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4.1 Conceito sistémico de família

Constituindo um fenómeno universal, a instituição familiar tem assumido, ao longo dos tempos, diversas formas. Mais recentemente, e na sequência de transformações demográficas e sócio-económico-políticas importantes, o modelo da família nuclear impôs-se como protótipo da organização familiar ideal. Com efeito, o seu peso conceptual é notório, mesmo num período em que novas evoluções suscitam o aparecimento e o incremento de outras organizações familiares em relação às quais o modelo de funcionamento da família nuclear tradicionaló nem sempre se adequa. É o caso das famílias monoparentais, das famílias de homossexuais ou mesmo das famílias reconstituídas.

Apesar das transformações que o conceito de família possa vir a sofrer, e cujo estudo é já hoje um desafio para os investigadores, o conhecimento e a compreensão que a teoria sistémica nos possibilita leva-nos a sintetizar algumas das ideias fundamentais. Não pretendemos, nestas páginas, fazer um resumo da teoria sistémica, nem tão pouco uma síntese da sua aplicação à família. Apenas enunciaremos alguns dos conceitos e ideias que se nos apresentam como pertinentes para a compreensão da temática que nos propusemos investigar.

Embora a família possa ter o seu início num fenómeno biológico, a verdade é que esta se transforma, cada vez mais, num fenómeno psicossocial. Com efeito, a função de reprodução, primeira referência da família, é hoje considerada como apenas uma entre outras "...A definição de família não depende só dos laços sanguíneos, mas também e

sobretudo das ligações afectivas'''' (RELVAS, 1982, p.310).

A protecção dos seus membros constitui uma das funções primordiais da família, particularmente traduzida no cuidar e criar dos filhos. Mesmo quando partilha com outras instituições sociais a educação das crianças, a família constitui o primeiro e o mais permanente espaço formativo, em níveis em que factores objectivos e subjectivos, conscientes e inconscientes, actuais e passados, tradicionais e míticos se entrecruzam permanentemente.

Activando-se esta função protectora da família com o nascimento e crescimento dos filhos, a verdade é que ela é de novo directamente solicitada sempre que é necessário cuidar dos membros velhos e inválidos, sobretudo numa época em que ao modelo do Estado Providência se contrapõe a importância da inserção familiar.

A dimensão continente da família é igualmente considerada como primordial em situações críticas da vida familiar, como é o caso da crise acidental provocadas pelas situações de doença e com uma visão particular quando um membro sai da família porque tem que ficar internado.

A doença e a incapacidade subsequente exigem, com frequência, transformações estruturais relevantes, podendo mesmo solicitar uma alteração da função económica dos diferentes membros ou até da própria família.

Sendo, então, um grupo natural, onde a interdependência dos seus elementos é uma realidade marcante, a família pode, em certos casos, confundir-se com o agregado familiar e incluir todos aqueles que vivem sob o mesmo tecto e se submetem a uma mesma autoridade. De acordo com GONÇALVES (1980, p.413) "... ao abordar a

família como um sistema encará-la-emos como um conjunto de pessoas vivendo (geralmente) juntas, entre as quais existem, de modo repetitivo, interacções circulares (isto é, os comportamentos de um membro afectam todos os outros - a família no seu conjunto - e reciprocamente'", tornando-se assim, significativo compreender o

funcionamento deste sistema face à doença na idade adulta.

Para além da circularidade comunicacional e da natural interdependência entre os membros, a família constitui um grupo que, no seu conjunto, é muito mais do que a soma das suas partes, isto é, do que a soma dos seus elementos. Se esta noção de totalidade constitui uma ideia importante, que confere à família uma realidade e uma vida própria a verdade é que ela diz igualmente respeito à unidade mais pequena do sistema - o indivíduo que também deve ser visto como um todo interdependente - bem como aos restantes sistemas, num modelo que se pretende efectivamente ecológico. A afirmação da capacidade auto-organizativa do sistema vem conferir um valor próprio à noção de interdependência e de estrutura familiar. Se a propriedade da equifinalidade já permitia relativizar a noção de família como sistema aberto, dependente do exterior, a

forma como teoricamente se pensava o equilíbrio entre permanência e mudança, respectivamente concebidas como homeostase e morfogenese, diminuía a dimensão organizativa interna e a autonomia do próprio sistema.

