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Voltemos ao Brasil, a Lei 5.726, de 29 de outubro de 1971 é revogada, sobrevindo nova

legislação, ainda em período ditatorial brasileiro: a Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976. Em termos

de condutas e sua materialização em verbos criminalizantes são poucas as modificações em relação

à Lei 5.726; porém, a diferença substancial está no aumento das penas. Trata-se da absorção pela

legislação brasileira do discurso político da “guerra às drogas”. Observemos os principais crimes

definidos na nova legislação e as suas penas:

Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:

I - importa ou exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda ou oferece, fornece ainda que gratuitamente, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima destinada a preparação de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à preparação de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica.

§ 2º Nas mesmas penas incorre, ainda, quem:

I - induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica;

II - utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica. III - contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.

Art. 13. Fabricar, adquirir, vender, fornecer ainda que gratuitamente, possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de substância entorpecente ou que determine dependência fixa ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Art. 14. Associarem-se 2 (duas) ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos Arts. 12 ou 13 desta Lei:

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Art. 15. Prescrever ou ministrar culposamente, o médico, dentista, farmacêutico ou profissional de enfermagem substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, em de dose evidentemente maior que a necessária ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 30 (trinta) a 100 (cem) dias-multa.

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa. (BRASIL, 1976)

Destaquemos que, para o crime de tráfico de drogas (art. 12) incluiu-se os verbos

incriminadores “remeter”, “adquirir” e “prescrever”, bem como a pena de reclusão passou a ser de 03

a 15 anos (antes era de 01 a 06 anos); já para o crime de uso próprio a pena de detenção foi diminuída

para de 06 meses a 02 anos (antes era de 01 a 06 anos). É mantida a prática divisora entre o “sujeito-

traficante” e o “sujeito-dependente” orientando o enquadramento ao primeiro pelo discurso jurídico-

criminal (cárcere) e ao segundo pelo discurso médico-psiquiátrico (tratamento da patologia). Para o

“sujeito-dependente”, não obstante o crime praticado (consumo ou tráfico), importava se ao tempo

do fato delituoso ele era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito da sua conduta ou de

determinar-se de acordo com esse entendimento. Sua pena seria isentada, ou seja, o artigo 19 do novo

regramento manteve a “cláusula de inimputabilidade” (N. BATISTA, 1997, p. 141) já presente na lei

de drogas de 1971, o que significava uma inflação dos discursos da ordem do vício e da dependência

química.

Interessante notar as permanências e deslocamentos discursivos que circulam no dispositivo

jurídico brasileiro. A nomenclatura das “substâncias” tidas como ilícitas e caracterizadoras dos crimes

permanece: “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”, ao mesmo

tempo em que a prisão e a repressão são um constante, desde a metade do século XX - tanto que a

designação que atribuímos, seguindo Nilo Batista (1997), é o “modelo bélico” para tratar a prática

das drogas. Ocorre que o deslocamento no discurso jurídico-legal da Lei de 1976 produz o aumento

substancial da repressão quanto às outras legislações, pois, até então, o trato criminal dado ao usuário

e ao traficante ainda permanecia com penas parecidas (de 01 a 06 anos de reclusão), embora a

probabilidade do usuário não ser encarcerado fosse maior.

A partir de 1976, a pena não é mais de 01 a 06 anos de reclusão para o tráfico, mas de 03 a 15

anos de reclusão. Trata-se de um aumento que triplica a pena carcerária, ao passo que para o consumo,

a pena não é mais 01 a 06 anos de reclusão, sendo de 06 meses a 02 anos de detenção, diminuindo

pela metade. Ademais, os efeitos carcerários são distintos da reclusão para a detenção, tendo a pena

de detenção efeitos menos severos (BRASIL, 1940).

Pelo discurso de repressão e de aumento de pena da Lei 6.368 concretiza-se no Brasil a figura

de inimigo dada ao “sujeito-traficante”, ao mesmo tempo que absorve definitivamente os preceitos

da “guerra contra as drogas”. Neste sentido, como afirma Carvalho (2013, p. 72), o aumento da sanção

para o crime de tráfico de drogas evidencia que “[...] à figura do traficante será agregado o papel

(político) do inimigo interno”. Estamos no interior do dispositivo da guerra ao tráfico, incorporado

ao modo brasileiro.

No entanto, essa diferenciação dada ao crime de consumo e ao “sujeito-dependente” é uma

mudança biopolítica no novo regramento antidrogas, justamente porque a lei dispõe que o tratamento

médico é obrigatório para todos os “sujeitos-dependentes”, mesmo que não tenham praticado crime

algum (CARVALHO, 2013, p. 76). No artigo 10, cabe observar que a internação hospitalar é “[...]

obrigatória quando o quadro clínico do dependente ou a natureza de suas manifestações

psicopatológicas assim o exigirem”, e no §1

o

apresenta a possibilidade de tratamento extra-hospitalar

normalização na lei, ao universalizar a obrigatoriedade do tratamento a todo “sujeito-dependente”,

tornando possível, desde então, a vigilância e o adestramento de qualquer um dos anormais via

discurso próprio. A dicotomia que aqui estamos traçando ganha contornos peremptórios: para o

“sujeito-traficante”, a reclusão no cárcere; e para o “sujeito-dependente”, a internação no hospital.

