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Conceitos e características das organizações hospitalares

2.3 A organização hospitalar: uma abordagem teórica

2.3.2 Conceitos e características das organizações hospitalares

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), hospital é parte integrante de um sistema coordenado de saúde, cuja função é dispensar à comunidade completa assistência à saúde preventiva e curativa, incluindo serviços extensivos à família, em seu domicílio e ainda em centro de formação para os que trabalham no campo da saúde e para as pesquisas biossociais.

MÉDICI e MARQUES (1996 apud ABBAS, 2001) destacam que as organizações hospitalares possuem peculiaridades que são perfeitamente compreendidas quando se considera que o indivíduo, ao procurar a assistência médica, não o faz por livre vontade, mas sim por necessidade, isto é, por circunstâncias alheias ao seu desejo. Ao ingressar num serviço de saúde, o indivíduo não sabe que tipo de intervenção irá sofrer ou que tipo exame ou medicamento irá consumir. Em assim sendo, não raro o paciente torna-se objeto de uma relação dominada por um sujeito (ou grupo) de cuja expertise sua saúde ou cura depende.

O hospital apresenta características próprias que o distinguem das demais organizações. Além das atividades médicas, existem pelo menos quatro outras atividades desenvolvidas pela organização hospitalar: um hotel, uma farmácia, uma lavanderia e um restaurante. Cada uma complexa o bastante para ser uma organização independente, mas que,

no entanto, são complementares.

Outra característica marcante do hospital é o fato de que ele possui um caráter social e, em alguns casos, filantrópico, com um aspecto de responsabilidade mais amplo e complexo do que as organizações tradicionais (comerciais e industriais). Fatores legais e políticos também se fazem sentir na organização hospitalar com mais intensidade do que nas demais. No Brasil, por exemplo, por força da Constituição Brasileira, todo indivíduo tem direito à assistência médica e hospitalar necessárias. Assim, o hospital tem a obrigação legal de atender a todos os pacientes que precisarem, mesmo que não possam pagar pelos seus serviços, fato que não costuma ocorrer com outros tipos de organizações prestadoras de serviços.

É bem provável que, dentre as organizações contemporâneas, nenhuma seja mais complexa do que o hospital, cuja missão principal é receber o ser humano doente ou ferido e cuidar dele de modo a restaurá-lo ao normal, ou ao mais próximo possível. E mais, o cumprimento dessa missão não é algo tido como certo; há sim o desejo de que os tratamentos e terapêuticas restaurem a saúde do paciente, mas isso nem sempre acontece como se espera.

Mintzberg (1997) retrata tal complexidade descrevendo que é possível encontrar no hospital quatro mundos diferentes, que reproduzem quatro modos de organização com diferentes conjuntos de sentimentos, emoções, percepções, pensamentos. Esse quatro mundos são denominados de: cuidado (care), cura (cure), controle (control) e comunidade (community). Mundos representados, respectivamente, pelos enfermeiros, pelos médicos, pelos administradores hospitalares e pela entidade mantenedora, cada um desses tendendo a ver o hospital de um ângulo ligeiramente diferente.

Os enfermeiros organizam-se ao redor do fluxo de trabalho de cuidados contínuos, e sua responsabilidade principal é coordenar o trabalho de um grupo de especialistas que convergem para um simples e único lugar: o paciente em seu leito. Os médicos organizam-se

em especialidades médicas (profissionais) e formam o que popularmente se denomina “castelos" ou "feudos". Disso tem-se que, enquanto o trabalho dos enfermeiros é de cuidados contínuos, o trabalho dos médicos é de cura intermitente.

Os gerentes organizam-se conforme a hierarquia administrativa, e sua responsabilidade central, especialmente nos tempos atuais, é alocar e restringir o uso de recursos. A comunidade, por sua vez, organiza-se de diversas formas, mas o mais evidente (além do grupo de voluntários) é o quadro de diretores, os quais formalmente superintendem as atividades hospitalares para assegurar o cumprimento dos objetivos dessa organização (MINTZBERG, 1997).

A figura 2(2), abaixo, ilustra a existência desses quatro mundos e reforça a constatação de que um hospital é um tipo diferenciado de organização, caracterizada por uma estrutura complexa sobre a qual as ações e as interações entre os vários agentes têm ascendência significativa.