Para MINUCHIN (1990), a família é um grupo natural que, através dos tempos, tem desenvolvido padrões de interacção. Os padrões desenvolvidos constituem a estrutura familiar, onde cada um dos elementos é uma unidade pertencente a um todo e em interacção com todas as outras unidades. Por outras palavras, cada indivíduo é, ou deve

ser, um sub-sistema bem diferenciado na família e que interage com esta, tal como com a restante sociedade.

Organizando-se desta forma, socializando os seus elementos e permitindo-lhes um desenvolvimento autónomo, inscrito num sentimento de unicidade7 familiar, a família cumpre a sua dupla função e desenvolve-se num equilíbrio dinâmico entre abertura e fecho relativamente aos outros sistemas com os quais co-evolui.

A eficácia de uma tal organização e evolução depende da clareza e funcionalidade do arranjo hierárquico e, naturalmente, da clareza dos limites intra e inter sub-sistémicos. Um indivíduo tem um papel na família nuclear (por exemplo pai ) e outro na família alargada (por exemplo filho); ao mesmo tempo, é trabalhador de uma empresa e faz parte de uma associação. Embora pertença a uma família, o indivíduo não se esgota nela. Nem os diversos elementos ocupam espaços idênticos fora e dentro dela.

Figura 11 - A família e os seus elementos

Fonte: adaptado de Minuchin; Fishman,1990, p. 25

Para que o sistema familiar cresça harmoniosamente será importante que cada elemento respeite os limites estabelecidos entre indivíduos, entre sexos e entre gerações. Por outras palavras, é necessário que sejam claras as fronteiras entre os sub-sistemas conjugal, parental, filial e fraternal. E claros também os limites entre os diferentes constituintes. Só desta forma serão evitada situações potencialmente disfuncionais. A complexidade relacional no meio familiar leva-nos a compreender a maior ou menor necessidade expressa pelos vários membros da família durante o internamento ou até da participação destes nos cuidados, acresce ainda as funções que cada membro desenvolve

"é fácil verificar que todos eles têm características diferentes, a que corresponde diversos papéis, funções, estatutos e posicionamentos'''' ( RELVAS,2000:23).

Figura 12 - Participação dos membros na família

Fonte: adaptado de Relvas, 1982, p.318

Dissemos anteriormente que a família é uma unidade flexível que se adapta delicadamente às influências internas e externas. Este equilíbrio opera-se em dois eixos: o sincrónico, relativo ao espaço das relações do sistema, sub-sistemas e supra-sistemas, isto é, do ambiente com a sua estrutura, e o diacrónico, respeitante ao tempo em que se dá a abertura e o fecho. O fechar significa, assim, o tempo de manutenção, de conservação, enquanto que o abrir representa a adaptabilidade, a evolução e a mudança. O equilíbrio dinâmico entre estes eixos parece potenciar o funcionamento saudável. A estrutura da família, os seus laços e limites, a interacção e a comunicação, bem como a individualização e a socialização, realizam-se no eixo sincrónico. No eixo diacrónico opera-se o equilíbrio entre estabilidade e mudança quer ao nível do quotidiano quer ao nível da dimensão desenvolvimental e transgeracional.

Na família, a primeira função é a articulação do indivíduo com a sociedade e isto faz-se no eixo sincrónico, num movimento pendular entre individualização e socialização. A partir deste movimento podemos encontrar situações que alguns autores consideram como patológicas. É o caso da hiper e hipo- individualização. Por individualização entende-se autonomia, independência, solidariedade; por hiper-individualização, solidão, isolamento, separação autista, descompromisso, distância emocional; por hipo-

individualização emaranhamento e indiferenciação. A saúde da família surge na complementaridade e no respeito pelo outro, na sua diferença, e exprime-se por um equilíbrio dinâmico entre estabilidade e flexibilidade.

