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2.9 Lei nº 10.803 (2003)

2.9.3 Condições degradantes

Mais complexas, as condições degradantes em muito se relacionam com as normas

de saúde e segurança expedidas pelo Ministério do Trabalho, denominadas Normas

193 ALVES, Francisco. Por que morrem os cortadores de cana? FEAB - CALEA UFS, 7 fev. 2011. Disponível em: <http://feab-calea.blogspot.com/2011/02/por-que-morrem-os-cortadores-de-cana.html>. Acesso em: 20 fev. 2016.

Regulamentadoras (NRs). A OIT, por sua vez, definiu tais condições como a combinação dos

seguintes elementos:

• Alojamento – os trabalhadores são comumente alojados em barracas precárias de lona ou de folhas de palmeiras no meio da mata, expostos a uma série de riscos; • Susceptibilidade a doenças – principalmente na fronteira agrícola, onde se encontra o maior foco de trabalho análogo ao de escravo, há um alto índice de doenças tropicais, como a malária e a febre amarela, além de elevada incidência de outras doenças menos comuns em outras regiões, como a tuberculose. Quando ficam doentes, muitos trabalhadores não recebem atendimento médico;

• Condições de saneamento – este item se refere tanto à precariedade das condições sanitárias (ausência de instalações sanitárias, por exemplo), quanto ao não fornecimento de água potável.

• Alimentação – insuficiente para atender às necessidades calóricas dos trabalhadores, e em condições inadequadas de conservação.

• Remuneração inadequada e salários atrasados – mesmo quando não há escravidão por dívida, caso no qual os trabalhadores não recebem salário em espécie, é comum receberem menos do que o acordado, terem seus salários retidos ou pagos com atraso;

• Maus tratos e violência – são comuns os relatos de humilhação pública, ameaças e até violência física contra os trabalhadores;194

Segundo Lívia Mendes Moreira Miraglia, o cerne do trabalho em condições

degradantes se encontra na afronta à dignidade do ser, que labora em condições subumanas

que ofendem o patamar mínimo de direitos. Por isso, destaca o que faria parte desse substrato:

[...] considera-se como mínimo existencial para a existência digna: a justa remuneração; o respeito às normas de saúde e segurança no trabalho; a limitação da jornada, assegurando o direito ao pagamento das horas extras eventualmente prestadas e ao descanso necessário para a reposição das energias e ao convívio social; e o acesso às garantias previdenciárias.195

A necessidade de se garantir em conjunto todos os direitos trabalhistas relacionados à

saúde e segurança, dentro de um patamar mínimo do cumprimento da legislação, é o que leva

José Cláudio Monteiro de Brito Filho afirmar que:

[...] se o trabalhador presta serviços exposto à falta de segurança e com riscos à saúde, temos o trabalho em condições degradantes. Se as condições de trabalho mais básicas são negadas ao trabalhador, como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social, há trabalho em condições degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem limitações na sua alimentação, na sua higiene e na sua moradia, caracteriza-se o trabalho em condições degradantes. Se o trabalhador não recebe o devido respeito

194 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. As boas práticas da inspeção do trabalho no

Brasil. A erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Brasília: OIT, 2010. Disponível em:

<http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/labour_inspection/pub/trabalho_escravo_inspecao_279.pdf>. Acesso em: 6 out. 2015. p. 16-17.

195 MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo: conceituação à luz do princípio da dignidade humana. 2. ed. São Paulo: LTr, 2015. p. 149-150.

que merece como ser humano, sendo, por exemplo, assediado moral ou sexualmente, existe trabalho em condições degradantes.196

São, portanto, diversas as situações que, de acordo com a doutrina trabalhista, podem

caracterizar condições degradantes, ressaltando-se em especial as que ferem o patamar

mínimo de direitos. A jurisprudência trabalhista acompanha tais ideias, conforme se

depreende dos seguintes julgados:

DANO MORAL - CASTIGO IMPOSTO EM RAZÃO DO NÃO CUMPRIMENTO DE METAS DE VENDAS - SITUAÇÃO DEGRADANTE E VEXATÓRIA. A ordem jurídica tutela de forma contundente a honra e a imagem das pessoas (art. 5o., X, da CR/88), sendo que o Novo Código Civil destinou um capítulo aos direitos da personalidade (arts. 11 a 21), assinalando a tendência moderna de sua preservação e reforçando a obrigação do magistrado acerca das punições que devem advir das violações ocorridas. Além disso, a proteção do meio ambiente do trabalho também tem cunho constitucional (art. 200, VIII), e é obrigação do empregador velar para que ele seja saudável e próprio às atividades desenvolvidas (art. 157/CLT). No caso em exame torna-se irrelevante o fato de as situações descritas (fazer flexões e vestir- se de mulher usando saia e batom), serem ou não determinadas pelos superiores hierárquicos da ré (o que restou afirmado por duas testemunhas), mas o foco da questão é que a empresa permitia que ocorressem, e deu a entender que o fazia porque lhe eram lucrativas, já que estimulavam o cumprimento das metas de vendas. A conduta da reclamada é extremamente reprovável, levando-se em conta que o empregador detém o poder diretivo e disciplinar na relação de emprego, sendo responsável objetivamente pelos atos praticados por seus empregados (art. 932, III, do Código Civil de 2002 e Súmula 341 do STF), não podendo sequer permitir que a prática de atos constrangedores ocorresse em suas dependências. Os objetivos da empresa não podem ser atingidos à custa do sofrimento e tratamento degradante de seus empregados, num Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (arts. 1o, III e IV, 6o, 170,"caput", e 193 da CR/88). Castigar ou permitir que seja castigado o empregado (pois este é o termo utilizado pelas testemunhas: castigo) representa um retrocesso inaceitável no processo de melhoria das relações de trabalho, mais se assemelhando às circunstâncias típicas do trabalho servil ou até mesmo escravo, em que a sujeição do trabalhador não se resume às ordens atinentes à atividade da empresa, mas ultrapassa os limites da objetividade para atingir o íntimo da pessoa, com inevitáveis repercussões de cunho emocional e social.197

