A sociedade da normalização é o efeito e o funcionamento do poder na modernidade, cujo
principal objetivo é regular a vida dos sujeitos: individualmente através das disciplinas e
coletivamente através da governamentalidade. Embora o “sujeito-delinquente” e a “delinquência”
situem-se na anormalidade, os mecanismos de poder estabelecem práticas divisoras justamente como
função estratégica para a manutenção dos “normais” e transformação dos “anormais”. Nesta
perspectiva, a maior individualização da “delinquência” é explicada por Díaz (2012, p. 139): “O
padrão de medida será a norma. Mas quem não cumpre será muito mais individualizado [e regulado]
que aquele que a cumpre. [...] O normal é cumprir as leis. Se as violasse padeceria reclusão, controle,
vigilância, espreita.”.
No entanto, a estratégia biopolítica do poder contemporâneo – via engrenagens das disciplinas
e da governamentalidade – ao produzir o “sujeito-delinquente” no ambiente prisional, mais que
modificá-lo, utiliza-se dele para o controle, a vigilância e para auferir vantagens (economicamente e
politicamente). A partir dessa estratégia, é preciso observar o caminho discursivo empregado por
Foucault para entender fundamentadamente como emerge na sociedade da normalização um novo
personagem denominado “sujeito-delinquente”. Antes, porém, voltemo-nos brevemente – e
novamente – ao problema do sujeito em Foucault.
Em uma análise equivocada sobre os escritos foucaultianos, muitos interpretam
equivocadamente a enunciada morte do homem - “O homem é uma invenção cuja recente data a
arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo.” (FOUCAULT, 2007
[1966], p. 536) -, encontrando nela uma afronta aos ideais humanos ou uma equiparação de Foucault
a Hitler
53(DELEUZE, 1988, p. 13). No entanto, a célebre frase “o homem está morto” não pode ser
53 A vida política e intelectual de Foucault é irretocável, lutando e propagando ideias, justamente, contrárias às formas autoritárias e arbitrárias, como àquelas inerentes aos regimes nazifascistas. Acreditava numa luta particular, e não em uma revolução generalizante (mundial) (FOUCAULT, 2013 [1982]). Tanto o é que foi membro fundador do GIP (Group
interpretada pontualmente, mas através da leitura de As palavras e as coisas (2007 [1966]). No texto,
Foucault expõe sua compreensão da necessidade da saída do “sono antropológico” referente à
epistémê da Idade Moderna, pois o ser humano situava-se como centro do conhecimento (empírico-
transcendental).
A crítica de Foucault ao “antropocentrismo” leva-o a uma reflexão filosófica distinta e para
isso utiliza-se da história, passando a compreender que cada época se forma pelas suas práticas,
afastando-se de qualquer pretensão de análise que parta de um sujeito fundador e a priori ou na
expressão de Veiga-Neto (2016, p. 107) um “sujeito desde sempre aí”. O sujeito foucaltiano é
historicizado, sendo constituído pelas relações de poder-saber de sua sociedade e seu tempo. Trata-
se de um “sujeito fabricado, construído, produzido”, e para isso Foucault (2013 [1973], p. 22)
apoia-se na filosofia nietzschiana, na qual ele encontra “[...] um tipo de discurso em que se faz a
análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo
de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento.”.
Nesta perspectiva, a pretensão de Foucault (2006[1984], p. 235) é definir os processos de
subjetivação e objetivação que constituem o ser humano em sujeito na época moderna. De acordo
com Fonseca (2011, p. 28-29), compreendem-se por objetivação os mecanismos disciplinares que
constituem o ser humano em um “objeto dócil e útil”, enquanto que por subjetivação
54as práticas que
fazem do ser humano “um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída como própria”. Da
correlação entre esses processos de objetivação e de subjetivação, formam-se as práticas que irão
formar os sujeitos, ou na expressão utilizada por Foucault “formas-sujeito”. Ele (2006 [1984], p.
275) deixou explícito esse entendimento ao relatar que o sujeito:
Não é uma substância. É uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. Você não tem consigo próprio o mesmo tipo de relações quando você se constitui como sujeito político que vai votar ou toma a palavra em uma assembléia, ou quando você busca realizar o seu desejo em uma relação sexual. Há, indubitavelmente, relações e interferências entre essas diferentes formas do sujeito; porém, não estamos na presença do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso, se exercem, se estabelecem consigo mesmo formas de relação diferentes. E o que me interessa é, precisamente, a constituição histórica dessas diferentes formas do sujeito, em relação aos Jogos de verdade [práticas].
d'Information sur les Prisons) em 1971, cujo intuito foi dar condições aos encarcerados falarem por si mesmos (FOUCAULT; DELEUZE, 2015 [1972]). As reflexões realizadas em Vigiar e Punir foram imprescindíveis para denunciar os abusos cometidos pelo sistema penitenciário e fundamental para os estudos da área criminal (FOUCAULT, 2008 [1975]), modificando radicalmente as teorias criminológicas (BATISTA, 2014) (ANITUA, 2015). Isso para relatar suas contribuições essenciais à área criminal, sem adentrar no seu protagonismo na luta anti-manicomial. Acreditava na existência de três tipos de luta: contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa), de exploração (econômica) e de sujeição (submissão da subjetividade) (FOUCAULT, 2013 [1982], p. 278).