Individualização integrada

Ser

"ele próprio "

Individualização

Isolamento

Estar com os outros

Socialização

Fusão

Pseudo-individualização

Figura 13 - Individualização, socialização

Fonte: adaptado de Bénoit, et ai, 1988, p.211

Finalmente, o equilíbrio entre permanência e mudança perspectiva ainda as relações transgeracionais, estando presente, desde logo, no próprio modelo familiar construindo, na consciência das várias gerações e na gestão das suas relações quotidianas, nas práticas educativas implementadas, nas tradições mantidas, etc.. Do seu equilíbrio depende a vivência de ligações e lealdades transgeracionais funcionais. Só assim a família extensa se configura como fonte de suporte e não como fonte de stress. Este aspecto pode ser particularmente importante no caso de que nos ocupamos, quando o doente tem de reentrar de forma diferente na sua família, eventualmente numa família que se alargue para o receber e que por um período mais ou menos tempo se manteve afastado.

A história e a mudança na família, digam elas respeito a acontecimentos do dia a dia, a fases do ciclo vital ou a vivências transgeracionais, são operacionalizados no eixo diacrónico.

As mudanças quantitativas ou de Ia ordem estão permanentemente a ocorrer no dia a dia

de cada família. A sua flexibilidade para conseguir um equilíbrio dinâmico entre estabilidade e mudança exige esta contínua correcção realizada ao nível das regras e dos papeis. Por outras palavras, estamos perante a adaptação resultante da capacidade de resolução de problemas e da negociação, o que nos leva a questionar até que ponto os profissionais de saúde têm em conta estes aspectos durante o internamento dos seus doentes?

Mudanças de natureza qualitativa, ou de 2a ordem, ocorrem necessariamente a médio

prazo, quando o equilíbrio de que anteriormente falámos se reporta às diferentes fases do ciclo vital ou acontecimentos importantes e exige uma outra maneira de ser ou uma outra estruturação do sistema. A natureza do equilíbrio e das transformações agora requeridos exigem não só uma grande flexibilidade por parte do sistema como indiciam que a funcionalidade da família está ligada ao seu desenvolvimento, pelo que um atraso, um avanço ou um passo em falso podem conduzi-la a um maior ou menor disfuncionamento. Da capacidade da família resolver criativamente as tensões e as crises possíveis depende o seu desenvolvimento. Alianças e coligações permanentes, eventualmente triangulações rígidas, encaminham a família para situações em que, como adiante veremos, a mudança não traz nada de novo a não ser a de cada vez repetir mais a mesma coisa. Este equilíbrio de que temos estado a falar é igualmente necessário sempre que a família é confrontada com uma situação de dependência num dos seus elementos. " A adaptabilidade dos sistemas autopoéticos permite mudar as

suas estruturas quando as condições internas e externas mudam, mantendo, ao mesmo tempo a sua coerência (...). Na patologia, podíamos dizer, que, muito abertas, as reacções tornam-se caóticas: as famílias são tocadas e frequentemente atingidas pelos acontecimentos; muito fechadas as reacções tornam-se rígidas, e (...) as estratégias ineficazes repetem-se " BÉNOIT (1988: 213).

O internamento e a doença tornan-se duas identidades que vão provocar mudanças quer de Ia quer de 2a ordem, particularmente porque estamos a centrar os nossos discursos no

doente adulto.

Numa visão sistémica podemos afirmar que as famílias espontaneamente vão mudifícando face às condições internas e externas, contudo, podemos afirmar " a

família evolui, transformase, os membros que a constituem alteram-se, más ela não deixa de ser família, «aquela família»" ( RELVAS, 2000:24).