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CAPÍTULO IV – INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS Nova

8.1 Conceito, natureza jurídica e finalidade

Não se trata de um novo recurso, novo processo ou ação, mas de um incidente. Classificar esse novo instituto como incidente nos leva, antes de tudo, a conceituar incidente.

O termo incidente tem sua origem no verbo incidir, do latim incidere. Segundo De Plácido e Silva, incidente pode ser conceituado como “a superveniência de fato ou de questão, que ocorre quando se trata de outro fato ou questão, de que se mostra acessório, e esta, a principal”525.

De acordo com sua origem etimológica aquilo “que cai em cima de algo em movimento, interrompendo seu curso normal”526. Por sua vez, incidente processual significa “aquilo que se insere no processo, podendo interromper seu movimento, podendo obstaculizar o seu caminhar” 527.

Assim verificamos que o incidente de resolução de demandas repetitivas, por sua natureza, é algo estranho ao processo na qual ele se insere, não se constituindo em ato ou termo essencial do processo. Justificamos a natureza do instituto, afirmando que não pode ser processo, pois esse novo instituto somente surge no curso de um processo. Para que ele possa ser instaurado se faz necessário que exista um processo. Também não se trata de recurso, haja vista que não há decisão anterior que se requer reforma ou anulação528.

525 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 12. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 445 526 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 29

527 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 29

528 “[...] o recurso é dirigido contra uma precedente decisão e o incidente introduz uma nova questão que será

resolvida mediante apreciação jurisdicional. No incidente há uma indagação colateral, substancialmente estranha ao thema decidendum ainda que a ele ligado; o recurso pretende um novo julgamento a respeito do

Dizer apenas que esse novo instituto tem natureza de incidente, todavia, não é suficiente, pois o incidente pode estar relacionado à solução de certas questões, que produz uma simples dilatação no curso do processo; pode provocar a formação de um procedimento lateral ao processo; ou até mesmo provocar a constituição de um novo processo (processo incidental).

Parece-nos que no caso em questão estamos diante de um incidente processual529. Não se trata de processo incidente porque não resulta num direito de ação. Não há nova relação jurídica processual, nem pretensão autônoma. Representa ele uma alteração da marcha processual530.

A questão de direito objeto do incidente de resolução de demandas repetitivas pode ser resolvida no curso do próprio processo, sem alteração procedimental. Todavia, havendo requerimento para instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas, formar-se-á um procedimento separado para resolução destas questões de direito. Para que haja a resolução da questão de direito de forma objetiva, foge-se à normalidade do processo.

Esse incidente que ocorrerá numa demanda individual (ou até mesmo coletiva) e terá por finalidade a objetivação da questão de direito existente na(s) lide(s) selecionada(s). Descartamos também a possibilidade de enquadramento do instituto como processo, tendo em vista que o juiz também poderá dar início a ele (se fosse processo, o juiz não poderia, como regra, iniciá-lo531). A questão controvertida capaz de gerar a multiplicidade de processos será submetida ao Tribunal, para posteriormente o juízo a quo prosseguir na análise das demais questões do processo, aplicando-se o entendimento exarado pelo Tribunal no tocante à quaestio juris.

No que tange à objetivação e à multiplicidade de processos que envolvam as mesmas questões de direito, o projeto não fala quantas demandas devem ser propostas para que sejam consideradas repetitivas a ponto de ser passível o incidente.

que já foi objeto de resolução anterior”. (FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 39)

529 Em sentido contrário, entendendo que se trata não de incidente processual, mas de “avocação pelo tribunal de

parcela das questões relevantes para o mérito”: YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo. ano 37. vol. 206. São Paulo: RT, 2012, p. 243 e ss. A prevalecer tal conclusão, o próprio incidente de uniformização de jurisprudência também não é incidente, com o que não concordamos.

530 FERNANDES, Antonio Scarance. Incidente processual. São Paulo: RT, 1991, p. 41

531 Há exceções à inércia do juiz. São elas: a possibilidade de abertura de inventário de ofício e a concessão de

No direito inglês, o CPR nada fala sobre o tema. Apesar disso, afirma-se lá que não se fará a ordem para a reunião de demandas se não houver, pelo menos, dez demandas ajuizadas532.

