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4.6-O doente internado e a família

Partindo do princípio fundamental de que todas as pessoas e famílias devem ter igual acesso às oportunidades e recursos da comunidade põem-se em causa ideias e sistemas de valores tradicionais. Neste contexto surge o movimento pela integração de pessoas com deficiência, que radica no conhecimento de que a segregação é, em si, um acto social poderoso que afecta negativamente o desenvolvimento pessoal e o percurso do indivíduo e da sua família.

Com efeito, a deficiência (neste caso a doença), a incapacidade e desvantagem não afectam apenas o doente mas toda a sua envolvência, a começar pela família. "A

dinâmica familiar é outro aspecto investigado, pois com o estabelecimento de uma deficiência em um de seus membros, geralmente ocorrem inversões de papéis, sofrimento pelas perdas e uma mudança na maneira de perceber o paciente. Neste

sentido, torna-se mister uma avaliação da configuração familiar."(ALVES et ai,

199:141).

Como se depreende de tudo quanto afirmámos até ao momento, as relações que se estabelecem entre o indivíduo e o seu meio podem ser caracterizadas pelo modelo ecológico9

Segundo PINTO (1994:106), este modelo assenta em dois postulados fundamentais:

1) "O primeiro afirma que as relações que se estabelecem entre o indivíduo e o seu meio são transaccionais, ou seja, recíprocas ".

Assim, a abordagem da integração do deficiente não é um problema a ser analisado apenas na vertente individual, mas temos que considerar que as mudanças também vão ocorrer no ambiente, nomeadamente no familiar.

2) "O segundo postulado estabelece que as características do meio, tal como são experimentadas pelo indivíduo, afectam o seu desenvolvimento. "

O outro lado da questão está na importância dos contributos da família para o desenvolvimento da integração do próprio indivíduo. Neste sentido, é importante compreender como é que o indivíduo interpreta os acontecimentos e as interacções em que se envolve.

Sobre a vivência da doença, existem pelo menos, dois registos perceptivos importantes que não devemos ignorar nem descurar: a opinião familiar, com a sua definição única do que significa a integração e de como ela deve ser atingida, e a do indivíduo, com a sua vivência pessoal da doença e do nível de incapacidade, bem como com a ferida narcísica subsequente. A natureza incapacitante da patologia provoca muitas mudanças importantes na vida das pessoas, as quais são vivenciadas num registo de sofrimento que gera angústia.

A sua atenção está muitas vezes voltada para o que perdeu, supervalorizando a situação, pelo que as incapacidades passam a dominar. É então comum ocorrerem sentimentos de inutilidade, inadequação, inferioridade, podendo surgir um quadro depressivo importante ou mesmo uma depressão. A compreensão do significado destes sentimentos tem de ser tentada no cruzamento da história pessoal e familiar e na vivência do luto pelas perdas sofridas 10. Pela natureza das incapacidades, os pacientes, bem como as

Este modelo facilita ainda a identificação dos obstáculos e os apoios que se colocam ao processo de integração das pessoas com deficiência e das famílias na comunidade.

10 E óbvio que a forma como este trabalho de luto é realizado está estritamente ligada à capacidade de fazer face à perda, qualquer que ela seja, e de vivência e ultrapassar as vivências depressivas

suas famílias, são sujeitos a transformações estruturais importantes que'podem tocar a organização hierárquica, a atribuição de papéis, o jogo da autonomia - dependência, as alianças e coligações estabelecidas, as lealdades familiares, etc. Uma das áreas frequentemente atingidas é a da sexualidade, com todas as implicações que tal facto tem no plano relacional. "Após a instalação da deficiência, relatos dos pacientes mostram

um desconhecimento a respeito das suas condições nesta área (da sexualidade) e do próprio corpo, reflectindo o medo de enfrentar mais uma perda numa área vital. Essa dificuldade é vivenciada pelas pessoas do sexo masculino como mais uma perda"

(ALVES et ai., 1993:141). Nas mulheres parece mais frequente que a doença justifique um desinteresse anterior, mas não assumido.

Pela ferida narcísica operada e pelo trabalho de luto necessário, mas difícil, e nem sempre realizado de forma adequada quer pelo próprio, quer pelos seus familiares, as relações interpessoais podem assumir um colorido ambivalente em que a agressividade, por um lado, e os ganhos secundários , por outro lado, pautam o seu desenvolvimento. É importante não esquecer que nos ocupamos, neste trabalho, de uma situação de doença crónica. Como o próprio nome indica, ela atinge o indivíduo por um período longo de tempo, exigindo um reajuste de todas as áreas de vida do seu portador e dos seus envolventes. Sublinhamos, de novo, este último aspecto não só pela importância que tem como pelo esquecimento de que muita vezes é alvo, apesar de ser relativamente consensual que a instalação de uma doença crónica ou incapacitante se reflecte na família: "a descoberta de uma dessas doenças provoca sempre uma crise numa família,

porque põe em causa toda a organização da vida quotidiana e das relações entre as pessoas" (CAMDESSUS et ai., 1989:103).

