) assevera que todo saber tem uma
positividade, e por isso, a análise constitui-se a partir de uma ordem interna do próprio saber,
neutralizando-se critérios de cientificidade e verdade.
Foucault (2012 [1969], p. 219-220) entende o saber como uma prática assim especificada: i)
“[...] o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico [...]”;
ii) “[...] o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu
discurso [...]”; iii) “[...] o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os
conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam [...]”; iv) “[...] se define por
possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso [...]”. As delimitações das
38 De acordo com Butturi Junior (2008, p. 102) em A arqueologia do saber as práticas discursivas (como conjunto de
discursos), tomam o lugar do conceito de epistéme de As palavras e as coisas. Nesta perspectiva, Veiga-Neto (2014, p.
89) assevera que as práticas discursivas são o que “colocam o discurso em movimento”.
relações entre esses quatro domínios para Castro (2016, p. 394) e Butturi Junior. (2008, p. 103)
formam o campo do saber foucaultiano.
O saber operaria num nível distinto ao da ciência, e a interrogação foucaultiana direciona-se
para as condições de existência dos discursos – os saberes, sobretudo das chamadas Ciências
Humanas (FOUCAULT, 2012 [1969]). Foucault aborda os discursos sem dividi-los tradicionalmente,
como ciência, poesia, filosofia, literatura etc; entende essas divisões como arbitrárias, e passa a
analisar o discurso no âmbito de sua dispersão, na ordem do seu acontecimento, inexistindo um tipo
de unidade (MACHADO, 2007, p. 146). A análise dos discursos para Foucault visa a encontrar as
regularidades dos discursos em meio à dispersão. Trata-se de formular regras capazes de dar conta da
formação do discurso, as quais explicitarão como eles emergem e se distribuem na complexidade e
também quais são suas condições de existência (MACHADO, 2007, p. 146).
Veyne destaca que (2014 [1978], p. 239): “[...] a palavra ‘discurso’ é tomada por Foucault
num sentido técnico muito particular e, justamente, não designa o que é dito [...]”. Para Foucault, os
discursos não podem mais ser tratados “[...] como conjunto de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam.” (2012 [1969], p. 60). Ou seja, o discurso constitui e constrói o mundo, não
sendo simples conjunto de palavras que representam os objetos que estão no mundo. Rouanet et al.
(1996, p. 13) acrescentam: “Foucault não inventa um mundo sem sujeitos: descreve, realisticamente,
um mundo em que o sujeito já foi, ou está sendo, submergido pelo discurso.”.
Neste aspecto, quando Foucault afirma que a arqueologia visa a descrever as práticas
discursivas no elemento do arquivo, está historicizando-as, colocando-as em movimento,
compreendendo existir um a priori histórico que possibilita aos enunciados aparecerem
(FOUCAULT, 2012 [1969]). De acordo com Butturi Junior (2008, p. 101), os enunciados para
Foucault são as “[...] unidades mínimas de sua análise, como unidades que formam o discurso”; não
se confundem com frases, proposições ou atos linguísticos, mas possuem uma “função de existência”
(FOUCAULT, 2012 [1969]). A descrição dos enunciados é estabelecer uma positividade, a qual “[...]
é a forma de uma comunicação entre os diversos discursos que dizem respeito a mesma função
enunciativa (que se estabelecem, pois, segundo o mesmo regime do dizer)” (BUTTURI JUNIOR,
2008, p. 102).
Seguindo com Butturi Junior (2008, p. 102) a positividade dá “[...] mobilidade às relações
entre o discurso e suas condições de emergência: nem completamente determinado porém nunca
incontornável [...]”. O arquivo, portanto, é o que dá as condições de possibilidades para os enunciados
emergirem e comporem os discursos (FOUCAULT, 2012 [1969]). As positividades, móveis e
dinâmicas, tornam possíveis estabelecer no meio da dispersão um conjunto de regras para as práticas
discursivas (BUTTURI JUNIOR, 2008). Nesta perspectiva, Foucault critica a ideia que discurso se
estabelece em uma unidade, seja ela dos objetos, dos tipos enunciativos, dos conceitos ou das
estratégias, porém considera esses quatro níveis como regras para a formação discursiva, regulada
em sua emergência e distribuição (MACHADO, 2007, p. 148). A análise dessas regras determina o
tipo de positividade que caracteriza os discursos, a qual é positividade de um saber (FOUCAULT,
2012 [1969]). Neste sentido, acrescentam Rouanet et al. (1996, p. 9): “Os discursos parcelares são
descrições especializadas de certas faixas do saber.”; e Butturi Junior (2008, p. 96): “O que
permanece, então, é o construcionismo dos saberes e dos discursos e a heterogeneidade pela qual as
positividades vêm à tona.”.