Podemos mencionar que essa objetivação da solução da questão de direito pode decorrer de uma atuação preventiva, diferentemente do que ocorre com os julgamentos de recursos representativos de controvérsias. Isso porque a submissão do recurso ao procedimento do art. 543-C, por exemplo, é realizada de forma a atacar o maior número de recursos “repetitivos”. Os recursos já são vários e, por isso, o STJ submeteu um ou alguns deles ao procedimento do art. 543-C. Já a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas poderá ocorrer sem que haja a grande repetitividade de demandas, bastando a mera potencialidade capaz de gerar “grave insegurança jurídica”.

Poder-se-ia dizer que isso tornaria o Tribunal em órgão consultivo? A resposta deve ser negativa. O fato de não haver demanda perante o Tribunal e de a mera potencialidade em gerar multiplicação dar ensejo ao incidente por si só não faz com que o Tribunal seja utilizado como órgão consultivo. Muito pelo contrário. O Tribunal estará, desde já se pronunciando em casos concretos sobre sua forma de interpretar e aplicar o direito abstrato àquele caso concreto e a outros a ele similares.

A desnecessidade de multiplicação de demandas faz com que poucos sejam os argumentos levados ao Tribunal para apreciação da causa com a objetivação esperada. Segundo Leonardo José Carneiro da Cunha, melhor seria que houvessem decisões tanto num sentido como noutro para que o Tribunal tivesse melhores subsídios para apreciar a questão de forma objetiva533. Não obstante, pensamos que não haveria necessidade de haver decisões num ou noutro sentido, como ocorrem com os “recursos repetitivos” processados pelos art.

532 HODGES, Christopher. Multi-Party Actions. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 30 “The Rules do

not prescribe a minimum number of claims for which a GLO order will be made. The Practice Direction is also silent on the point, although a draft of it had stated that, in general, the court will not make an order unless there are at least ten separate claims raising common issues. The number ten had been mentioned from 1992 to 1997 under Legal Aid Board’s Arrangements, which defined a multi-party action as: any action or actions in which 10 or more assisted persons have causes of action which involve common issues of fact or law arising out of the same cause or event”.

533

“Seria mais adequado prever o incidente quando já houvesse algumas sentenças antagônicas a respeito do assunto. Vale dizer que, para caber o incidente, seria mais adequado haver, de um lado, sentenças admitindo determinada solução, havendo, por outro lado, sentenças rejeitando a mesma solução. Seria, enfim, salutar haver uma controvérsia já disseminada para que, então, fosse cabível o referido incidente. Dever-se-ia, na verdade, estabelecer como requisito para a instauração de tal incidente a existência de prévia controvérsia sobre o assunto”. (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. ano 36. vol. 193. São Paulo: RT, 2011, p. 255 e ss)

543-B ou 543-C do CPC. O fundamental é que haja diversas demandas com os mais variados argumentos jurídicos, tanto num como noutro sentido.

Como o projeto não traz essa consideração e também permite que apenas uma demanda sirva de base para a análise da questão de direito, pensamos que a vinculação prevista se daria apenas aos argumentos analisados pelo Tribunal, excluindo da vinculatividade demandas idênticas, mas que tenham fundamentação diversa daquela ou daquelas que foram objeto de análise pelo Tribunal.

Sobre a definição de demandas repetitivas, o projeto também não traz menção sobre qual o critério para verificação se uma demanda é ou não repetida.

Sabemos que os elementos da ação (partes, causa de pedir e pedido) servem para identificar uma demanda e que a identidade destes três elementos leva à identidade de ação, fazendo com que uma deva ser extinta (em razão da litispendência ou, se a anterior já transitou materialmente em julgado, em função da formação da coisa julgada).

