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2.9 Lei nº 10.803 (2003)

2.9.1 Trabalho forçado

A ideia mais comum sobre o trabalho forçado vem da própria Convenção nº 29 da

OIT, que assim o conceitua:

ARTIGO 2º

1. Para os fins da presente convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual êle não se ofereceu de espontânea vontade.156

Tal submissão pode se dar por meio de violência, ameaça, vigilância ostensiva ou

outros meios que impeçam a saída do trabalhador do ambiente de trabalho. Na seara

jurisprudencial, encontra fundamentação fácil, uma vez que se baseia no direito fundamental à

liberdade (art. 5º, caput, da CR/88). Porém, importante recordar que, mesmo quando o

trabalhador se oferece espontaneamente, o faz acreditando em falsas promessas sobre os

termos do contrato de trabalho ou sem conhecer os termos contratuais. Em outros casos, o

empregado tem ciência do que sua aceitação das condições de trabalho significa, porém,

concorda com elas, por necessidade decorrente da situação econômica em que se encontra.

Sobre o oferecimento, entende Luiz Guilherme Belisario que:

É evidente que nenhum trabalhador irá se oferecer espontaneamente para ser explorado e não ter reconhecidos seus direitos trabalhistas; se assim o fizesse, essa

155

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 704. 156 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 29, de 1º de maio de 1932. Sobre o

trabalho forçado ou obrigatório. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/node/449>. Acesso em: 5 out. 2015.

disposição seria nula, porque as normas de proteção ao trabalho são de ordem pública, portanto, irrenunciáveis, sendo a dignidade do ser humano também.157

Tal coação pode se dar, assim, de diversas formas, atingindo aspectos morais (como

o caso em que o trabalhador se vê com vergonha de retornar para casa sem uma quantia

suficiente ou se sente humilhado pela própria situação

158

), psicológicos (por ameaça ao

obreiro ou à sua família) e físicos (através de castigos que inclusive podem levar à morte). Por

isso infere Luís Antônio Camargo de Melo que:

[...] Considerar-se-á trabalho escravo ou forçado toda modalidade de exploração do trabalhador em que este esteja impedido, moral, psicológica e/ou fisicamente, de abandonar o serviço, no momento e pelas razões que entender apropriados, a despeito de haver, inicialmente, ajustado livremente a prestação dos serviços.159

A Convenção nº 105 da OIT diferencia, ainda, trabalho forçado de trabalho

obrigatório, estando o primeiro relacionado à exploração coercitiva feita por particular,

enquanto o segundo trataria da prestação de serviços forçada como forma de punição.

Segundo Belisario, no trabalho obrigatório, prestado ao Estado, não haveria remuneração

adequada tampouco caráter educativo.

160

Sobre caracterização da escravidão moderna brasileira, Haddad indica a existência de

dois paradigmas que se conectam com a ideia do trabalho forçado.

161

No primeiro,

denominado paradigma da propriedade, a posse e o controle do trabalhador estão na base do

conceito trazido inclusive pela Convenção Relativa à Escravatura, de 1926. A ideia também

157 BELISARIO, Luiz Guilherme. A redução de trabalhadores rurais à condição análoga à de escravo. São Paulo: LTr, 2005. p. 102.

158 Márcio Túlio Viana trata do assunto, entendendo que a lógica do dominador se introjeta no dominado, que passa a se achar realmente devedor e se sentir um ladrão ao fugir do local. Cf.: VIANA, Márcio Túlio; SOARES, Thiago Moraes Raso Leite. Trabalho escravo e “Lista Suja”: velhos e novos enfoques. In: REIS, Daniela Muradas; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; FINELLI, Lília Carvalho (Orgs.). Trabalho Escravo: estudos sob as perspectivas trabalhista e penal. Belo Horizonte: RTM, 2015. p. 148.

159 MELO, Luís Antônio Camargo. As atribuições do Ministério Público do Trabalho na Prevenção e no Enfrentamento ao Trabalho Escravo. Palestra proferida no II Encontro Internacional Sobre Tráfico de

Seres Humanos. Recife/PE, 18 de março de 2004. Promoção do ILADH- Instituto Latino-Americano de

Direitos Humanos e do Governo de Pernambuco. Disponível em:

<http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes/escravo/texto_recife.pdf >. Acesso em: 6 out. 2015. 160 BELISARIO, op. cit., p. 104.

