O discurso de proibição das drogas em nível mundial é retomado e ampliado anos mais tarde,
tendo como pontos fulcrais alguns documentos: o Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas da
ONU, de 1971, e o protocolo de 1972, que modificava a Convenção Única sobre Entorpecentes
[1961] da ONU, acrescentando as anfetaminas na lista de drogas ilícitas. Carvalho (2013, p. 69)
afirma ser uma “estratégia de globalização do controle penal sobre as drogas ilícitas”. Para Thiago
Rodrigues (2012, p. 16) esses tratados internacionais resultariam na existência de uma “diplomacia
das drogas” que receberia na década de setenta “a companhia do seu duplo: a guerra”. Tanto que,
neste período o presidente Nixon dos EUA “[...] veio a público anunciar que ‘as drogas’ eram uma
ameaça à sociedade estadunidense e que, para combatê-las, era necessário declarar uma ‘guerra às
drogas’” (T. RODRIGUES, 2012, p. 16).
Essa guerra que toma proporções mundiais e emerge em solo norte-americano, ganha difusão.
Pode ser pensada biopoliticamente, pois criminaliza algumas drogas com a função estratégica de
disciplinarizar e conduzir condutas de alguns sujeitos norte-americanos, aqueles que se deve perseguir
e normalizar. O governo de Nixon, republicano, orientava-se pelos postulados: “lei e ordem”,
enunciados de governos autoritários. O teor das suas prelações políticas na época eram: “Se há uma
única área em que a palavra ‘guerra’ é apropriada, é na luta contra o crime.” (A 13
aEMENDA, 2016,
15min); “Temos que travar o que chamei de guerra total contra o inimigo público número um dos
EUA, o problema das drogas perigosas” (A 13
aEMENDA, 2016, 16 min). A criminalização das
drogas possuía como finalidade a vigília e a reclusão dos inimigos do “povo americano” naqueles
tempos de guerra fria e segregação racial. Estamos falando de dois tipos de inimigos. Novamente, os
primeiros, os “subversivos de esquerda”, passíveis de enquadramento por todos que discordassem e
fossem insubordinados ao governo americano. Era os afetos a discursos pacifistas, de igualdade de
gênero e social, de liberdade de expressão, de pensamento e de orientação sexual, de algum modo
resistentes às práticas militares, bélicas e autoritárias. Depois desses, aparecia, toda a população
negra, como estratégica de manutenção do governo republicano via segregação racial e amparado no
ranço biológico-racista.
(comunistas e drogas) passa a difundir “pânico moral” sobre as drogas ao ganhar espaço na opinião pública, sobretudo, pela ajuda midiática.
A “guerra às drogas” de Nixon é reflexo das campanhas de “lei e ordem” (A 13
aEMENDA,
2016), fundada em relações diversas com o poder-saber médico-jurídico-midiático. Trata-se,
portanto, de uma guerra que recorre à criminalização e a repressão, possibilitada pelo “pânico moral”
da população ao valer-se do medo e do combate para algumas drogas. Pelo saber médico se anunciava
uma “epidemia” e o caos na saúde pública da população. Pelo saber jurídico se disseminava a
iminência de uma “narcoguerrilha” e a desordem à ordem política e jurídica. Por fim, pelo dispositivo
midiático e seu caráter ubíquo se espalhava o “pânico moral” das drogas e dos inimigos. O ponto
nodal nessa guerra é, todavia, racializante: ela emerge não para erradicar substâncias, mas na tentativa
de normalizar e excluir os inimigos, os “subversivos de esquerda” e os “negros”.
Da perspectiva do uso da “guerra às drogas” para a vigilância e reclusão da população negra,
Hart (2014, p. 27) menciona que na década de setenta, nos EUA, houve a transformação de “[...]
palavras como crime, drogas e urbano em códigos denotando ‘negros’, aos olhos dos brancos”. Essa
prática racista, ao utilizar o medo dos brancos e o ódio aos negros, possuía função estratégica para a
manutenção dos republicanos no governo, pois, os democratas, rivais políticos, posicionavam-se
favoravelmente aos movimentos dos direitos civis dos negros e suas ideias de igualdade racial
(HART, 2014, p. 27). Deste modo, atribuir à população negra a delinquência, a violência e a
selvageria, possibilitava a Nixon o controle da população e, também, a manutenção do seu governo
através do voto dos brancos amedrontados. Inclusive, a adoção da política criminal via estratégia “lei
e ordem”, acarreta, especialmente à população negra a preferência de abordagens das polícias
militarizadas e sua operacionalidade na forma de “guerra”, encarcerando, no âmbito interno dos EUA,
de forma massiva os negros e pobres norte-americanos (A 13
aEMENDA, 2016).
Atente-se para a utilização da criminalização das drogas via dispositivos jurídico e midiático
como mecanismo de controle, vigilância e reclusão dos anormais “negros” e “hippies” nos Estados
Unidos. Os inimigos a serem perseguidos pela “guerra às drogas”. Ora, trata-se daquilo que
anunciamos na introdução do trabalho, a criminalização de cada droga se dá menos pela substância
e mais pelo grupo que se quer criminalizar, perseguir, vigiar e punir. No caso contemporâneo
brasileiro, como veremos, é o “sujeito-traficante”, morador pobre da periferia.
Esta análise de que a guerra às drogas emerge contra formas-sujeito e não substâncias é
corroborada pela declaração prestada atualmente por John Ehrlichman, assessor do presidente Nixon
na época, observe-se:
A campanha de Nixon em 1968 e a Casa Branca de Nixon depois disso tinham dois inimigos: a esquerda antiguerra e os negros. Entende? Sabíamos que não podíamos tornar legal ser contra a guerra ou os negros. Ao fazer o povo associar os hippies à maconha e os negros à heroína, e então criminaliza-los pesadamente, poderíamos interferir nessas comunidades, prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões, e difamá-los noite após noite
nos noticiários. Nós sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim. (13a EMENDA, 2016, 18min)