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Mapeando as proveniências do “sujeito-traficante”: O “traficante de escravos”, o boticário e

5 O DISCURSO DO ESTADO DE S PAULO E A PRODUÇÃO DOS “SUJEITOS-

5.3 A PRÁTICA DISCURSIVA: AS CAPAS DO ESTADÃO (1964-2007) E O(S)

5.3.1 Mapeando as proveniências do “sujeito-traficante”: O “traficante de escravos”, o boticário e

as drogas venenosas (final do século XIX)

Façamos um panorama inicial das capas do século XIX. Assim, na primeira página dos jornais

do Estado, no século XIX, especificamente entre os anos 1870 a 1899, foram identificadas 24

menções ao(s) “traficante(s)”. Nessas capas, o discurso midiático sobre o “traficante” é heterogêneo.

Sob um aspecto, as notícias utilizam “traficante(s)” para indicar um atributo negativo dos sujeitos, o

relacionando a desonestidade, ao ardil e ao engano no trato comercial, na busca de interesses egoístas,

na falta de credibilidade, e o desrespeito à res pública, como por exemplo: “traficantes sem fé nem

lealdade” (A PROVÍNCIA..., [12/12]1875, p. 1); “repilamos os traficantes, os embusteiros, os

traidores perversos, que nos ferem sob o manto da amizade” (A PROVÍNCIA..., [17/10]1878, p. 1);

“traficantes e ladrões dos cofres públicos” (A PROVÍNCIA..., [04/01]1879, p. 1); “bolsa de

traficantes” (referindo-se a dinheiro ilícito) (A PROVÍNCIA..., [25/04]1886, p. 1); “desprezíveis

traficantes políticos” (O ESTADO..., [24/03]1891, p. 1); “traficantes do maravilhoso” (atribuído a

práticas espirituais charlatãs) (A PROVÍNCIA..., [17/04]1884, p. 1); “traficantes de consciências” (O

ESTADO..., [12/05]1894, p. 1). Sob outro aspecto, “traficante” é utilizado para expressar o sujeito

que pratica o comércio de forma neutra (A PROVÍNCIA..., [25/10]1876 e [28/08]1881, p. 1) (O

ESTADO..., [14/02]1895, p. 1). Por fim, as notícias designam “traficante” para o sujeito que pratica

o comércio de escravos (A PROVÍNCIA..., [04/07]1875, [15/02]1881, [28/05]1882, [08/05]1883,

[12/09]1884, [04/10]1884, p. 1) (O ESTADO..., [27/08]1890, [22/05]1891, p. 1).

Destas capas analisadas, destacamos o sujeito “traficante de escravos”, uma forma de

subjetividade que aparece vinculada à trama de dispositivos da época. Isso é possível de ser

observado, exemplificativamente, na capa do jornal de 15/08/1883, cuja notícia expressa inter-

relações dos dispositivos jurídico e midiático, sendo reduplicada a lei quanto ao ilegalismo do “tráfico

negreiro” e a criminalização dos “traficantes”, vejamos:

Estimulados pelo dever de respeitar as estipulações internacionais e pelos brios de um povo que acabava de se constituir em nação livre e independente, os legisladores de 1831 e o governo de então promulgaram a lei de 7 de novembro de 1831, que declarou livres todos os escravos que entrassem no território e portos do Brasil e estabeleceu penas para os

traficantes. (A PROVÍNCIA..., [15/08]1883, p. 1, grifos meus)

Como explicado por Veyne (2014 [1978]), a trama histórica gira como um “caleidoscópio”,

existindo um vazio entre os seus deslocamentos que a razão não consegue explicar. Da perspectiva

do “sujeito traficante”, é evidente os distintos processos de objetivação que é perpassado. Aqui,

importa esclarecer que o “traficante de escravos”, objeto da mídia do final do século XIX, é distinto

do “traficante” que emerge na segunda metade do século XX e que lida com o comércio de drogas

ilícitas.

