A prática adotada quanto à criminalização jurídica das drogas no Ocidente desloca-se na
década de sessenta do século XX, principalmente pelo “[...] estouro da droga e também da indústria
farmacêutica nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos” (OLMO, 1990, p. 33). Nesse
período, Orlando Zaccone (2011, p. 84-85) compreende emergir uma “geopolítica das drogas”, na
perspectiva de que:
[...] os países industrializados de ponta exigem maior rigidez no controle de opiáceos, maconha, cocaína, produzidos pelos países menos desenvolvidos, enquanto as substâncias sintéticas, produzidas nas indústrias farmacêuticas dos EUA e Europa (barbitúricos e anfetaminas) sofrem pouca regulamentação.
Além disso, o consumo ascendente da cannabis e do LSD no Ocidente, vinculados a
movimentos contraculturais e de protestos
74(hippies, direitos civis dos negros, guerra do Vietnã,
revolução cubana, rock and roll, etc.), críticos do modelo político-militar e dos princípios do the
american way of life, acarretaram no seio social “[...] o pânico moral que deflagrará intensa produção
legislativa em matéria penal [sobre as drogas].” (CARVALHO, 2013, p. 62-63). É nesses movimentos
de contestação que há “[...] generalização do contato com a droga e a denúncia pública dos horrores
74 Interessante notar que é neste período que Foucault (2015, [1977], p. 42) passa a refletir o poder como uma relação de forças, deslocando a filosofia política que compreendia o poder como soberania estatal, e passando abordá-lo pelas malhas mais finas da sociedade, a microfísica do poder. Inclusive, o relato dele é que foi depois dos protestos estudantis de maio de 1968 na França que ele compreendeu ser necessário esse deslocamento.
da guerra, e a derrota de tais movimentos não pode ser melhor representada que pela política criminal
que resolveu opor-se à droga com os métodos da guerra.” (N. BATISTA, 1997, p. 138).
Essa oposição às drogas pela guerra é estrategicamente útil na conjuntura política e econômica
mundial da época, vivenciava-se a bipolaridade da Guerra Fria, com uma corrida armamentista entre
o bloco dos Estados Unidos (capitalismo) e o bloco da União Soviética (socialismo), formando uma
“[...] aliança entre setores militares e industriais para a qual a iminência da guerra era condição de
desenvolvimento.” (N. BATISTA, 1997, p. 138). Sobre as relações entre os discursos de militarização
na política criminal de drogas e a política no Brasil, Nilo Batista (1997, p. 138) destaca que o discurso
jurídico-legal, durante a Ditadura Militar, assume os preceitos da “doutrina da segurança nacional”,
existindo a intensificação de um dos seus postulados de inimigo interno “[...] pelos operadores
policiais, militares e judiciários no âmbito dos delitos políticos, [que] transbordará para o sistema
penal em geral e sobreviverá à própria guerra fria.”.
Nilo Batista (1997, p. 137) utiliza-se da expressão “modelo bélico” para designar a política
criminal de drogas no Brasil a partir de 1964, marco adotado por ele diante do golpe de Estado que
fez emergir a Ditadura Militar no Brasil, forma de governo que teria permitido, justamente, a
implantação de uma política criminal de drogas em uma perspectiva bélica e militarizada. No entanto,
isso não significa a exclusão do “modelo sanitário” do discurso jurídico-legal brasileiro, que
permanece presente na prática sobre as drogas, especialmente na figura do “sujeito-dependente” (N.
BATISTA, 1997, p. 138) e da tática biopolítica da “saúde pública e individual da população”.
A aparição desta nova reconfiguração se dá logo após a instauração da Ditadura Militar,
quando é aprovada e promulgada no Brasil a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU [1961]
através do Decreto n
o54.216, de 27 de agosto de 1964. Dentre as justificativas para a convenção, é
afirmada a preocupação mundial com a “saúde física e moral da humanidade”, reconhecendo “a
toxicomania como um grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e econômico para a
humanidade”, e com a intenção de “prevenir e combater esse mal”, são necessárias adotar medidas
conjuntas e universais contra o uso indevido dos “entorpecentes” (BRASIL, 1964). A orientação
maniqueísta da ONU baseou-se na criminalização do tráfico de drogas como uma “infração grave”,
conforme artigo 36, I, da convenção:
ARTIGO 36 Disposições Penais
1. Com ressalva das limitações de natureza constitucional, cada uma das Partes se obriga a adotar as medidas necessárias a fim de que o cultivo, a produção, fabricação, extração, preparação, posse, ofertas em geral, ofertas de venda, distribuição, compra, venda, entrega a qualquer título, corretagem, despacho, despacho em trânsito, transporte, importação e exportação de entorpecentes, feitos em desacordo com a presente Convenção ou de quaisquer outros atos que, em sua opinião, contrários à mesma, sejam considerados como delituosos,
se cometidos intencionalmente, e que as infrações graves sejam castigadas de forma
adequada, especialmente com pena prisão ou outras de privação da liberdade.
(BRASIL, 1964, grifos meus)
Pelo viés dessa convenção, ratificada por mais de 100 países durante a década de sessenta do
século XX (CARVALHO, 2013, p. 69), as “substâncias entorpecentes” passam a ser tratadas como
“problema” mundial. No corpo do texto, um enunciado de cisão: os sujeitos “dependente” e
“traficante” são divididos: para o primeiro, o “tratamento” médico; e para o segundo, o “tratamento”
do carcerário. De acordo com Olmo (1990, p. 33-34), é a partir desta convenção que a droga passa
ser sinônimo de dependência difusamente, o que acarreta ser estabelecida a prática divisora via
estereótipos de “sujeito-traficante” (pobre e morador da periferia) e de “sujeito-dependente” (classe
média ou rica). A criminóloga designa essa divisão como “ideologia da diferenciação”, que pode ser
lida biopoliticamente, explicando que:
O problema da droga se apresentava como uma “luta entre o bem e o mal”, continuando o estereótipo moral, com a qual a droga adquire perfis de “demônio”; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os culpados tinham de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, daí o fato de o discurso jurídico enfatizar na época o estereótipo criminoso, para determinar responsabilidades; sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuidor, seria visto como o incitador ao consumo, o chamado Pusher ou revendedor de rua. Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo de “delinqüente”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria qualificado de “doente” graças a difusão do estereótipo da dependência, de acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo médico-sanitário. (OLMO, 1990, p. 34)