Uma coisa é certa: não se esta aqui a falar da identidade de elementos. Quais seriam então os subsídios para identificar uma demanda repetitiva? Na dicção do art. 930 do projeto fala-se na existência de controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos. Mas como determinar se há possibilidade de verificar esse surgimento de relevante multiplicação de processos? Não seria pela identidade de partes, e também não seria pela existência de uma parte ser autora ou ré em diversas demandas que haveria a repetitividade referida. Também não decorreria da repetição de pedidos. Os pedidos podem até ser semelhantes, mas o pedido poderá ser diverso e restar configurada a repetitividade534. Apesar

de o art. 930 do projeto falar em idêntica questão de direito, o direito não se desvincula dos fatos, tanto que a causa de pedir engloba fatos e fundamentos. O incidente, em tese, não se preocupa com os fatos, mas não podemos ignorá-los na análise do incidente. Assim a questão que precisará ser verificada no incidente são os fatos e fundamentos da demanda, ou seja, a causa de pedir, mas isso não significa que precisa haver identidade de causa de pedir. Exemplificando, numa discussão sobre a nulidade de determinada cláusula contratual porque abusiva, cada pessoa ajuizará sua demanda tendo como fato a celebração de seu contrato. Os

534 Pensamos que, via de regra, os pedidos serão similares, mas poderá haver situações em que o pedido é diverso

e haverá repetitividade, como no caso de ação constitutiva negativa e ação condenatória, mas fundados em causas de pedir similares. Em sentido contrário: BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito necessário para o processamento das demandas de massa. Revista de processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 87 e ss.

fatos são distintos, logo não há identidade de causa de pedir. O que precisa haver é similitude e não identidade entre as diversas demandas, que será verificada por meio da semelhança em relação aos fatos e fundamentos. A essas situações semelhantes, consideradas pelo projeto como demandas repetitivas, Antonio Adonias Aguiar deu o nome de “situações jurídicas homogêneas”535.

Desta forma, entendemos que haverá “demandas repetitivas” quando a causa de pedir for idêntica, independentemente de as partes ou os pedidos serem diferentes (não importa, num primeiro momento, se a parte é o consumidor A, B ou C, ou se a ré é a pessoa jurídica X, Y ou Z, ainda se o pedido feito for de restituição ou condenação).

Os fatos, apesar de aparentemente não serem essenciais para a análise da questão, devem necessariamente ser analisados, sob pena de desvirtuamento do procedimento536.

Para Igor Bimkowski, apenas os direitos considerados individuais homogêneos é que poderiam ser enquadrados como demandas repetitivas537. Apesar dessa consideração, pensamos que possa haver repetição de demandas envolvendo direitos coletivos stricto sensu como, por exemplo, a legalidade ou não da cláusula existente em contrato de consórcio, afirmando que em caso de desistência os valores somente serão devolvidos ao término do prazo do grupo538. Nesse caso, afetará até mesmo direitos difusos, pois se for legal a inclusão da cláusula, futuros consorciados terão que se submeter a ela. Se for ilegal, os agentes financeiros terão que excluir tal cláusula dos futuros contratos.

É certo que a maioria dos casos a serem tratados pelo Judiciário como demandas repetitivas envolvem relações de massa e poderão ser enquadradas como direitos individuais homogêneos, mas não devemos ter isso como regra, pois o incidente de resolução de

535 “Cuida-se de demandas-tipo, decorrentes de uma relação-modelo, que ensejam soluções-padrão. Os

processos que versam sobre os conflitos massificados lidam com conflitos cujos elementos objetivos (causa de pedir e pedido) se assemelham, mas não chegam a se identificar. Cuida-se de questões afins, cujos liames jurídicos materiais concretos são similares, entre si, embora não consistam num só e mesmo vínculo” (BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito necessário para o processamento das demandas de massa. Revista de processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 87 e ss.)

536

Voltaremos a tratar dos fatos quando tratarmos da “idêntica questão de direito”.

537 ROSSONI, Igor Bimkowski. O “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” e a Introdução do Group

Litigation no Direito Brasileiro: Avanço ou Retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/tex/listagem- de-artigos/50-artigos-dez-2010/7360-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do- group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso, acesso em 07.11.2011, às 11h13

538 No mesmo sentido: BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Situações jurídicas homogêneas: um conceito

necessário para o processamento das demandas de massa. Revista de processo. ano 35. vol. 186. São Paulo: RT, 2010, p. 87 e ss.

demandas repetitivas veio para solucionar não apenas um problema coletivo539, mas também um problema decorrente da não obediência a precedentes dos Tribunais.

Considerando o exposto, podemos conceituar o instituto como sendo um incidente processual, instituído em primeiro ou segundo grau de jurisdição, com a finalidade de objetivação da solução de uma questão de direito passível de multiplicidade de demandas, para que a tese jurídica resolvida no incidente seja aplicada aos demais processos.