Outrossim, voltando-se para o discurso midiático e a prática com as drogas no final do século

XIX, pesquisou-se as capas do Estadão, entre os anos 1870 a 1899, que mencionassem “substâncias

venenosas” (termo empregado no discurso jurídico-legal da época) e tivessem alguma relação com

“ilegalismos”. Na única notícia de capa encontrada, do dia 03/11/1880, foi possível identificar

proveniências da emergência do “tráfico de drogas”, em seu modelo “sanitário”. A notícia é intitulada

de “saude publica [sic]”. Nela, é informado que o governo realizou nomeação de “inspetor de saúde

pública” que dentre outras funções, teria que fiscalizar situações como a dos: “[...] boticários [que]

vendem drogas venenosas ao primeiro que se apresenta, sem a competente receita de medico [sic]”

(A PROVÍNCIA..., [03/11]1880, p. 1).

Ora, parece que na época era utilizado de um mecanismo disciplinar por excelência para

abordar a questão das drogas, qual seja: a fiscalização. A prática era exclusivamente normalizante.

Por sinal, a fiscalização, como elemento do poder disciplinar, possuiu função fundamental para a

consolidação de um tratamento biopolítico com as drogas, justamente porque as estratégias de

governamentalidade, além de se valer de instrumentos lato para conduzir condutas de populações (no

caso do discurso da notícia, é a utilização dos instrumentos governamentais de saúde pública da

população da época), também se utiliza das coerções sobre o corpo e sobre a alma das

individualidades, através dos instrumentos de vigília, correção, punição e exclusão (no caso do

discurso da notícia, a vigília dos boticários, imposição de normas e, se necessário, correções, punições

e exclusões).

Se não bastasse isso, pesquisou-se também por “maconha”, “crack” e “cocaína”. Sobre

“maconha” e “crack” não há referência nas capas do Estadão no final do século XIX (entre 1870 a

1899). Porém, da “substância cocaína”, aparecem várias notícias que o discurso midiático e o discurso

sanitário se inter-relacionam, sobretudo na sua utilização como fármaco anestésico (A

PROVÍNCIA..., [23/07]1885, p.2 [15/08]1885, p.3 [08/09] 1885, p. 1, [09/10]1885, p.3; O

ESTADO... [08/10]1892, p. 1, [18/07]1894, p. 1, [18/10]1897, p. 1). Destacamos aqui, um artigo de

capa publicado no Estado de S. Paulo em 08/09/1885, firmado pelo Dr. Joaquim Domingues Lopes,

no qual ele expôs os efeitos anestésicos da cocaína para fins de extração de dentes, e atestou o seu

uso, salientando que essa substância é: “[...] uma descoberta scientifica [sic] que veiu [sic] no século

XIX enriquecer a therapeutica [sic] e a cirurgia [sic] moderna, aniquilando o elemento dôr [sic] em

certas e determinadas operações”. (A PROVÍNCIA..., [08/09]1885, p. 1).

Este trato com as drogas se deslocará. O “modelo sanitário” só se consolidou, efetivamente,

no início do século XX, enquanto que o “modelo bélico”, somente na segunda metade do século XX

(BATISTA, 1997). Na guerra às drogas, o discurso não é mais de um “fiscal sanitário”, mas de um

“policial militar”. Da mesma forma, não estamos mais falando de um “boticário” ou de um

“farmacêutico” que desvia as drogas do seu procedimento formal, mas de um “traficante de drogas”

que está no rol dos “sujeitos-delinquentes”. Aliás, a cocaína, de “remédio salvador” no final do século

XIX, passou a ser abordada via dispositivos médico, jurídico e midiático no final do século XX

através do “pânico moral”, como uma “epidemia”, como pode-se exemplificar através da notícia de

capa do Estadão, de 13/07/1986, intitulada: “Epidemia de cocaína em Nova York” (O ESTADO...,

[13/07]1986, p. 1 – grifos meus).

Durante esse olhar em algumas capas do Província de São Paulo (entre 1870 a 1889) e do

Estado de S. Paulo (1890 a 1899), o que se pode observar brevemente do discurso midiático é que o

objeto “traficante” e o “tráfico de drogas” estavam inseridos em práticas totalmente distintas da

contemporânea guerra às drogas. Não há nenhuma relação entre o “traficante” e o comércio ilícito

de “substâncias venenosas”. As drogas ainda eram objeto exclusivo do dispositivo sanitário. Portanto,

o que examinaremos via dispositivo midiático na próxima seção é a consolidação do “modelo

sanitário” da política criminal de drogas, momento que ocorrem as primeiras aparições do

personagem “sujeito-traficante”, novamente, através da análise do discurso da mídia através do

Estado de S. Paulo.