RECURSO DE REVISTA - TRABALHADOR RURAL - INSTALAÇÕES SANITÁRIAS - CONDIÇÕES PRECÁRIAS - DESCUMPRIMENTO DAS REGRAS MÍNIMAS DE HIGIENE - LESÃO AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA - DANO MORAL - PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR - INDENIZAÇÃO. O estabelecimento de meio ambiente de trabalho saudável é condição necessária ao tratamento digno do trabalhador. Dessa forma, constatada a violação do princípio da dignidade humana do trabalhador, o direito à reparação dos danos morais é a sua consequência. No caso dos autos, extrai-se da decisão recorrida que a reclamada

196 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente. Análise jurídica da exploração do trabalho – trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004. p. 80.

197 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO – 3ª REGIÃO. RO: 36604 01490-2003-002-03-00-9, Relator: Convocada Maria Cristina Diniz Caixeta, Terceira Turma, Data de Publicação: 28/02/2004 27/02/2004.

DJMG. Página 7. Boletim: Sim. Disponível em: <http://trt- 3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/129333172/recurso-ordinario-trabalhista-ro-36604-01490-2003-002-03-00- 9>. Acesso em: 20 fev. 2016.

atuou de forma culposa e ilegal ao fornecer instalações sanitárias precárias, em total desacordo com as normas de higiene, segurança e saúde do trabalho, o que malfere direitos da personalidade do reclamante, além de expor a saúde do trabalhador a risco patente e vulnerar o princípio da dignidade humana. Presentes, portanto, a conduta culposa da reclamada (instalações sanitárias em condições degradantes), o dano (ofensa ao princípio da dignidade humana e a direitos inerentes da personalidade do reclamante, como por exemplo, honra, intimidade e integridade física) e o nexo de causalidade (dano decorrente do descumprimento das normas de higiene, saúde e medicina do trabalho pela reclamada), não merece reparo a decisão da Corte regional que reconheceu a responsabilidade civil subjetiva da reclamada. Recurso de revista não conhecido. [...]198

Por vezes, afirma-se não estar configurado o delito, já que as condições do local de

trabalho não diferem daquelas às quais o trabalhador se submete em sua própria casa, como se

o empregador fornecesse a ele o que se toma como normal na região. Porém, a comparação

não deve ser utilizada, observando-se a degradância do local independentemente das

condições pessoais do trabalhador, já que “uma coisa é a miséria como condição pessoal;

outra, como palco em que se encena a exploração”.

199

Trabalho em condições degradantes, portanto, nada mais é do que tudo aquilo que

atinge a dignidade do trabalhador de forma excessiva, combinando o descumprimento dos

direitos trabalhistas mais básicos com a afronta ao meio ambiente de trabalho. Conforme se

manifestou Carlos Henrique Borlido Haddad:

Justificar a eliminação com o argumento de que o conceito de condições degradantes mostra-se abstrato e de difícil assimilação é — perdoem-me — balela. Como vários elementos normativos existentes no Código Penal, é mais uma expressão cujo conteúdo deve ser preenchido pelo intérprete. Não é muito mais difícil do que extrair o conceito de “decoro” e “dignidade” (artigo 140), “sem justa causa” (artigo 153) e “ato obsceno” (artigo 234).200

O conceito não pode, portanto, ser tido como inexistente ou impreciso – ainda que

complexo –, como propõem aqueles contrários à hipótese de configuração de trabalho análogo

198 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. RR - 1908-81.2010.5.03.0148, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 07/10/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 09/10/2015.

Disponível em:

<http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highligh t=true&numeroFormatado=RR%20-%201908-

81.2010.5.03.0148&base=acordao&rowid=AAANGhAAFAAAN/9AAP&dataPublicacao=09/10/2015&localP ublicacao=DEJT&query=escravo%20%20ou%20%20%27condi%E7%F5es%20degradantes%27>. Acesso em: 20 fev. 2016.

199 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Aspectos penais do trabalho escravo. Revista do Senado, Brasília, ano 50, n. 197, p. 51-64, jan./mar. 2013. Disponível em:

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496971/000991306.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 fev. 2016. p. 57.

200 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Enfrentamento ao trabalho escravo tem avanços antigos e retrocessos recentes. Conjur, 24 jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-24/segunda-leitura- enfrentamento-trabalho-escravo-avancos-antigos-retrocessos-recentes>. Acesso em: 20 fev. 2016.

ao escravo conforme o art. 149 do CP/40. Embora exista concordância entre o elemento

diferenciador do trabalho forçado e das condições degradantes, pois o primeiro atinge

primordialmente a liberdade e o segundo principalmente a dignidade, não são suficientes para

a configuração das condições degradantes simples desrespeito às normas de segurança e

saúde.

201

As ofensas se cruzam e a dignidade atingida passa também a ter reflexos e a ser

consequência do nível de liberdade atingido. Por isso afirma Viana que, “para quem vive –

como vivem tantos – em condições piores que a de um animal, a liberdade não é mais do que

um mito”.

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