54 O termo processo de subjetivação será utilizado no presente trabalho como sinônimo de assujeitamento. Não será analisado o processo de subjetivação a partir das práticas de si, referente ao eixo ético do pensamento foucaultiano.
O “sujeito-louco”, o “sujeito-delinquente”, o “sujeito-político”, o “sujeito-pedagógico”, o
“sujeito-traficante”, seriam, assim, formas de sujeito atreladas às práticas da sua época e da sua
sociedade. Neste sentido, as “formas-sujeito” são a análise de um aspecto da constituição da
subjetividade, afastando-se, por isso, de um sujeito universal.
Façamos um parêntese, a fim de pensar foucaultianamente acerca do tema do presente trabalho
em relação ao sujeito. Observe-se o caso da Holanda, onde a venda de cannabis em pequenas
quantidades é tolerada e regulamentada, inexistindo uma prática que constituirá os sujeitos da rede
negocial dos coffeshops na forma “sujeito-traficante”. Ao mesmo tempo, embora no Brasil exista um
processo de normalização e construção do “sujeito-traficante” – mesmo os que vendem pequenas
quantidades de cannabis – pensando foucaultianamente, não há uma redução do sujeito à identidade
de “traficante”, mas um aspecto na construção da sua subjetividade, a qual também se constitui por
outras “formas-sujeito”
55.
Fechemos o parêntese. Essa preocupação com o sujeito é o tema geral das pesquisas de
Foucault (2013 [1982], p. 273), levando-o a enfatizar que o objetivo das suas pesquisas foi “[...] criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se
sujeitos.”. Para isso, ele estudou diferentes modos de objetivação-subjetivação que transformam os
seres humanos em sujeitos, dentre elas as práticas de divisão do ser humano em normal-anormal, que
fazem do sujeito um objeto divisível no seu interior e em relação aos outros, como é o caso do
“delinquente” e do “cidadão de bem” ou do “doente” e do “saudável” (FOUCAULT, 2013 [1982], p.
272-273). Nesta análise, Foucault (2006 [1984], p. 236) persegue como a constituição do sujeito “[...]
pode aparecer do outro lado de uma divisão normativa e se tornar objeto de conhecimento – na
qualidade de louco, de doente ou de delinqüente: e isso através de práticas como as da psiquiatria, da
medicina clínica e da penalidade.”.
A análise dos processos de objetivação e subjetivação do “sujeito-traficante”, tema do
presente trabalho, situa-se no âmbito dessas práticas divisoras que repartem e distribuem os sujeitos,
categorizando-os. A “norma” é o critério gerado a partir das práticas para a divisão dos sujeitos, sendo
justamente o que irá regular o corpo individual através do poder disciplinar, bem como a população
através da governamentalidade (FOUCAULT, 2010 [1977], p. 212-213). A época moderna é descrita
por Foucault como uma “sociedade da normalização”, na qual se articulam os mecanismos
disciplinares e o biopoder na constituição dos sujeitos (FOUCAULT, 2010 [1977], p. 213).
55 No presente trabalho utilizam-se as expressões sujeito, formas-sujeito e subjetividade a fim de analisar os processos de constituição dos seres humanos na modernidade. A utilização de sujeito ou forma-sujeito relaciona-se a um aspecto da subjetividade do ser humano que já é fruto do processo de constituição. A subjetividade diz respeito às condições de possibilidade da constituição do ser humano dependendo das práticas históricas e sociais, e o sujeito ou forma-sujeito é um aspecto na construção de sua subjetividade.
De acordo com Fonseca (2014, p. 62, grifo meu), a ideia de “normalização” é mais adequada
do que “norma” na reflexão da mecânica do poder foucaltiana, pois “[...] a norma se afasta de uma
forma que a oferece como um princípio de distribuição de objetos e sujeitos nos campos do normal e
do anormal e assume a forma de uma ação”. Portanto, explora-se a “ação norma” na perspectiva das
práticas (carregadas do poder-saber), constituir os objetos e os sujeitos: “[...] a norma se desubstantiva
e se torna verbo.” (FONSECA, 2014, p. 62).