161

HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Do paradigma da propriedade à concepção da liberdade de escolha: definindo o trabalho escravo para fins penais. In: REIS, Daniela Muradas; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; FINELLI, Lília Carvalho (Orgs.). Trabalho Escravo: estudos sob as perspectivas trabalhista e penal. Belo Horizonte: RTM, 2015. p. 203-240.

está presente no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998),

162

que em seu art.

7º dita:

1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:

[...]

c) Escravidão; [...]

2. Para efeitos do parágrafo 1o: [...]

c) Por "escravidão" entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças;

Para esmiuçar em que consistiria essa sujeição ou controle, foram editadas as

Diretrizes Bellagio-Harvard (2012),

163

compostas por dez pontos, elaborados por um grupo

de pesquisadores de diversas áreas, reunidos pela Rede de Pesquisas sobre os Parâmetros

Legais da Escravidão.

164

A diretriz nº 4 aponta como exemplos dos poderes atrelados ao

direito de posse os seguintes: compra, venda, transferência, utilização ou gerenciamento de

pessoa, receber lucros através do uso de alguém, bem como transferi-lo por herança, além de

descartar, maltratar ou negligenciar qualquer pessoa.

As diretrizes ainda indicam a distinção entre a escravidão e o trabalho forçado,

dispondo que, embora a Convenção relativa à Escravatura reconheça que a modalidade

poderá se desenvolver para a prática efetiva, a escravidão não estará presente nos casos de

trabalho forçado em que o controle sobre a pessoa não tiver ligação com a posse (Diretriz nº

8).

165

Mesmo sendo fruto de trabalho de diversos pesquisadores, as diretrizes mencionadas

como primeiro paradigma não são suficientes para explicar todas as hipóteses previstas no art.

149 do CP/40, por focarem basicamente na ofensa à liberdade de locomoção. Isso porque

nossa previsão jurídica é mais completa, abarcando também a ofensa à dignidade, por meio

162 BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial da União, de 26 set. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>. Acesso em: 7 out. 2015.

163

RESEARCH NETWORK ON THE LEGAL PARAMETERS OF SLAVERY. Bellagio-Harvard Guidelines

on the Legal Parameters of Slavery, de 3 mar. 2012. Disponível em: <http://www.qub.ac.uk/schools/SchoolofLaw/Research/HumanRightsCentre/Resources/Bellagio-

HarvardGuidelinesontheLegalParametersofSlavery/>. Acesso em: 7 out. 2015. (Documento disponível no ANEXO F).

164 Para maiores informações, conferir ainda: ALLAIN, Jean. The legal understanding of slavery. From the Historical to the Contemporary. Oxford: University Press, 2012.

das hipóteses de jornadas exaustivas e condições degradantes,

166

entendendo José Cláudio

Monteiro de Brito Filho que o crime fere diversos princípios, como a legalidade, a igualdade e

a dignidade.

167

Referido autor, ao comentar o conceito de trabalho forçado da OIT, frisa a ocorrência

de trabalho inicialmente consentido e que, depois, se revela forçado.

168

Também sobre a

deformação do consentimento, indica Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé que esta pode se

dar desde a celebração do vínculo empregatício, até a impossibilidade de rescindi-lo quando

bem entender.

169

Assim, diversamente do apontado pelas Diretrizes, pode-se observar a temática do

trabalho forçado diante de um segundo paradigma, ligado não apenas à liberdade de ir e vir,

mas à liberdade de escolha. Nele, parte-se do pressuposto de que existem situações em que a

redução à condição análoga à de escravo não envolverá o controle do empregador no sentido

de posse – é o que ocorre com a jornada exaustiva e as condições degradantes. Nesses casos,

são as necessidades do próprio trabalhador que forçam sua submissão ao trabalho em

condições análogas, muitas vezes ligadas a condições externas, como pobreza, ausência de

educação, falta de conhecimentos e de políticas públicas.

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