No entanto, é necessário frisar que embora Foucault dê primazia às práticas discursivas na
arqueologia ele não fecha no campo do discurso. Pelo contrário, a análise arqueológica se pauta
também pelas formações não-discursivas, embora compreenda que a relação entre práticas
discursivas e não-discursivas seja muito complexa, devendo ser descobertas formas específicas para
sua articulação (MACHADO, 2007, p. 149). Trata-se do “arquivo áudio-visual” foucaultiano, no qual
os saberes serão constituídos entre extratos do visível (práticas não-discursivas) e do enunciável
(práticas discursivas) (DELEUZE, 1988). Foucault afasta-se de uma análise simbólica, de
correspondência entre o discursivo e o não-discursivo cujos reflexos se dariam nos dois sentidos, e
também uma análise causal, na qual se procuraria revelar como as práticas políticas, sociais e
econômicas determinam os seres humanos e os discursos (MACHADO, 2007, p. 149). Esta é a
multiplicidade e não-relação entre o dizível e o visível: “[...] os locais de visibilidade não terão jamais
o mesmo ritmo, a mesma história, a mesma forma que os campos de enunciados, e o primado do
enunciado só será válido por isso, pelo fato de se exercer sobre alguma coisa irredutível.”
(DELEUZE, 1988, p. 59).
De acordo com Veyne (2014, [1978]), a raridade das práticas (discursivas e não-discursivas)
se dá pelo conjunto da história, por isso ele entende que o olhar de Foucault volta-se para a história
como um caleidoscópio, com vários fragmentos discretos, os quais revelam um padrão moldado pelo
acaso, e na mudança de um padrão para outro há um vazio, do qual a especulação racional não
consegue chegar. No caso da presente dissertação, a pergunta que Foucault exige: que elementos do
arquivo possibilitaram, na metade do século XX, a proibição de diversas drogas ao passo que, num
período histórico anterior, o comércio das drogas teve papel importante no comércio internacional?
A hipótese defendida por Luciana Rodrigues (2006, p. 29) é que houve uma mudança na prática (que
poderíamos chamar de discursivas, aqui) relacionada às drogas: “[...] com base em motivações
econômicas, culturais e religiosas, mas não puramente médicas, na fixação do padrão mundial de
controle do uso, comércio e consumo de drogas.”
39
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Nesse sentido estratégico, Butturi Junior (2008, p. 103) ressalta que a modalidade fundamental
estabelecida na Arqueologia do Saber é que “[...] os saberes constituem uma prática também
relacionada à utilização e apropriação do discurso pelo poder.”. Nesta “espécie de esclarecimento”
como mencionado por Butturi Junior (2008, p. 101), abre-se a fenda da relação do discurso com o
poder (a filosofia política comentada por Deleuze). Esse acréscimo de análise através do poder é do
ponto de vista interno do pensamento foucaultiano para dar conta das práticas não-discursivas, as
quais também constituem o saber assim como as práticas discursivas, amplamente investigadas pela
arqueologia. Tanto é que, no ano seguinte [1970], o tema de sua aula inaugural A ordem do discurso
no Collège de France é justamente o imbricamento entre discurso, poder e saber; abrindo-se enfim a
genealogia do poder.
Nesta conferência, Foucault entende que a produção do discurso é controlada, selecionada e
distribuída, perpassando por diversos procedimentos de exclusão e permissão, os quais possuem
ligação com o poder: “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
(FOUCAULT, 2012 [1970] p. 10). Destaca-se um destes procedimentos de ordenação do discurso, o
sistema de exclusão “oposição do verdadeiro e do falso” ou “vontade de verdade”, do qual acarretam
separações arbitrárias, contingentes “[...] que não são apenas modificáveis, mas estão em perpétuo
deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõe e reconduzem;
enfim, que não se exercem sem pressão, nem sem ao menos uma parte de violência.” (FOUCAULT,
2012 [1970], p. 13). Para o discurso ser ordenado como verdadeiro, também se faz necessário do “[...]
modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido de certo
modo atribuído.” (FOUCAULT, 2012 [1970], p. 17).
Observe-se, então: o atual discurso jurídico de criminalização de algumas drogas, que é
ordenado e disposto como verdadeiro fundamentado por saberes médico-jurídicos, bem como
apoiado institucionalmente pelo Estado, especialmente a polícia e o judiciário, constrói uma realidade
que estigmatiza e normaliza, e no limite, prende e mata. Estamos diante do que Foucault (2012 [1970],
p. 17) apontava como a vontade de verdade, “[...] assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição
institucional, tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade –
uma espécie de pressão e como que um poder de coerção.”.
A articulação de poder, saber e discurso permaneceu legítima durante a “ontologia histórica”
de Foucault. No entanto, sua resposta à questão do poder exposta na Ordem do discurso (2012 [1970])
foi posteriormente alterada e redistribuída, sendo reconhecido por Foucault (2014, [1977], p. 35) que:
“Foi um texto que eu escrevi em um momento de transição. Até aí, parece-me que eu aceitava do
poder a concepção tradicional, o poder como essencialmente jurídico.”. Para Díaz (2012, p. 95),
porém, é a partir da Ordem do discurso que “Foucault começará a analisar as relações de poder, sua
produção, como joga na condição de possibilidade do saber e – possivelmente o mais interessante ao
nível filosófico – como se constitui seu dispositivo em termos de diagrama de forças.”.
A próxima seção se voltará para a discussão dessa perspectiva de poder e resistência na
genealogia foucaultiana.