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2.3 A organização hospitalar: uma abordagem teórica

2.3.1 A evolução histórica do hospital

A origem do hospital como organização remonta a 400 d.C., quando da fundação dos primeiros hospitais na Itália (MIRSHQWA, 1994). Segundo Gonçalves (1983), a palavra hospital vem do latim hospitium — que significa lugar onde se hospedam pessoas. Inicialmente, os hospitais eram locais onde se exercia caridade para com pobres, mulheres desamparadas, idosos e pessoas com doenças crônicas, enquanto os doentes com melhor situação financeira tinham assistência em domicílio e a sua relação com o médico não dependia da organização hospitalar.

Até meados do século XVIII, quase ninguém saia do hospital com vida. Ingressava-se nessas instituições para morrer: a técnica médica dessa época não permitia ao indivíduo hospitalizado abandonar a instituição com vida. O hospital era um claustro para morrer; era, como se dizia na época, um “mouroir”:

O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. E alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. Esta é a função essencial do hospital. Dizia- se correntemente, nesta época, que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir sua própria salvação. Era um pessoal caritativo — religioso ou leigo — que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna. Assegurava-se, portanto, a salvação da alma do pobre no momento da morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos pobres (FOUCAULT, 1979, p.59).

Até aqui não havia o imbricamento entre hospital e medicina — eram entidades independentes. Segundo Foucault (1979), alguns fatores contribuíram para o hospital ser medicalizado e a medicina tornar-se hospitalar.

O primeiro fator da transformação não foi a busca de uma ação positiva do hospital sobre o doente ou a doença, mas simplesmente a anulação dos efeitos negativos do hospital. Não se procurou primeiramente medicalizar o hospital, mas purificá-lo dos efeitos nocivos, da desordem que ele acarretava: as doenças que ele podia suscitar nas pessoas internadas e as que podiam se espalhar na cidade em que estava situado, como também a desordem econômico−social de que ele era foco.

Somente com a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital é que foi possível sua medicalização:

Não foi a partir de uma técnica médica que o hospital marítimo e militar foi reordenado, mas, essencialmente, a partir de uma tecnologia que pode ser chamada política: a disciplina. A disciplina é uma técnica de exercício de poder que foi, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII (FOUCAULT, 1979, p.61).

As razões econômicas, o preço atribuído ao indivíduo, o desejo de evitar as epidemias são aspectos que explicam o esquadrinhamento disciplinar a que foram submetidos os

hospitais. Entretanto, é preciso esclarecer que foi necessária uma transformação no saber médico para que essa disciplina viesse a se tornar técnica e que o poder disciplinar fosse confiado ao médico: “a formação de uma medicina hospitalar deve-se, por um lado, à disciplinarização do espaço hospitalar, e, por outro, transformação, nesta época, do saber e da prática médicas” (FOUCAULT, 1979, p.62).

Para Foucault (1979), ao se considerar a hipótese do duplo nascimento do hospital pela técnica de poder disciplinar e pela técnica médica de intervenção sobre o meio, podem ser compreendidas várias características que ele possui:

1) A preocupação com o ajuste da localização do hospital ao esquadrinhamento sanitário da cidade e com a distribuição interna de seu espaço: a arquitetura hospitalar passou a ser concebida como um instrumento de cura de mesmo status que um regime alimentar ou um gesto médico. Dessa forma, o espaço hospitalar foi medicalizado em sua função e em seus efeitos.

2) O sistema de poder no interior do hospital: até meados do século XVIII, quem detinha o poder era o pessoal religioso, destinado a assegurar a vida cotidiana do hospital, a salvação e a assistência alimentar das pessoas internadas. O médico era chamado para os mais doentes, e era visto mais como uma justificação do que como uma ação real; estava sob a dependência administrativa do pessoal religioso, que podia inclusive demiti-lo. Na medida em que o hospital passa a ser um instrumento de cura e a distribuição do espaço tornar-se um instrumento terapêutico, o médico torna-se o principal responsável pela organização hospitalar.

3) Organização de um sistema de registro permanente e exaustivo do que acontece: constitui-se, assim, um campo documental no interior do hospital que não é somente um lugar de cura, mas também de registro, acúmulo e formação de saber:

É então que o saber médico que, até o início do século XVIII, estava localizado nos livros, em uma espécie de jurisprudência médica encontrada

nos grandes tratados clássicos da medicina, começa a ter seu lugar, não mais no livro, mas no hospital; não mais no que foi escrito e impresso, mas no que é quotidianamente registrado na tradição viva, ativa e atual que é o hospital (FOUCAULT, 1979, p. 64).

No Brasil, as Santas Casa de Misericórdia representaram, durante os quatro primeiros séculos de nossa história, o único local que se dispunha a receber os doentes, qualquer que fosse sua condição. Apenas no século XIX surgiram os primeiros hospitais, em sua grande maioria organizados por congregações religiosas femininas ou por iniciativa de colônias estrangeiras, principalmente portugueses, espanhóis, alemães, japoneses (LIMA- GONÇALVES, 2002).

No século XX, as fronteiras do hospital ampliaram-se, passando este a servir a toda a sociedade moderna com a prestação de atenção de saúde. Nas últimas décadas do século XX, especialmente nos anos 90, assistiu-se a importantes mudanças na realidade dos serviços de saúde. A supersofisticação dos procedimentos médicos, farmacológicos e tecnológicos, a hierarquização do sistema de saúde, a constante renovação do conhecimento são fatores que proporcionam a melhoria do atendimento da saúde da população, mas ao mesmo tempo demandam dos hospitais esforços no sentido de continuamente adaptarem sua estrutura e seus processos a esse cenário de mudanças (BERTUCCI e MEISTER, 2003).

Na atualidade, Lopes (2005) descreve com bastante propriedade a rede de atenção hospitalar brasileira como bastante heterogênea, do ponto de vista da incorporação tecnológica, com grande concentração de recursos e pessoal em complexos hospitalares de médio e grande porte, em contraste com um desequilíbrio regional. Podem ser encontrados hospitais equiparados aos melhores do mundo, de um lado, e verdadeiras fábricas de cadáveres, à semelhança dos hospitais em seus primórdios, de outro (LUSSARI e SCHMIDT, 2003).

Ainda de acordo com Lopes (2005), o segmento hospitalar brasileiro vem passando por uma crise em suas dimensões assistencial, organizacional, de ensino, financeira, política e

social. Esse quadro demandaria as seguintes ações: redefinição do modelo assistencial, redesenho dos modelos organizativos, reforma do modelo de gestão, reconstrução do relacionamento com o SUS, reorientação do ensino e da pesquisa, revisão dos mecanismos de financiamento.

Na próxima seção, apresentam-se os principais conceitos e aspectos que caracterizam as organizações hospitalares.