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2.9 Lei nº 10.803 (2003)

2.9.4 Servidão por dívida

A servidão por dívida ocorre naquelas situações em que o trabalhador fica preso ao

trabalho por ser devedor do empregador. Segundo Miraglia, “no Brasil, o trabalho forçado se

dá, mais comumente, pelo regime da ‘servidão por dívidas’. Nesta situação, o trabalhador se

vê subjugado ao patrão, mediante coação física e/ou moral, justificada pela existência de um

suposto débito contraído por aquele”.

203

A ocorrência é tão antiga que a OIT editou em 1952 a Convenção nº 95,

204

protegendo o salário das arbitrariedades do empregador. Em seu art. 7º, proibiu as empresas

de exercerem pressão sobre os trabalhadores para que estes usassem lojas ou serviços do

próprio empregador, além de proibir descontos salariais não previstos em lei, convenção

coletiva ou sentença arbitral (art. 8º).

Ademais, a própria CLT incorporou a proibição em 1967,

205

quase uma década após

a entrada em vigor da C. 95 no Brasil

206

:

201

MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo: conceituação à luz do princípio da dignidade humana. 2. ed. São Paulo: LTr, 2015. p. 142.

202 VIANA, Márcio Túlio; SOARES, Thiago Moraes Raso Leite. Trabalho escravo e “Lista Suja”: velhos e novos enfoques. In: REIS, Daniela Muradas; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; FINELLI, Lília Carvalho (Orgs.). Trabalho Escravo: estudos sob as perspectivas trabalhista e penal. Belo Horizonte: RTM, 2015. p. 157.

203 MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. A OIT, o trabalho escravo e o trabalho decente: análise sob a perspectiva brasileira. In: REIS, Daniela Muradas; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; FINELLI, Lília Carvalho (Orgs.). Trabalho Escravo: estudos sob as perspectivas trabalhista e penal. Belo Horizonte: RTM, 2015. p. 85.

204 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 95, de 24 de setembro de 1952. Proteção ao Salário. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/node/463>. Acesso em: 7 out. 2015.

205

BRASIL. Decreto-Lei nº 229, de 28 de fevereiro de 1967. Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e dá outras providencias. Diário Oficial

da União, de 28 fev. 1967, retificado em 09 mar. 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0229.htm#art462>. Acesso em: 6 out. 2015.

Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.

§ 1º - Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde de que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.

§ 2º - É vedado à empresa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações " in natura " exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços.

§ 3º - Sempre que não for possível o acesso dos empregados a armazéns ou serviços não mantidos pela Empresa, é lícito à autoridade competente determinar a adoção de medidas adequadas, visando a que as mercadorias sejam vendidas e os serviços prestados a preços razoáveis, sem intuito de lucro e sempre em benefício das empregados.

§ 4º - Observado o disposto neste Capítulo, é vedado às empresas limitar, por qualquer forma, a liberdade dos empregados de dispôr do seu salário.207 (grifos nossos)

O conceito penal da servidão por dívida se conecta, portanto, à proibição trabalhista

ao instituto do “truck system”, que, segundo Vólia Bonfim Cassar, também pode ser

caracterizado pelo pagamento exclusivo em vales ou bônus de aceitação restrita no

mercado.

208

Ressalte-se que a própria Convenção Suplementar sobre a Abolição da

Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura já

havia distinguido a ideia, tendo sido promulgada no Brasil em 1966:

Artigo 1º

Cada um dos Estados Membros à presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra natureza, que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente e logo que possível a abolição completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes, onde quer ainda subsistam, enquadrem-se ou não na definição de escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926:

§1. A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida.

§2. A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição.

§3. Toda instituição ou prática em virtude da qual:

206 BRASIL. Decreto nº 41.721, de 25 de junho de 1957. Revigorado pelo Decreto nº 95.461, de 11.12.1987. Promulga as Convenções Internacionais do Trabalho de nº11,12,13,14,19,26,29,81,88,89,95,99,100 e 101, firmadas pelo Brasil e outros países em sessões da Conferência Geral da Organização Internacional do

Trabalho. Diário Oficial Da União 28 jun. 1957. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D41721.htm>. Acesso em: 5 out. 2015.

207 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário

Oficial da União, 9 ago. 1943, retificado pelo Decreto-Lei nº 6.353, de 1944 e pelo Decreto-Lei nº 9.797, de

1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm#art20>. Acesso em: 6 out. 2015.