O grau de adaptação da família à doença passará pela sua capacidade de mudança, isto é, pela forma como encara e supera o stress experimentado, o que naturalmente se reflectirá sobre o seu arranjo estrutural. O momento do ciclo vital em que a doença ocorre e o elemento directamente atingido parecem-nos aspectos importantes a considerar. Com efeito, uma doença crónica grave num dos pais pode prejudicar seriamente a integridade familiar, a ponto de terem que efectuar-se mudanças substanciais nos papéis e funções familiares.

O alívio dos efeitos desta crise acidental passa pelas capacidades da família em relação à coesão, ao comprometimento com a unidade familiar, à flexibilidade dos seus

concomitantes. O sistema familiar pode aqui, uma vez mais, apresentar-se como fonte de suporte ou de

membros ou adaptabilidade e ainda à capacidade para utilizar recursos externos. ACKERMAN (1986:23), ao analisar o problema da doença, diz que o resultado desta não é tanto a forma do sintoma, mas antes a capacidade integrativa do indivíduo para lidar com o conflito e ainda a maneira como as relações familiares são desenvolvidas . É ainda de opinião que: "(9 resultado final na adaptação repousa não simplesmente na

natureza dos conflitos e sintomas do indivíduo, mas em seus recursos totais para lidar com eles, ou seja, no potencial integrativo de sua personalidade e no carácter psicológico do grupo familiar do qual ele é uma parte." É neste sentido que teremos

que voltar a nossa atenção, mesmo na vivência de uma incapacidade física, não só para o indivíduo mas também para a experiência familiar quotidiana.

A incapacidade para a realização do autocuidado e para as actividades da vida diária requer a presença mais ou menos constante de uma pessoa. A forma como a dependência gerada vai ser vivida pelo paciente e pelos seus familiares dependerá, em muito, do modo como a própria doença é aceite e vivida, já durante o internamento, bem como da configuração relacional prévia à doença, nomeadamente no tocante à vivência do dinamismo dependência - autonomia e individualidade - coesão familiar. A família terá que mudar, mesmo que parcialmente, as suas actividades e rotinas.

Como forma de fazer face a um stress acidental e excessivo que exige uma rápida reestruturação do padrão de autonomia-dependência, é habitual surgir um contexto relacional de superproteção. Em algumas situações, esta superprotecção poderá também significar uma tentativa de sossegar a própria culpa ou falta de atenção. Em qualquer dos casos, contudo, a superprotecção desenvolvida não será boa para o doente, pois este não terá oportunidade de se restabelecer, desenvolvendo todo o potencial remanescente. Muitas vezes, com tal comportamento, ele é mesmo impedido de se reabilitar.

Podem ocorrer, ainda, situações de famílias em que algum dos seus membros esteja à espera, por um mecanismo inconsciente, de ter oportunidade de viver o prazer de abdicar da sua própria vida em favor do outro. Este querer fazer tudo pelo deficiente é muitas vezes para evitar entrar em contacto com a sua própria angústia, face a uma impotência. Não será mais do que um mecanismo de identificação projectiva, sentindo a angústia decursiva da deficiência física. O comportamento oposto, de total falta de atenção dos familiares, poderá também surgir em consequência de uma atitude defensiva, desenvolvida para evitar entrar em contacto com a angústia desencadeada pela deficiência.

No início da doença há, pois, uma desestruturação da famílias sendo esta obrigada,

posteriormente, a redistribuir as suas tarefas. Esta tarefa, sublinhamos de novo, não se circunscreve ao sub-sistema a que pertence o elemento atingido, mas reflecte-se nos restantes. Muitas vezes terão mesmo de ser os filhos a realizar tarefas que até aí eram exclusivamente dos pais. "...<?' importante a adequação de papéis e uma nova

organização de responsabilidade entre os elementos desta, afim de se restabelecer um equilíbrio interno. Em função desta inversão, frequentemente aparecem conflitos internos relativos à dependência versus independência, que tem um correlato psíquico de submissão versus autoridade."(ALVES et ai, 1993:148).

Se o quadro é manifestamente complexo nos casos de incapacidades, não o é menos nas situações em que apenas ocorrem alterações de memória, ou labilidade emocional. Com efeito, nestas situações, a família e o próprio doente nem sempre aceitam o trabalho reestruturativo necessário, mas menos evidente. É difícil aos familiares compreenderem os comportamentos do doente sem terem um conhecimento mais ou menos profundo dos sinais e sintomas que podem surgir e porquê.

A análise da situação familiar do doente com deficiência deve, assim, ser vista sempre de forma individualizada. Havendo um processo dinâmico entre o deficiente e a sua família, o profissional de saúde não é mais o perito, ou o especialista, único detentor do saber, mas apenas um facilitador a quem compete criar as condições, as oportunidades e os meios para as famílias poderem utilizar as suas capacidades e adquirir novas competências. Só assim poderão ser autónomas e consolidar a sua dinâmica familiar. Entregar o doente à família esquecendo a sua dinâmica, será atender apenas a uma parte do indivíduo pois, como se disse, ele é pertença de uma família.

