5 O DISCURSO DO ESTADO DE S PAULO E A PRODUÇÃO DOS “SUJEITOS-
5.3 A PRÁTICA DISCURSIVA: AS CAPAS DO ESTADÃO (1964-2007) E O(S)
5.3.2 Mapeando a aparição do “sujeito-traficante” até a segunda metade do século XX
O discurso sobre o(s) “traficante(s)” permanece heterogêneo e impreciso nas capas do Estadão
da primeira metade do século XX, entre os anos de 1900 a 1963. Foram pesquisadas cinquenta e duas
capas em que aparece o(s) “traficante(s)”. Os distintos processos de objetivação são parecidos com o
do final do século XIX, porém, surgem várias formas de sujeito além do “traficante de escravos”;
dentre elas, encontramos pela primeira vez o “traficante de drogas”. Nas capas pesquisadas,
“traficante(s)” continuou sendo utilizado como um adjetivo pejorativo atribuído a determinados
sujeitos, na maioria das vezes envolvendo atos comerciais ou de governo em que houve violação de
regras. Em outras, o discurso midiático atribui “traficante” como sinônimo de “comerciante”, de
forma neutra, sem valoração negativa.
Das cinquenta e duas capas pesquisadas, treze, fazem o uso de “traficante(s)” pejorativamente
(O ESTADO..., [18/07]1901, 30/12[1902], [09/06]1902, [05/06]1903, [25/12]1905, [10/04]1910,
[24/09]1926, [13/09]1949, [02/10]1955, [30/12]1955, [14/06]1958, [23/09]1959, [08/08]1962, p. 1);
por outro lado, apenas três notícias mencionam “traficante(s)” designando a atividade exercida pelo
sujeito na prática comercial, sem quaisquer atribuições negativas (O ESTADO..., [26/07]1905,
[14/01]1910, [02/03]1913, p. 1).
Nas demais trinta e seis capas, “traficante(s)” é utilizado como forma de subjetividade,
proliferando o seu uso pelo discurso midiático: “traficante falsificador de notas” (O ESTADO...,
[30/04]1903, p. 1); “traficante de escravo” (O ESTADO..., [01/11]1903, [20/10]1911, [22/11]1911,
[11/11]1916, [19/07]1946, [16/10]1946, p. 1); “traficante das brancas” (O ESTADO..., [01/08]1913,
[30/10]1915, p. 1); “traficante de emigração ilegal” (O ESTADO..., [06/03]1930, [17/04]1940, p. 1),
“traficante de tóxicos ou drogas ou narcóticos” (O ESTADO..., [29/01]1939, [21/05]1939,
[29/06]1948, [13/01]1952, [25/09]1952, [22/05] 1959, [11/11]1959, p. 1), “traficante de cartões
falsificados” (O ESTADO..., [04/10]1941, p. 1), “traficante de joias” (O ESTADO..., [29/10]1946,
p. 1), “traficante do mercado negro” (O ESTADO..., [22/06]1947, [14/03]1948, [13/07]1949,
[29/04]1952, p. 1), “traficante de água pesada” (O ESTADO..., [29/02]1948, p. 1), “traficante de
cigarros norte-americanos” (O ESTADO..., [27/05]1961, p. 1), “traficante de produtos têxteis” (O
ESTADO..., [16/01]1962, p. 1), “traficante de divisas” (O ESTADO..., [14/06]1962, p. 1), “traficante
de guerra ou armas” (O ESTADO..., [30/11]1949, [18/05]1950, [11/03]1953, [15/05]1957,
[21/01]1958, [22/02]1961, [08/06]1962, p. 1).
A primeira aparição do “traficante de drogas” na capa do Estadão ocorre no ano de 1939.
Além disso, o “traficante de drogas” não ocupa um papel privilegiado dentre as formas sujeito
mencionadas, ao passo que “traficante” ainda é utilizado para designar, também, várias outras
subjetividades, servindo como uma espécie de gênero, complementado pelo tipo de sujeito - quase
sempre, designado pelo objeto ilícito ou irregular comercializado.
Salienta-se, porém, que antes mesmo do “traficante de drogas” ser objeto das capas do
Estadão, em 18/02/1925, a capa do jornal já estava “reduplicando” o discurso jurídico-sanitário da
Liga das Nações - o embrião da atual ONU (ZACCONE, 2011, p. 79). Observe-se:
FISCALIZAÇÃO DE DROGAS
- Genebra, 17 (U. P.) – A Conferencia do Opio resolveu insistir junto ao Conselho da Liga
das Nações para que se faça a escolha de oito technicos para formarem um novo
departamento internacional de fiscalização, afim de impedir o trafico de drogas
estupefacientes. (O ESTADO..., [18/02]1925, p. 1, [sic])
Nesse compasso, novamente aparece a “fiscalização”, esse instrumento de vigília, próprio dos
dispositivos de segurança. Destaca-se que, a partir da segunda metade do século XX, o discurso desta
organização internacional vai sendo encorpado com os moldes da “guerra”, sobretudo através das
convenções de 1961, 1971, 1972 e 1988, que tiveram papel fundamental na globalização da “guerra
às drogas” através de estratégias de “combate” e “aniquilamento”. Ratificamos, todavia, que o
discurso da mídia na primeira metade do século XX reduplicava o “modelo sanitário” da política
criminal de drogas. No Brasil, ainda não existia o “sujeito-traficante” como inimigo a ser combatido,
ao passo que os sujeitos que vendiam drogas, na maioria das vezes, as detinham legalmente e as
vendiam ilegalmente, como uma espécie de contrabando (BATISTA, 1997).