208 CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do Trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 877.

a. Uma mulher é, sem que tenha o direito de recusa, prometida ou dada em casamento, mediante remuneração em dinheiro ou espécie entregue a seus pais, tutor, família ou a qualquer outra pessoa ou grupo de pessoas.

b. O marido de uma mulher, a família ou clã deste têm o direito de cedê-la a um terceiro, a título oneroso ou não.

c. A mulher pode, por morte do marido, ser transmitida por sucessão a outra pessoa. d. Toda instituição ou prática em virtude da qual uma criança ou um adolescente de menos de dezoito anos é entregue, quer por seus pais ou um deles, quer por seu tutor, a um terceiro, mediante remuneração ou sem ela, com o fim da exploração da pessoa ou do trabalho da referida criança ou adolescente. 209

A Convenção Suplementar contém, assim, compreensão semelhante à das Diretrizes

de Bellagio-Harvard, nas quais se entende que as situações de servidão por dívida são práticas

análogas ou similares à escravidão, e não escravidão propriamente dita. O conceito de que um

ser humano deve subjugar o outro, obtendo posse sobre ele, ainda se mostra forte em tal

norma, como é possível verificar:

Diretriz 9 – Distinção entre Escravidão e “Instituições e Práticas similares à escravidão”

O Artigo 1 da Convenção Suplementar de 1956 reconhece que as instituições e práticas similares à escravidão são: servidão por dívida, servidão feudal, servidão marital ou exploração infantil podem ser acobertadas pela definição de escravidão contida no Artigo 1 da Convenção relativa à Escravidão de 1926.

A distinção entre esses estatutos servis como definidas pela Convenção Suplementar de 1956 nos seguintes termos é que a escravidão está presente onde em substância há o exercício de poderes conectados ao direito de propriedade.

Deve ser enfatizado que a escravidão somente estará presente nos casos em que tais instituições e práticas similares à escravidão tenham a presença do controle de propriedade ou posse sobre uma pessoa.

As seguintes são as servidões convencionais assim determinadas pela Convenção Suplementar pela Abolição da Escravatura de 1956, o Tratado de Escravos e Instituições e Práticas similares à Escravidão:

a) Servidão por dívida, ou seja, o status ou condição que derivam de uma promessa de prestação de serviços pessoas do devedor ou de outra pessoa sob seu controle como garantia pela dívida, se o valor dos serviços não são razoavelmente utilizados com o fim de liquidar o débito ou a sua duração e natureza dos serviços não é limitada ou definida;

b) Servidão feudal, ou seja, a condição ou status de alguém que é, pela lei, costume ou acordo, obrigado a viver e trabalhar em terra que pertença a outra pessoa e oferecer a outrem determinados serviços, por recompensa ou não, não sendo livre para mudar seu status;

c) Qualquer instituição ou prática na qual:

i) Uma mulher, sem o direito de recusar, é prometida ou dada em casamento mediante o pagamento de uma consideração em dinheiro ou em espécie a seus pais, guardião, família ou qualquer outra pessoa ou grupo; ou

ii) O marido de uma mulher, sua família, ou seu clã, tem o direito de transferi-la a outra pessoa por uma quantia recebida ou de outra maneira; ou

iii) Uma mulher que, diante da morte de seu marido, possa ser herdada por outra pessoa;

209

BRASIL. Decreto nº 58.563, de 1º de junho de 1966. Promulga e Convenção sôbre Escravatura de 1926 emendada pelo Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sôbre a Abolição da Escravatura de 1956.

Diário Oficial da União, 3 e 10 jun 1966. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-

d) Qualquer instituição ou prática na qual uma criança ou jovem menor de 18 anos é entregue por ambos os pais ou por seu guardião a outra pessoa, mediante recompensa ou não, visando à exploração da criança ou jovem ou de seu trabalho.210 (tradução nossa, grifos nossos)

A evolução do trabalho escravo no Brasil contemporâneo de fato seguiu uma

intercorrência de hipóteses. Iniciou-se com o trabalho forçado, prendendo fisicamente o

trabalhador ao local da prestação dos serviços, evoluindo para a prisão moral e psicológica,

que englobou a servidão por dívida, para depois abarcar as condições de trabalho, seja em sua

intensidade e duração – jornada exaustiva –, seja em termos mais abrangentes, como as

condições do local de trabalho, o trato e o descumprimento de normas básicas de saúde e

higiene – condições degradantes.