Foucault trata de forma distinta normalização e lei. Fonseca (2014) compreende que no plano
teórico a imagem do direito que aparece no pensamento foucaltiano é idêntica à concepção de lei
(como edifício jurídico) e opõe-se à normalização, por exemplo: “Os dispositivos disciplinares
produziram uma ‘penalidade da norma’ que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento à
penalidade tradicional da lei” (FOUCAULT, 2008 [1975], p. 153). Essa oposição - teórica - mostra a
compreensão de Foucault do poder normalizador como produtor e descentralizado, não possuindo
como função exclusiva a divisão entre lícito e ilícito ou imposição de restrições e repressões (modelo
jurídico). Essa diferença é demonstrada por Foucault (2010 [1975], p. 33) ao abordar as disciplinas
que:
[...] vão trazer um discurso que será o da regra; não o da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra natural, isto é, da norma. Elas definirão um código que será aquele, não da lei, mas da normalização, e elas se referirão necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas o campo das ciências humanas. E sua jurisprudência, para essas disciplinas, será a de um saber clínico.
No entanto, não há contradição entre direito e normalização. De acordo com Fonseca (2014),
no plano das práticas é possível visualizar uma imagem do direito em Foucault que aparece como
veículo da normalização, um direito produzido e produtor dos mecanismos de normalização. As
técnicas disciplinares e de governamentalidade não podem ser dissociados do direito, justamente pelo
edifício jurídico ser um condutor por excelência da normalização, trata-se de um “direito
normalizado-normalizador” (FONSECA, 2014). Nesta perspectiva, Foucault (2014 [1976], p. 156 –
grifos meus) na sua análise sobre o biopoder alerta: “Não quero dizer que a lei se apague ou que as
instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e
que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos,
administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladores.”. Assim, é possível compreender que
o poder da normalização é autônomo em relação ao direito (plano teórico) e, ao mesmo tempo, utiliza-
se dele para sua aplicação (plano prático).
Diante disso, as formas-sujeitos são frutos de processos de objetivação e subjetivação que se
centram na normalização, e sua divisão do normal e do anormal, como efeito estratégico na
construção dos seres humanos em sujeitos. Como mecanismo dessa produção de formas-sujeitos, a
sociedade da normalização utiliza-se, primeiramente, das disciplinas, uma forma do exercício do
poder que constitui os sujeitos em sua individualidade a partir de técnicas que atuam no corpo
56“[...]
que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se
multiplicam.” (FOUCAULT, 2008 [1975], p. 117). No entanto, as disciplinas, ao agirem no corpo
constituem a subjetividade do ser humano que é efeito de uma sujeição anterior a ele: “Uma ‘alma’ o
habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo.
A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo.” (FOUCAULT, 2008
[1975], p. 29).
Foucault (2008 [1975], p. 118) descreve as disciplinas que emergem entre os séculos XVIII
e XIX como “[...] métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam
a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade.”; definindo-
as como uma “anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2008 [1975], p. 120). Embora não seja
esse o primeiro momento da história que o corpo do ser humano torna-se objeto político, Foucault
(2008 [1975], p. 118) compreende que as disciplinas trazem três novidades sobre isso: i) a técnica
empregada sobre o corpo não é nas massas, na coletividade, mas no detalhe de cada individualidade;
ii) o controle sobre o corpo é exercido na eficácia dos movimentos e não no comportamento e na
comunicação; iii) impõe-se um exercício ininterrupto e constante que se exerce mais sobre os meios
que sobre as finalidades.
Diante disso, o corpo dos sujeitos torna-se objeto de um mecanismo que forma aptidão e
dominação, há imanência entre a utilidade e a dominação, e reciprocidade entre docilidade e utilidade:
“[...] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma
dominação acentuada.” (FOUCAULT, 2008 [1975], p. 119). As disciplinas, portanto, além de
dominarem o corpo, também o fazem operar com a técnica e a eficácia necessárias, forma-se uma
arte que fabrica “corpos dóceis e úteis” (FOUCAULT, 2008 [1975], p. 119).
Para tanto, as disciplinas possuem algumas características e apoiam-se em instrumentos, não
emergindo inesperadamente, mas através de processos múltiplos que se repetem, se multiplicam, se
copiam, se diferenciam, se ramificam, e no limite “[...] esboçam aos poucos a fachada de um método
geral.” (FOUCAULT, 2008 [1975], p. 119). É possível encontrar as técnicas disciplinares “[...] em
funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o
56 Sobre a análise do corpo como objeto político, Dreyfus e Rabinow (2013, p. 150) compreendem que: “Um dos maiores empreendimentos de Foucault foi sua habilidade de isolar e conceituar o modo pelo qual o corpo se tornou o componente essencial para a operação das relações de poder na sociedade moderna.”.