Figura 2(2): Os diferentes mundos do hospital (Fonte: Mintzberg, 1997, p.10).

Colaboração interior exterior Cura (médicos) Cuidados (enfermeiros) Para baixo Para cima Controle (administradores hospitalares) Comunidade (entidade mantenedora)

A área de colaboração no centro da figura acima é descrita por Mintzberg (1997) como o espaço de intersecção dos quatro mundos, e por isso mesmo é também onde problemas e conflitos acontecem.

A complexidade representada por esses quatro mundos é resultado das principais características das organizações hospitalares: trabalho com vida humana; dificuldade de definir e mensurar os resultados; o trabalho desenvolvido extremamente variável, de natureza emergencial e com pouca margem para a ambigüidade e o erro; as atividades dos membros da organização extremamente profissionalizadas e, por isso, geralmente mais leais à profissão do que à organização; a existência de uma dupla linha de autoridade que gera conflitos de coordenação e de responsabilidades.

Com uma visão em muitos aspectos semelhante dos autores até aqui citados, Cecílio (2002) caracteriza a complexidade das organizações hospitalares a partir de uma lista do que denominou “pares de opostos”, uma espécie de antinomias imanentes à vida do hospital. Esses pares tentam dar a idéia que esses opostos não se anulam; ao contrário, configuram situações mais do tipo “isso e aquilo” do que “isso ou aquilo”:

 modelo hospitalocêntrico versus “sistema de saúde” organizado em uma “pirâmide” de serviços de complexidade crescente;

 autonomia do médico versus a necessidade de coordenação da direção do hospital;

 monopólio médico do diagnóstico e da terapêutica versus fragmentação crescente dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos;

 qualidade como excelência profissional individual versus avaliação institucional formal da assistência prestada;

 medicina estratégica centrada em procedimentos versus atenção centrada no paciente;

 trabalho multiprofissional e em equipe versus hierarquia do poder intra e intercorporações profissionais;

 ênfase nas atividades de assistência versus ênfase nas atividades de docência e pesquisa (hospitais universitários);

 ênfase na eficiência versus ênfase na eficácia/efetividade;

 organização formal versus organização informal.

Nesses pares de opostos estaria a explicação para a sui generis configuração estrutural das organizações hospitalares.

Carapinheiro (1997) destaca que o hospital, embora apresente traços salientes de uma organização burocrática, também difere em muitos aspectos desse tipo-ideal. Salienta-se, por exemplo, um traço bastante específico das organizações hospitalares: o poder e a autonomia que alguns profissionais detêm, em especial os médicos, apesar da existência de uma estrutura administrativa burocrática, e que resulta, pois na existência de um sistema dual de autoridades (MINTZBERG, 2003).

Johnson e Schulz (1979) também entendem que as estruturas organizacionais tradicionais — formais, representadas nos organogramas e característica das organizações burocráticas, com o controle e poder da autoridade centrados no topo da organização — não são compatíveis com a lógica de funcionamento dos hospitais, visto que não permitem uma compreensão mais ampliada dos relacionamentos e das influências presentes nesse tipo de organização, não os descrevendo de forma adequada.

Mintzberg (2003), em sua tipologia, enquadra os hospitais como burocracias profissionais, voltadas à realização de trabalho complexo e estável, demandando que o mesmo seja realizado e controlado por profissionais e possibilitando o aperfeiçoamento das habilidades dos profissionais através de programas operacionais padronizados.

A burocracia profissional se apresenta como um tipo organizacional que utiliza a padronização de habilidades para garantir a coordenação das atividades na organização e que depende de habilidades e conhecimentos de seus funcionários operacionais para produzir serviços padronizados.

Nesse tipo de estrutura, o núcleo operacional ocupa um lugar de grande importância e influencia fortemente o funcionamento de toda a organização. Isso ocorre devido à presença de profissionais bem treinados e doutrinados (médicos, enfermeiros, nutricionistas, entre outros), os quais têm espaço para controlar seus próprios trabalhos.

Mintzberg (2003) considera ainda esse tipo de organização como sendo democrática no que se refere à divisão do trabalho, pelo menos no nível operacional, visto que esses profissionais não só controlam seu trabalho como também têm a chance de buscar o controle coletivo sobre as decisões que os afetam. Em contrapartida, nota-se que, à medida que os mesmos exercem esse controle, eles tendem a se afastar de seus colegas e aproximar-se mais dos clientes aos quais servem.