Essa obrigatoriedade de tratamento, para Carvalho (2013, p. 76) parte do “[...] entendimento

da toxicodependência como fator criminógeno revelador de intensa periculosidade social”. Trata-se,

ao que parece, do funcionamento do “Ubu psiquiátrico-penal”, pois o pressuposto de unir crime e

dependência para afirmar a necessidade e obrigatoriedade universal do tratamento, como afirma

Carvalho (2013, p. 77), é absolutamente equivocada tanto por “[...] não ser empiricamente

demonstrável, mas porque evoca medidas profiláticas de coação direta absolutamente distantes do

ideal do tratamento, mormente ao estabelecer como objetivo da ação médica a prevenção de delitos”.

Além disso, o regramento “[...] amplia as possibilidades de identificação do usuário ao dependente”

(CARVALHO, 2013, p. 77).

Embora a vigilância do “sujeito-dependente” seja potencializada com a universalização e

obrigatoriedade do “tratamento” e, ainda, pelo discurso dos defeitos morais, as supostas “anomalias-

morais” da “delinquência”, permaneçam sendo imputados aos sujeitos que consomem as drogas

ilícitas, as fronteiras entre o discurso médico para o “dependente” e o discurso jurídico para o

“traficante” ficam cada vez mais demarcadas, sobretudo, nas diferenças do local da reclusão e da

forma de normalização. No entanto, a legislação mantém o enquadramento subjetivo da conduta para

o tráfico ou para o consumo, preceituando o artigo 37, caput, que:

Para efeito de caracterização dos crimes definidos nesta lei, a autoridade atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (BRASIL, 1976a)

Ora, como até aqui se defende, não há condições objetivas, sendo que o fator principal para

diferir a imputação criminal é o intuito do sujeito com relação às drogas (comércio ou consumo).

Essa categoria discursiva, loquaz e imprecisa, terá papel decisivo na produção do “sujeito-

dependente” e do “sujeito-traficante”. Poderíamos afirmar, seguindo a vigilância hierárquica de

Foucault (2008 [1975]), que o grau de anormalidade do “sujeito-traficante” na estratégia do biopoder

é potencializado ao compararmos com o “sujeito-dependente”. Por isso, a reclusão e vigília são

maiores, não obstante, ambos encontrem-se no rol dos “anormais” - a quem se necessita corrigir.

Se, sob a ótica da criminalização, o aumento substancial da pena para o crime de tráfico teve

destaque na Lei 6.368, a incitação panóptica de colaboração e dever da população em relação às

legislação anterior passa a ser de “prevenção e repressão ao tráfico”. A tática de governo, ao relacionar

as drogas ao crime, mantém o caráter do discurso jurídico-legal de “[...] sistema repressivo autoritário

típico dos modelos penais de exceção.” (CARVALHO, 2013, p. 76). Nesse sentido, as linhas de

visibilidade e dizibilidade sobre as drogas estreitavam-se pelo dispositivo jurídico, tornando as

resistências sobre o tema cada vez mais aterrorizadas e, consequentemente, esparsas.

Para isso, o discurso jurídico-legal trouxe inovações, criminalizando como “tráfico de drogas”

no artigo 12, §2

o

, III, com pena de 03 a 15 anos de reclusão, a conduta de: “[...] contribuir de qualquer

forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico.”. De acordo com Nilo Batista (1997,

p. 141, grifos meus), a novidade é um tipo penal de apologia, “[...] capaz de, nas mãos de um delegado

de polícia devotado, levar à instauração de inquérito contra Charles Baudelaire, Aldous Huxley, Jean

Cocteau e Walter Bejanmin numa única estante de livraria”. Esse crime utilizado como instrumento

de vigília e de repressão vem a corroborar o que Zaffaroni (2011, p. 52) compreendeu pela emergência

de uma “aberrante legislação penal autoritária” sobre as drogas na América Latina, que “[...] poucos

se animaram a denunciar, ameaçados de ser acusados de partícipes e encobridores do narcotráfico ou

de ser presos, ao melhor estilo inquisitorial, o que aconteceu inclusive com magistrados, fiscais e

acadêmicos”.

Indo adiante, finalmente da perspectiva da relação entre a legislação e a censura, a Lei 6.369

de 1976 foi regulamentada pelo Decreto 78.992, de 21 de dezembro de 1976, a qual, especialmente

nos seus artigos 8

o

e 9

o

, funcionava como o “filtro” das visibilidades e dizibilidades sobre a questão

das drogas e os seus dispositivos correlatos, passando o tema a ser proibido de publicação em “texto,

cartaz, representação, curso, seminário, conferência ou propaganda”, exceto se autorizado pelo

governo (art. 8

o

), além dos agentes da censura passarem a fiscalizar “[...] rigorosamente os

espetáculos públicos, cenas ou situações que possam ainda que veladamente, suscitar interesse” pelas

drogas (art. 9

o

) (BRASIL, 1976b).

Essas estratégias de repressão da Lei 6.369 permanece durante quarenta anos regendo a

criminalização do tráfico de drogas no Brasil. Porém, a emergência da democracia não foi o suficiente

para frear a prática bélica.