211

Sobre sua ocorrência no Brasil, ensina Ricardo Rezende Figueira:

210

No original: “Guideline 9 – Distinction between Slavery and ‘Institutions and Practices Similar to Slavery’ Article 1 of the 1956 Supplementary Convention recognises that the ‘institutions and practices similar to slavery’, that is: debt bondage, serfdom, servile marriages, or child exploitation; may be ‘covered by the definition of slavery contained in article 1 of the Slavery Convention of 1926’.

The distinction between these servile statuses as defined by the 1956 Supplementary Convention in the following terms and slavery is that slavery is present where in substance there is the exercise of the powers attaching to the right of ownership.

It should be emphasised that slavery will only be present in cases of such ‘institutions and practices similar to slavery’ where control over a person tantamount to possession is present.

The following are the conventional servitudes set out in the 1956 Supplementary Convention on the Abolition of Slavery, the Slave Trade, and Institutions and Practices Similar to Slavery:

(a) Debt bondage, that is to say, the status or condition arising from a pledge by a debtor of his personal services or of those of a person under his control as security for a debt, if the value of those services as reasonably assessed is not applied towards the liquidation of the debt or the length and nature of those services are not respectively limited and defined;

(b) Serfdom, that is to say, the condition or status of a tenant who is by law, custom or agreement bound to live and labour on land belonging to another person and to render some determinate service to such other person, whether for reward or not, and is not free to change his status;

(c) Any institution or practice whereby:

(i) A woman, without the right to refuse, is promised or given in marriage on payment of a consideration in money or in kind to her parents, guardian, family or any other person or group; or

(ii) The husband of a woman, his family, or his clan, has the right to transfer her to another person for value received or otherwise; or

(iii) A woman on the death of her husband is liable to be inherited by another person;

(d) Any institution or practice whereby a child or young person under the age of 18 years is delivered by either or both of his natural parents or by his guardian to another person, whether for reward or not, with a view to the exploitation of the child or young person or of his labour.” (RESEARCH NETWORK ON THE LEGAL PARAMETERS OF SLAVERY. Bellagio-Harvard Guidelines on the Legal Parameters of Slavery, de 3

mar. 2012. Disponível em:

<http://www.qub.ac.uk/schools/SchoolofLaw/Research/HumanRightsCentre/Resources/Bellagio-

HarvardGuidelinesontheLegalParametersofSlavery/>. Acesso em: 7 out. 2015. (Documento disponível no ANEXO F).

211

Também nesse sentido, VIANA, Márcio Túlio; SOARES, Thiago Moraes Raso Leite. Trabalho escravo e “Lista Suja”: velhos e novos enfoques. In: REIS, Daniela Muradas; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; FINELLI, Lília Carvalho (Orgs.). Trabalho Escravo: estudos sob as perspectivas trabalhista e penal. Belo Horizonte: RTM, 2015. p. 150.

A escravidão contemporânea no Brasil não se respalda mais em justificativas religiosas, em noções científicas elaboradas por sábios naturalistas, nem no direito de reembolso dos custos de uma guerra justa e declarada entre príncipes. Ela se justifica pela existência de uma dívida, contraída pela vítima por transporte até o local do trabalho e gastos na compra de alimentos e ferramentas de trabalho na cantina do próprio empreiteiro, de um seu preposto, ou da própria fazenda. Contudo, esse é o lado aparente. O lado visível, que muitas vezes convence não só a sociedade circundante, próxima ao fato, mas até mesmo sindicalistas ou as próprias vítimas.212

De forma semelhante, Binka Le Breton aponta a atuação do chamado “gato” na

contratação de trabalhadores brasileiros para labor na Amazônia, ocasião nas quais são

submetidos à servidão por dívida:

A maioria dessas pessoas é ingênua e pobre, não tem muita alternativa na vida. Saem do Nordeste rumo à Amazônia. Chegando lá, vão em busca de trabalho. O gato oferece uma ocupação e dá o abono. Dessa forma, o sujeito já está endividado. Então, providencia o transporte para as fazendas, geralmente em pau-de-arara, que pode ser cobrado do trabalhador. De dois a quatro dias distante de sua terra, ele não tem dinheiro, não tem como voltar e não pensa em retornar sem dinheiro. Caiu na armadilha.213

A hipótese de servidão por dívida é, portanto, uma das formas mais comuns de

executar o tipo penal do art. 149, do CP/40, podendo ser vista não apenas no âmbito rural,

como também no urbano, especialmente no caso dos imigrantes.

214

Mas a Lei nº 10.803/03 foi

ainda mais além em suas previsões, a partir dos parágrafos 1º e 2º do dispositivo em análise,

conforme será demonstrado a seguir.