O trabalho executado nas burocracias profissionais é essencialmente padronizado não em termos do produto final, mas em relação ao processo por meio do qual ele é executado. Esses padrões são, em sua grande maioria, oriundos de fora da estrutura, gerados em associações e conselhos de classes profissionais: ambientes onde os profissionais se juntam aos seus pares. Tais entidades procuram também estabelecer esses padrões em consonância com o que está sendo ensinado nas universidades e utilizado pelos grupos profissionais.

Esse tipo estrutural é também conhecido pelo alto grau de descentralização tanto vertical como horizontalmente. O profissional é quem detém o planejamento e controle de sua atividade (controle vertical), sendo especializado em termos de sua execução (por áreas de especialidade médica).

Contrariamente ao que se passa em outros tipos de configuração, em que a autoridade do staff (por exemplo, engenheiro de organização e métodos, analista de sistemas, especialista de marketing) é limitada ao sistema técnico e organizacional de trabalho, na burocracia profissional a autoridade dos especialistas (por exemplo, médicos, enfermeiros, técnicos em diagnóstico e terapêutica) sobrepõe-se à autoridade administrativa, na medida em que eles têm o controle efetivo das atividades-fins da organização (por exemplo, tratar e curar os doentes). A descentralização horizontal e vertical desloca os eixos de poder para o nível operativo.

Ainda sobre as burocracias profissionais, nela os gestores encarregam-se das atividades-meio, ou seja, administram os recursos (humanos, técnicos e financeiros) postos ao serviço das atividades-fim, que são realizadas pelos especialistas ou profissionais. A tecnoestrutura existente geralmente não consegue coordenar diretamente os trabalhos executados nesse nível, não apenas porque ele é complexo, mas porque requer a autonomia do saber dominado por eles.

Outro traço marcante desta configuração é sua ênfase no poder da perícia (expertise), do conhecimento, ou seja, a autoridade é de natureza profissional. A autoridade tem sua fonte na habilidade dos profissionais na execução de suas tarefas. Além disso, como o controle sobre o trabalho está com os profissionais que o exercem (visto que cada um trabalha diretamente com seus pacientes e está sujeito apenas a supervisão exercida por seus pares), a conseqüência é que os resultados dos processos de trabalho também não são possíveis de ser facilmente mensurados, ficando claro que esse tipo de configuração não está baseado em formas rígidas de controle e planejamento, tornando difícil qualquer tentativa de padronização pelo aparato administrativo da organização.

Corroborando essa descrição das organizações profissionais, Graça (1996) explica que nos hospitais a autonomia técnica de alguns trabalhadores, em especial dos médicos, tende a entrar em conflito com o sistema de autoridade hierárquica do hospital. Nestas organizações, é

o médico e não o gestor quem decide "o que é melhor para o doente", o que significa que há aqui claramente duas linhas de autoridade, pondo em prova a lógica do modelo burocrático weberiano: (1) a autoridade administrativa e (2) a autoridade profissional.

O funcionário obedece a ordens impessoais (isto é, à autoridade racional- legal), o médico tende a decidir muitas vezes de acordo, não com regras explícitas e escritas, mas com os imperativos do seu código de exercício profissional, com as exigências da sua profissão, com critérios de natureza técnico-científica e sobretudo com a sua consciência, quando muito podendo ser julgado pelos seus pares [....] (p.85).

Em sendo assim, os melhores resultados que a organização hospitalar pode alcançar dependem da harmonização entre essas duas estruturas: técnica e administrativa. Ou ainda de acordo com Martins (2003):

Os hospitais e as clínicas médicas não podem funcionar eficazmente caso não haja algum tipo de solidariedade entre médicos, enfermeiras, funcionários e familiares em tono do sofrimento do doente, espelhando em cada personagem envolvido a proximidade inexorável da morte e da finitude (p. 75).

Considerando todos os aspectos aqui apresentados concernentes às organizações hospitalares, torna-se plausível a seguinte afirmação de Mintzberg (1997): “tenho a significativa suspeita de que administrar a mais complicada corporação deve ser quase brincadeira de criança quando comparada à administração de qualquer hospital” (p.16).