No sentido de envolver a família do doente, SALIMENE (cit. in SOBRINHO et ai. 1993) propõe o seguinte modelo baseado em funções especificas para as quais, os profissionais, fazem um diagnóstico com o recurso a determinadas técnicas e daí oponta para uma metodologia interventiva que se torna uma mais valia no estudo da problemática da parceria.

O envolvimento da família é um percurso na diferença entre os profissionais e seus objectivos e as famílias, seus valores e finalidades.

Funções Metodologia Diagnostica Metodologia Interventiva Técnicas Proporcionar

condições para que a família participe efectivamente no processo de reabilitação identificação das condições estruturais e motivacionais para participação na problemática do doente esclarecimento e interpretação do programa de reabilitação mobilização dos recursos familiares para oferecer retaguarda necessária entrevistas individuais e /ou conjuntas visitas às dependências do domicílio Fornecer subsídios para a integração do cliente no meio familiar. - estudo da estrutura e dinâmica familiar - análise das barreiras culturais, sociais e físicas do ambiente familiar esclarecimento quanto à evolução do cliente no programa e quanto às necessidades surgidas. contactos com profissionais das várias áreas. Fornecer subsídios para que a família

participe da problemática do doente no contexto social amplo análise da potencialidade do meio familiar consciencialização quanto às limitações e potencialidades do cliente e família mobilização de barreiras sociais e culturais consciencialização quanto a atitudes negativas da família frente à pessoa deficiente - dinâmica de grupo entrevistas com familiares. - visita domiciliar.

Quadro 2 - Modelo metodológico para envolver a família do doente Fonte : adaptado de Sobrinho et ai., 1993:158

A atenção exigida pelo elemento deficiente e o apoio especial de que este carece permanentemente sobrecarregam as respectivas famílias, muitas vezes até ao limite das suas capacidades físicas , psíquicas e económicas. Algumas vezes, a deficiência é ultrapassada, mas a família tem que fazer uma mudança dentro da sua organização para conseguir entrar num novo período de homeostasia.

O apoio a prestar a estas famílias requer dois tipos de tomada de decisão: por um lado, um esforço para desenvolver uma relação de parceria com cada família, proporcionando-lhe ajuda de acordo com os seus valores e prioridades, por outro lado, uma nova atitude por parte dos profissionais que cuidam e tratam estes indivíduos. Sintetizando, o apoio a estas famílias deverá ter por base alguns princípios, tais como:

A abordagem deve ser individualizada, pois" cada • sistema tem necessidades e características específicas. Os interesses, os recursos e as prioridades da família têm que ser compreendidos e são únicos;

A integração deve ter por base prioridades da própria família, e comunidade onde está inserida, e não apenas os objectivos organizacionais dos serviços ou instituições;

A intervenção do profissional deve ter em conta o suporte da própria família.

Por outro lado, deve implicar as redes de suporte social existentes .A intervenção centrada na família coloca alguns problemas. Há profissionais que levantam questões como :

- " e como proceder se as famílias identificam necessidades que vão além das

definidas tradicionalmente como de apoio à família?

- o que fazer se as famílias desejarem serviços que não existem na comunidade?

- Como resolver conflitos quando os técnicos e as famílias têm diferentes opiniões sobre as prioridades e objectivos da intervenção?

- As respostas a estas e outras questões passam pela aceitação de que este tipo de

intervenção nunca é individual ou institucional. O processo de integração da pessoa deficiente e das famílias tem que ser uma co-responsabilização de vários agentes sociais, ainda que a ajuda às famílias com deficientes requeira um esforço de liderança capaz de promover a participação de todos. E aí que o técnico pode assumir uma posição de complementaridade "one-up"

(WATZLAWICK et ai., 1972).

A reabilitação funcional do indivíduo é da competência das instituições de saúde, mas estas não a poderão fazer sem ter em conta a sua integração social. A reintegração social passa por outras estruturas comunitárias que, para além dos serviços tradicionalmente oferecidos à população, devem dispor de serviços complementares de apoio aos deficientes. Só com a interpelação de todos estes esforços a família com um deficiente pode sobreviver e desenvolver-se, dentro dos padrões ditos normais.

É importante referir que se o indivíduo que padeceu subitamente de uma doença incapacitante pertence a uma família com distúrbios, ou mesmo a uma família doente, então o caso é muito mais complexo e a sua reintegração familiar terá uma contextualização bem diferente. O programa de recuperação e reintegração do doente e da sua família complexifica-se e a rede de suporte extra-familiar tem, por certo, que intensificar-se.

Para terminar, gostaríamos de realçar que há situações em que a doença pode ter efeitos positivos na família, sendo mesmo um motivo forte para se desenvolver uma nova organização capaz de unir o sistema. ALARCÃO ( 2000:314) refere as famílias multiproblemáticas como aquelas que se relacionam bem com uma série de problemas que afeiam um número indeterminado de elementos.por outro lado CANCRINI et ali (1997:53) refere mesmo que estas famílias estruturam-se numa relação de dependência crónica face aos serviços, neste sentido será oportuno que os enfermeiros adquiram novas competências para compreende e intervir na família.