Voltemos ao acontecimento de 1939. Na capa do periódico de 29/01/1939 é noticiado: “Desde
alguns dias a polícia está realisando [sic] diligencias [sic] á [sic] venda e uso de entorpecentes” (O
ESTADO..., [29/01],1939, p. 1); o texto discorre sobre a descoberta de uma suposta “quadrilha de
traficantes”, residente em locais nobres da cidade do Rio de Janeiro, e afirma que em uma das “batidas
policiais” foram encontrados “involucros [sic] de cocaína” (O ESTADO..., [29/01],1939, p. 1). Meses
mais tarde, na capa do jornal de 21/05/1939 aparece a prisão de um “traficante de tóxicos”, procurado
pelos Estados Unidos e que se encontrava no Brasil, de nacionalidade alemã e farmacêutico, cuja
licença foi caçada por irregularidades no exercício da profissão relacionadas à “narcóticos” (O
ESTADO..., [21/05]1939, p. 1). Após diligências policiais, ele foi preso no Uruguai, mediante
comunicação itinerante entres os três países, inclusive, descobriu-se que, no quarto de uma “mulher”,
que morava no mesmo hotel que o “traficante”, havia “[...] grande quantidade de narcóticos e tóxicos
inclusive 5 ampolas de morfina, 4 de pantopan e 3 de sedel” (O ESTADO..., [21/05]1939, p. 1). No
fim da notícia, é informado que essa “mulher” “[...] foi autuada em flagrante. Depois de autuada foi
removida para a Casa de Detenção. Averiguaram as autoridades que ella [sic] é uma viciada,
trabalhando como enfermeira para o fim de mais facilmente adquirir entorpecentes” (O ESTADO...,
[21/05]1939, p. 1 [sic]).
Estamos aqui, no período do “modelo sanitário” das drogas. O discurso midiático volta-se
para um comércio de drogas com circunstâncias distintas da prática contemporânea. Como se vê nas
duas chamadas de capa, não há relato de violência e uso de armas, e os supostos “traficantes” eram
distintos dos propagandeados nas capas dos jornais atuais. Porém, há uma regularidade, já nessa
primeira metade do século XX: o discurso criminológico midiático sustentava a repressão e o controle
através do carcerário ao dito “traficante de drogas” (a cominação legal das penas de prisão durante a
prática sanitária variaram de 01 a 05 anos, ao passo que na prática bélica contemporânea passou a ser
cominada entre 05 a 15 anos, ou seja, a pena mínima foi quintuplicada e a máxima triplicada).
A partir daí, nas demais aparições do “traficante de drogas” em cinco capas do Estadão
durante essa primeira metade do século XX, o jornal materializa discursos específicos sobre o tráfico
de drogas praticado em outros países, sobretudo, nos Estados Unidos (o futuro exportador da guerra
às drogas). Nas capas, é noticiado o seguinte: apreensão de mais de 100 kg de entorpecentes em Nova
Iorque (O ESTADO..., [29/06]1948, p. 1); prisão de “traficantes” nos Estados Unidos que vendiam
“heroína” e “marijuana” para presos em uma Penitenciária (O ESTADO..., [13/01]1952, p. 1); prisão
de um “traficante de entorpecentes” nos Estados Unidos (O ESTADO..., [22/05] 1959, p. 1); prisão
de três mexicanos e três cubanos nos Estados Unidos com os quais foi apreendida maconha em valor
aproximado de cento e oitenta mil dólares (O ESTADO..., [11/11]1959, p. 1); campanha de governo
do Egito que “[...] pretende promulgar uma lei, que pune com a pena de morte os traficantes de drogas
e com a de prisão com trabalhos forçados os viciados.” (O ESTADO..., [25/09]1952, p. 1).
As capas do Estadão e o discurso sobre os “traficantes de drogas” nos Estados Unidos serve
à estratégia do dispositivo midiático da época. No Brasil as drogas não representavam um “ponto
crítico” para a gestão de populações por meio dos dispositivos de segurança, tanto que nessas
primeiras aparições do “traficante de drogas” nas capas do Estadão sequer é possível afirmar a
emergência de um “sujeito-traficante”, tratando-se mais de uma série que relacionava o comércio de
drogas e o crime, geralmente em outros países. Porém, o dispositivo jurídico tomou de empréstimo a
potencialização da criminalização das drogas
96 dos norte-americanos. Essa situação, aliás, foi uma
das possibilidades de deslocamento da prática de criminalização do “tráfico de drogas” no Brasil, de
um “modelo sanitário” para um “modelo bélico”. É no interior desse “modelo bélico” que emerge o
“sujeito-traficante”. Seguindo Nilo Batista (1997), o deslocamento data discursivamente o ano de
1964, e será objeto de análise pelas capas do Estadão na próxima seção.