Do ponto de vista financeiro, hospitais, sejam eles públicos ou privados, têm exigências tais como: altos investimentos com gastos salariais; instalações maiores e mais sofisticadas, tornando necessários equipamentos mais caros com custos operacionais mais elevados; variedade de serviços disponíveis, oferecendo mais serviços aos pacientes; preços dos insumos como materiais e medicamentos (GRECH, 2002).

Carapinheiro (1997) tem o mérito de oferecer ângulos ampliados para “observar” o hospital, e o principal deles dá conta de que ainda que o hospital produza em qualquer sociedade o mesmo impacto nas experiências humanas de viver a doença, no entanto retira sempre da especificidade de cada uma delas a sua relativa singularidade.

No que se refere ao inter-relacionamento entre o hospital e as políticas de saúde, Carapinheiro (1997) mostra que:

[...] todas as medidas políticas que mexem nas carreiras profissionais hospitalares ou nas condições materiais e técnicas que envolvem o desempenho das práticas médicas ou que produzem alterações na gestão dos hospitais, são sempre interpretadas pelos analistas como sinais prévios de mudança da relação de forças dos protagonistas das políticas de saúde. Conhecendo-se as articulações íntimas que as políticas de saúde mantêm com as restantes políticas setoriais, então o hospital adapta-se constantemente às novas necessidades decorrentes da evolução do lugar da saúde no contexto sócio-econômico mais vasto (p.22).

Avançando ainda mais nessa percepção acerca dos hospitais, concorda-se com essa autora quando ela admite que as orientações políticas gerais e as relações de força entre os grupos detentores das principais formas de poder social repercutem e se traduzem nos hospitais, especialmente nas escolhas políticas e na configuração de poder dessas organizações.

No entanto, não se trata de fazer do hospital um lugar que copia mecanicamente, mimeticamente essas orientações:

Retém e usa, segundo uma lógica organizacional que lhe é específica, um sistema próprio de normas e valores, embora decalcado do modelo geral das normas e valores sociais. Adapta-se às mudanças políticas e econômicas, mas conserva uma importante margem de definição e tomada de decisões sobre políticas médicas e hospitalares particulares (CARAPINHEIRO, 1997, p. 23).

A existência dessa lógica organizacional específica é necessária para manutenção das funções do hospital, quais sejam: a prestação de atendimento médico e complementar aos doentes em regime de internação; o desenvolvimento, sempre que possível, de atividades de prevenção; a participação em programas de natureza comunitária; e a integração ativa no sistema de saúde (GONÇALVES, 1983).

Todas essas funções caminham em direção à preocupação precípua de prestar assistência às necessidades do paciente, devendo-se para tanto atentar para as diversas dimensões que envolvem esse paciente: dimensões biológicas, psicológicas, sociais,

ambientais, culturais e temporais, visto que afetam o comportamento do paciente em relação à doença e ao tratamento (JOHNSON e SCHULZ, 1979).

Pode parecer redundante explicitar que a função primária de um hospital é o cuidado ao paciente; entretanto, no passado, poucos hospitais tinham efetivamente seu foco no paciente — a grande maioria tinha seus serviços e cuidados centrados no profissional e não necessariamente no paciente (GRECH, 2002).

Alinhar todas as definições e aspectos até aqui apresentadas sobre as organizações hospitalares seria tarefa inócua. Entretanto, cada uma delas ajuda na construção de um tipo ideal para o hospital, com as seguintes características: adequado ao perfil epidemiológico da sua área de abrangência; inserido em uma rede de serviços de saúde; humanizado; descentralizado em sua gestão; autônomo gerencialmente; administrado de modo profissional; prestador de serviços públicos com responsabilidade social; capaz de incorporar tecnologias, baseado em critérios racionais; prestador de serviços de qualidade.

Apesar de os hospitais, em suas características gerais, serem semelhantes, alguns apresentam peculiaridades que os fazem singulares frente aos demais. Podem diferenciar-se quanto às características de propriedade (público federais, estaduais e municipais e privados) ou ainda quanto à finalidade principal (beneficentes, lucrativos, de ensino, de pesquisa, entre outros). Nesse sentido, a seguir serão caracterizados os hospitais universitários, com suas principais especificidades.